20161231


Nunca fui de grandes atos de coragem. Sonhava-os muitas vezes, continuo a sonhá-los algumas, embalado pelas memórias do Cavaleiro da Triste Figura, dos filmes do Zorro e do Gavião dos Mares do Errol Flyn, devidamente condimentadas pelo Major Alveja. Choro sempre nos filmes dos heróis que dão a sua vida por um bem maior ansiando pela oportunidade que a vida me dará de um dia fazer algo do género e imagino o meu funeral ao som da música de Taizé ao pormenor de pensar o que será escrito na minha lápide - dando de barato que se for cremado, como desejo, não terei direito a lápide. A verdade é que nunca fui dado a grandes atos de coragem. A pequenos talvez, ínfimos, provavelmente, aqueles que nunca são contados nas histórias nem aparecem nos filmes porque são atos banais de pessoas banais com vidas banais. Não é isso que me apoquenta. Eu gosto do pequeno. Aprecio o pequeno. Valorizo o pequeno, o quotidiano, o (apenas) aparentemente banal. 
Mas há alturas em que o pequeno não basta. Porque deixa arrastar, porque não decide, porque não escolhe, porque a única coisa que permite é ficar em mãos alheias, o que não tem nenhum mal a não ser o da demissão de ser. Que é sempre um mal maior.

A passagem do ano é um pouco como o aniversário. Ou como Julho para quem está ligado à educação. É altura de balanço, de pensar no que foi bom e mau, e prometermo-nos que desta vez será diferente. E é sempre! Porque é uma mesma vida mas mais aprendida, mais vivida, eventualmente mais sofrida, mais amada, quando temos sorte.

2016 foi ano de perdas. De lutas. De dúvidas. De abalos. Tudo em grande. À exceção de grandes conversas, de maiores caminhadas e de encontros de alma, não deixará grandes saudades para este lado. Mas já passou. Vem aí 2017. De mim, nesse ano que se aproxima, espero coragem. Segundo a definição acima. Já vai sendo tempo!

20161228


Apregoo muitas vezes que há muitas formas de amar. E de amor. Amar é tão tudo que enfiá-lo em conceitos pré definidos é limitá-lo a nós próprios e à nossa forma de amar.  Isto quando todos sabemos como o amor é muito mais que nós. No entanto, há formas de amar que dificilmente cabem no amor. Quem ama sabe que volta e meia a coisa dói. Imenso. E dói mais intensamente quanto mais se ama. Diria que faz parte, que dificilmente poderia ser de outra forma, que ou mexe com tudo em nós ou não vale a pena, e se mexe com tudo em nós não mexe apenas quando é bom. Mas apenas entendo a dor no amor quando são dores de crescimento, quando é para acrescentar, para ajustar o ser mais, que exige sempre algum tipo de poda do coração, nem sempre fácil, muitas vezes dolorosa. Será, provavelmente, a maior das ilusões deste nosso tempo, a ideia que é possível amar asseticamente, onde tudo é bom, onde nada custa. Eu incorro muitas vezes nessa ilusão  - que ainda mais vezes me acusam de eu próprio criar nos outros - e, invariavelmente, acabo por pagar o seu preço. E dói como o caraças.

20161222


Tão inevitável como eu fazer um balanço de final de ano é eu escrever aqui que é inevitável eu fazer um balanço de final de ano.

Estava agora a ler uma notícia e deparei-me com uma palavra na qual não penso muitas vezes mas que me diz muito - e porventura poderá até dar-me pistas que contribuam neste constante processo de definição pessoal: itinerante.

Este ano foi um ano de itinerâncias. Tantas que às tantas já me perdia de mim. Ontem disseram-me que o que me vale é que as pessoas que me rodeiam - e me amam - são adultas por mim e, à força de amar, me vão quase forçando a escolher os caminhos que eu deveria escolher se tivesse o hábito - que não tenho - de manter a cabeça em cima dos ombros e o coração no lugar certo. A verdade é ao longo deste ano me descobri a querer sol na eira e chuva no nabal, reconciliar o inconciliável e ficar de bem com Deus e o Diabo. Nessa mesma conversa de ontem lá fui concluindo, a custo - acontece-me muito ir descobrindo conclusões à medida que a conversa flui - que raramente tomo decisões, que vou esticando as cordas até que todas elas rebentem e eu não tenha mais alternativa.

Gosto de pensar que sou bom a acolher o que a vida me vai dando e péssimo a decidir o que quero que ela me dê. Talvez seja melhor a erguer velas e a confiar no vento que a traçar rotas. Até porque dá muito mais trabalho, convenhamos. Talvez por isso esta itinerância constante que me vai mostrando novos mundos enquanto me rouba a serenidade.

Apesar de tudo, gosto muito mais da ideia maluca de tentar abraçar a chuva que da seca de evitar a molha. Mesmo que seja justamente isso que me faça perder.

20161219


Uma das coisas mais ou menos boas de se ter filhos adultos é escutar o que eles têm a dizer de nós próprios. Uma das minhas filhas é muito crítica em relação a tudo. A começar por ela própria, esticando-se, não raras vezes, para além dos seus próprios limites. Já lhe disse que penso que irá longe em termos profissionais, embora tenha algumas dúvidas se alguma vez terá paz. No entanto, paz para ela tem um significado um pouco diferente do meu. Ela fica em paz quando consegue fazer o possível e o impossível para alterar uma qualquer situação com a qual não concorda, seja aqui ou na conchichina.
A minha paz é algo de muito mais pessoal e interior. E difícil de alcançar. E proporcionar à minha volta. E era justamente a propósito disso que conversávamos ambos no outro dia. Eu tenho andado mais silencioso, mais metido comigo mesmo, no meu mundo, como eles dizem. Os meus filhos têm muitas memórias de um pai sempre às cambalhotas com eles, sempre a rebolar pelo chão, muito físico, muito presente, muito tudo. E por isso agora estranham bastante os meus silêncios e os meus refúgios interiores. Que são cada vez maiores, mais presentes e mais evidentes. E muito estranhos, aos seus olhos.
Neste fim de semana, numa outra conversa familiar (parece que eu ando na ordem do dia lá de casa), eu tentava-me justificar alegando que sempre fora assim. E recordei os primeiros dias de Moçambique quando o pessoal de casa estranhou bastante que eu não estivesse sempre aos saltos e me perguntava insistentemente porque estava chateado. E eu lá respondia que não estava chateado, mas não era apenas aquela faceta pública que eles reconheciam mas que tinha e precisava de momentos longos de silêncio.
Nesta conversa recordaram-me que eu tenho responsabilidades para com os outros. Que fui eu quem vendeu essa imagem de poço de alegria e que agora não podia defraudar quem a espera de mim. Fiquei sem saber o que dizer. À autenticidade com que sempre fiz as coisas - quando salto apetece-me saltar, quando me recolho apetece-me o silêncio - não me apetece nada suceder com a artificialidade de quem representa um papel. O pormaior da coisa está no viver para os outros. Não tenho nada a certeza que o recolhimento me faça mais feliz que o voltar-me para os outros. Mas também o oposto me levanta sérias questões.  
Provavelmente, o melhor é nem pensar muito nisso e tentar continuar a ser autêntico. Se não entenderem... paciência!

20161215


rasgo-me. e arrependo-me. volto a rasgar-me. e a arrepender-me. não porque  tenha um melhor retrato. apenas porque não tenho outro. e este, com todos os remendos, continua a ser o único que tenho. não me custam os remendos passados. prefiro-os à fantasia de uma perfeição que nunca me atraiu por aí além. e são a minha história. ou as minhas histórias. e a dos meus fracassos. e a dos sucessos que sempre lhes seguiram. o que me custam são os remendos novos, ou os novos rasgares. que implicam remendos novos. e às tantas não há retrato que resista. até porque há partes de mim que eu já nem sei se me pertenciam ou se foram emprestadadas por outros. que me remendaram, quando me remendaram, com pedaços seus. eles, mais pobres de pedaços. eu, mais remendado. mais rico de pedaços mas mais remendado. cada vez mias remendado.

20161214



Devo estar mesmo fragilizado. Nos últimos dias escutei de várias bocas que somos um todo, e por isso o corpo reflete o que nos vai na cabeça. Sei que têm sido muitos os acontecimentos nestes últimos tempos, que têm sido tempos de despedidas. E eu sou péssimo em despedidas. Mas daí a existir alguma repercussão no corpo espero que vá uma longa distância. Senão então não antevejo grande descanso corporal para o que aí vem.

É destes tempos, com certeza, mas ainda ontem via esta foto e invejei o velhote.Ter tamanha liberdade e paz - que acredito que mesmo para o velhote existirá no momento da foto mas não será permanente - será um privilégio que eu quero ir conquistando à medida que o tempo vai passando. Como conciliar essa paz e essa liberdade com as minhas conquistas até aqui é que por vezes me tira o sono. Por um lado, amo o que faço e tenho e construí até hoje. Um longo percurso feito, como todos os percursos, de algum sacrifício mais ou menos apagado pelo sabor da felicidade, e que também por isso não me apetece muito deitar borda fora. Por outros lado, parece-me muitas vezes estúpido ficarmos amarrados ao que somos apenas porque o conquistamos.

Pelo meio, vai-se respirando e amando e sonhando e, fundamentalmente, deixando as portas entreabertas. Nem que seja para não deixar de poder sonhar com uns montes, uma guitarra e uns pássaros em cima da cabeça.

20161202


Eu orgulho-me de, regra geral, respeitar o espaço de cada um. Nem sempre acontece, ou melhor, nem sempre consigo que aconteça, particularmente com aqueles que me são mais importantes. Talvez pela proximidade (física, afetiva, emocional), em determinadas alturas não consigo discernir com clareza o que é demais e chego até a ultrapassar limites que em situações normais eu próprio me imporia com todas as escassas certezas que me habitam. Ainda recentemente me disseram que eu sou naturalmente transgressor, o que - como acontece com todas as verdades verdadinhas que apenas aqueles que me amam me dizem - a princípio estranhei mas depois entranhei tentando averiguar da veracidade da afirmação (acusação?).

Era verdade.

Um dos meus maiores anseios - creio que de toda a humanidade - é poder voltar atrás. Recuar. Refazer, Conseguir que o que aconteceu nunca tivesse acontecido. Que o que se perdeu nunca tivesse sido perdido. Que o que se ganhou permanecesse ganho. Não tanto porque não tivesse sido bom, ou memorável, não porque não tenhamos aprendido nada com isso, não porque eventualmente sintamos agora alguma culpa, ou rebates de consciência... mas apenas porque deixou marcas. E provocou afastamentos.

E, a mim, pelo menos a mim, os afastamentos doem como o caraças!

Volta e meia penso no que faria perante a possibilidade (agora estranhamente mais palpável) de me ser dito que me restaria pouco tempo de vida. Imagino-me sempre a convocar um jantar com todas aquelas pessoas com quem, em determinada altura da vida, transgredi, e se afastaram, e a reatar o contacto com elas. Valha a verdade que não seriam tantas como isso - e provavelmente algumas delas nem se recordariam dos motivos do afastamento - mas de certeza que eu partiria mais descansado.

Regresso à base. "Ao que queres ser", que é bem diferente do que vou sendo. Tentando respeitar os que amo e, sobretudo, tentando recuperar o seu respeito.

Que não seja tarde!

20161130


Por muito que espere e goste de esperar, por muito que eu pense que a minha vida é um quase permanente advento, por muito que me ache preparado para as curvas da vida, não consigo deixar de ser surpreendido. Por vezes acho que esta esperança constante, este fazer e refazer permanente, esta ausência de planos pré-definidos não passam de uma defesa mal amanhada para tentar lidar com a imponderabilidade da vida. Se não consigo controlar coisa nenhuma, porque não render-me ao nada que sou? Abro os braços, metaforicamente ou não, e preparo-me para o embate. Talvez por isso as botas de caminhar e a mochila sejam uma presença constante no meu imaginário consciente. Sinto-me sempre preparado para partir, lutando permanentemente para me libertar das amarras de cada vez que me tentam prender. Imaginem agora esta forma de sentir a vida num casamento de mais de vinte e cinco anos. Apenas posso imaginar como será para a Isabel - que nisto como em muitas coisas é o oposto de mim - lidar comigo e com a minha permanente vontade de me libertar. Evidentemente, já não peço desculpa. Posso lamentar esta forma de ser, posso até carregar a culpa, mais ou menos declaradamente, mas já não peço desculpa. Não adianta. A cada promessa, feita de vontade e alma aberta, de não voltar a acontecer, sucede sempre a vontade de partir.
Desta vez fui surpreendido da forma mais definitiva possível. e voltaram as questões, as imponderabilidades, as inevitabilidades, as angustiantes perguntas que me acompanham desde sempre. E se fosse eu? Hoje? Aqui? Agora? Que legado deixaria? Que legado apresentaria ao Pai?  

20161124


A verdade tem como hábito ser desagradável. Qualquer que ela seja. Por vezes chega cedo de mais, outras não aparece quando mais precisamos e, pelo menos a mim, surge frequentemente na forma de bofetada na cara.
Nunca fomos muito íntimos, eu e a verdade. Nunca entendo aquela coisa que a minha sogra diz de peito cheio "a verdade acima de tudo, custe o que custar, doa a quem doer", particularmente quando a vejo atirar a verdade como quem dispara uma arma. Há verdades que escondo, outras que adio, outras que suavizo. O mal é que todas acabam por dar à tona da vida respeitando a fatídica Lei de Murphy, na pior altura possível.
No mundo de fantasia que me acolhe quando estou atrapalhado a verdade fica de fora, como quem descalça os sapatos com que anda na rua para não conspurcar o ambiente. Aí, nesse mundo só meu  - muitas vezes mais real que o mundo real - não existem problemas, confusões, trapalhadas, dores ou sofrimentos. Na verdade, não existe nada. absolutamente nada. Nem eu próprio. Por isso acabo por não conseguir ficar lá muito tempo e de lá saio ainda mais atrapalhado porque a vida tem essa mania estranha de não esperar por mim.

20161123


Nesta manhã atarefada, vinha a subir as escadas em passo rápido mas ele quase me obrigou a parar. Estava lá em baixo, na arena, rodeado de miúdos muito miúdos, e sorria e metia-se com eles, e brincava e utilizava a sua sonora voz para os impressionar e intimidar... na brincadeira.
Por vezes gostava de ter o tempo e a coragem de fazer mais coisa nenhuma a não ser isto: observar aqueles que, a cada momento, me rodeiam. Apanhá-los assim, como ele estava, completamente desprevenidos, e poder apreciar o seu lado bom, aquele que o cargo ocupado força a permanecer quase escondido talvez pelo medo de se contagiar na alegria e se perder a autoridade das coisas sérias. Olhar as pessoas assim, seja num breve espaço de tempo seja num tempo mais demorado, conduz-me sempre a novas perspectivas, a novidades, a traços até então desconhecidos ou esquecidos de tão pouco vistos. Não me é nada raro alterar a minha percepção sobre alguém a partir de um momento destes. Um brilho no olhar, um gesto de atenção, uma meiguice escapada, que pode acontecer numa qualquer altura inesperada, com alguém inesperado, mas que me fazem redescobrir essa centelha de bondade que todos carregamos mas que por vezes esqueço que existe.
Talvez um dia decida andar de pernas para o ar.
Só para ver a realidade dos que me rodeiam.

20161121


Lá em casa, a discussão sobre a fé, a religião, o papa, cristianismo e afins está sempre tão aberta como qualquer outra sobre a democracia, homossexualidade, casamento, direitos e afins. A partir da altura em que os meus filhos usam a cabecinha para pensar - e fazem-no desde muito cedo - não me recordo de alguma vez ter dito aos meus filhos que "isso" não se discute. Todos encontramos espaço para discutir o que quer que seja, desde os temas mais pacíficos - onde estamos quase todos em sintonia - aos aparentemente mais fraturantes - sem a presença da avó, claro, para não lhe dar um xelique - porque para nós sempre foi muito importante discutirmos abertamente para podermos saber o que cada um pensa e aprendermos uns com os outros.
Nas discussões sobre a Igreja é frequente aperceber-me como os meus filhos andam aparentemente perdidos. Apesar do seu sentimento de pertença - para alguns apenas por causa do caldo cultural onde nasceram - são fortemente contestatários das posições mais conservadoras e, para eles, inexplicáveis. Ainda ontem, nas habitais conversas do pequeno almoço de domingo - que são quase uma instituição lá em casa - me diziam que eram cristão sem duvida nenhuma mas católicos com reservas. recordei uma conversa que tive com o meu filho há uns meses, em que ele me dizia que às vezes ficava preocupado com a sua falta de sintonia para com a Igreja. Dizia-me ele que o que o preocupava era ser o melhor que conseguia ser enquanto pessoa e fazer o melhor que podia e sabia pelos outros, e que isso era para ele muito mais importante que aquilo que a Igreja dizia. Respondi-lhe para não se preocupar, que estava no caminho certo, e que eu, como pai, apenas ficaria preocupado se ele ligasse mais às coisas da Igreja que às coisas da vida.

20161118

Há palavras ou expressões ou ditos que me perseguem desde que tenho consciência de mim. Um destes dias estava numa eucaristia e o sacerdote falava daqueles que, mesmo sem terem disso grande consciência, se servem dos outros como combustíveis para si próprios. A minha memória de elefante teletransportou-me imediatamente várias décadas, levando-me de volta a uma outra conversa. igualmente com um sacerdote, que me acusava sub-repticiamente de utilizar as pessoas como quem come laranjas: aproveitando o sumo, deitando fora a casca. Na altura eu era demasiado novo e a imagem do sacerdote tinha ainda um peso específico que me impedia de o contestar. Se um padre me dizia aquilo - apesar de não me conhecer de lado nenhum e saber mais tarde que estava a satisfazer encomendas - só podia ser verdade. E deixou marcas.
Esta hipótese assalta-me muitas vezes. Até porque a verdade é que eu me alimento das pessoas que me rodeiam: da sua sabedoria, da sua capacidade, da sua disponibilidade, do seu imenso que me falta e me faz falta. É nelas e com elas que me encontro, com alguma dor umas vezes, com muita facilidade outras, com imensa alegria sempre. Não conheço melhor forma de tentar crescer a não ser bebendo a vida a partir dos que me rodeiam. Nem sempre tenho a certeza de "desaparecer" da forma mais conveniente. Tendo a temer ser demasiado, quase sempre ilusoriamente, e ocasionalmente sinto a tentação de me esconder da responsabilidade de cuidar. Quando mo dizem e mo fazem sentir corrijo a rota mas isso não é bem aceite por todos. A minha única hipótese é ir tentando aprender sempre, continuar atento aos meus sinais e aos sinais dos que me rodeiam, medindo-me constantemente, recordando sempre a história das laranjas. E rezando para que não encontre nela motivos de verdade na minha vida.

20161117


Pelo segundo dia consecutivo a caminhada não foi junto ao mar mas no parque, a escassos metros, mas verdadeiramente um outro mundo. Uma mistura de cores e cheiros verdadeiramente avassaladores, tendo apenas o barulhos dos passos e dos patos como companhia. É muito fácil começar o dia a louvar a Deus, ali, naquele lugar, que me recorda sempre o Tozé que, provavelmente sem sequer se aperceber disso, foi quem me despertou para esta presença de Deus no belo da natureza.
Dois mundos completamente diferentes fora de mim, dois mundos ainda mais diferentes cá por dentro. A paisagem exterior ontem fora a mesma, mas a interior estava radicalmente diferente! O desassossego deu lugar à tranquilidade, o tumulto, à serenidade. Objetivamente nada mudou de um dia para o outro, não foram tomadas decisões para além das de todos os dias, não aconteceu a descoberta da cura para o cancro (e como a vou pedindo!) e o que estava por resolver continua por resolver. Não se trata de universos exteriores mas dos outros, dos que permitem ou roubam a felicidade, própria ou alheia.
Frequentemente procuramos espaço bucólicos ou entusiasmantes na esperança que eles nos contagiem, compensando o que tanta falta nos faz. Frequentemente esquecemos que esta paisagem interior tudo determina. O calor do sol até pode ser da física mas a forma como nos aquece, não. As cores do outono podem ser depressivas ou belas, a noite, assustadora ou reconfortante, o caminho, duro ou desafiante. Não é o que nos envolve que nos impõe o estado de espírito. Pode ajudar, pode atrapalhar, pode até realçar. Mas habitamos todos um mundo apenas nosso. Quando mais não seja, no segredo da nossa intimidade.

20161116


Por esta altura já devia saber que a uma bacorada saída desta boca se segue um ensinamento tendo-me como destinatário.
Face a uma crise de estômago até então por mim desconhecida, confidenciei a algumas pessoas que não sei lidar com a minha fragilidade física. "com a psicológica já estou habituado, agora a física..." Esquecera-me que enquanto a fragilidade física tem uma repercussão quase exclusivamente pessoal, os meus devaneios deixam, não raras vezes, marcas em vidas alheias. E que na verdade, isso me é ams insuportável que uma dor de estômago, por muito má que ela possa ser.

20161114


Andamos todos à procura de paz. Daquela paz que nos permite dormir à noite, andar de cabeça erguida, olharmo-nos ao espelho, falarmos com quem quer que seja sem pensarmos no que aí vem. Era eu ainda miúdo e recordo-me que essa paz não passava de uma miragem. Vivia como que temeroso, envergonhado, a sentir-me constantemente devedor dos outros e do mundo. Depois acabei por me refazer mas aprendi cedo que de uma paz assim é muito mais fácil falar que conseguir. E que, mesmo para mim, que segundo alguns dos que me rodeiam tenho uma consciência por vezes muito pouco consciente, esta é uma paz que não conheço muitas vezes. Tenho essa mania de me perscrutar quase quotidianamente, quase obsessivamente, tentando perceber quem magoei desta vez, a quem é que disse o que não devia ou deixei de o fazer a quem o devia, revendo cada gesto e cada palavra que saíram de mim. A maior parte das vezes acabo por me render à evidência do que sou, num mal conseguido exercício de baixar a fasquia, e arranjo as melhores desculpas, as mais criteriosas justificações, com o intuito de me safar de mim próprio por entre os pingos da chuva. Mas, nestas como noutras coisas, a noite não tem piedade e, por entre digladiações de eus, lá se vai o sono retemperador.
No entanto, e apesar de tudo, não acho que valha a pena a paz a todo o custo. Por vezes temos mesmo é que viver, mesmo sabendo que provavelmente nos iremos meter numa carga de trabalhos. O direito ao erro anda muitas vezes de mãos dadas com o direito à vida vivida que apenas é pacífica nos livros de contos infantis. E temos mesmo que nos incomodar, desacomodar, e avançar, por vezes mesmo contra toda a nossa racionalidade, que nos grita para que permaneçamos quietos... e em paz.
Tenho muitas vezes saudades daquela paz interior, imensa, tranquila, serena e plena. Temo muitas vezes aquela paz podre, feita de concessões e perdas de verdade.

20161110


Ainda na semana passada, a propósito de anjos e encontros e vozes de Deus, perguntava como é que sabemos que as voz de quem nos fala vem de Deus ou se estamos a ser endrominados por uma qualquer pessoa com jeito para falinhas mansas. Não importa para aqui a origem da voz. Conheço pessoas da Igreja a quem não daria ouvidos de forma alguma e outras dos bairros que escuto atentamente. Não é uma questão de proveniência, portanto. Também não dou particular interesse à idade ou condição social, que pouco ou nada têm a ver com a sabedoria que procuro. Mas então, como saber? Tivesse eu uma personalidade forte e provavelmente esta questão nem sequer se colocaria. Não que as personalidades fortes não tenham duvidas mas porque encontram sempre forma de lhes responder. Nós, os que se questionam permanentemente, é que temos mais dificuldade. Até porque a cada nova resposta entrevemos rapidamente uma nova questão. Nesse encontro, enquanto ia colocando questões, ocorreu-me que a forma de o sabermos será compararmos a voz que escutamos com a voz de Jesus. Se coincidirem, de alguma forma, na intenção, no conteúdo, na bondade e abertura e espaço, se não for atropelo para o que cada um livremente é, então estaremos no bom caminho. Provavelmente, aquela será mesmo uma voz de Deus. Mas depois temos a verdadeira prova dos nove. Olhando para as pessoas que gravitam aquela voz. Como se sentem? Como se movem? O que as move? Como são os seus olhos? Como é o seu sorriso? Como se comportam quando estão longe?
Os outros são mesmo um bom termómetro para percebermos as pessoas que somos.
E isto, esta semana, assustou-me.
Bastante!

20161109


Por vezes - sempre dolorosas vezes - descubro-me pródigo em balelas. Por vezes são os meus mais próximos que mo dizem, por vezes carinhosamente, outras de forma ríspida, provavelmente porque mereço bem o que me dizem. Uma das mais pródigas balelas saídas da minha boca tem amar como temática. É que eu normalmente acredito mesmo na imensidão de amar. Amar, não amor. Amar, um ato vivido, sentido, propositado, com destinatário concreto e definido, e não Amor, essa coisa demasiado global indefinida que pode ser tudo e nada. Encho muitas vezes a minha boca - a minha vida - com o Amar, tentando conjugá-lo com verdade, com disponibilidade, com abertura e concessão de espaço. E deixo-me enredar nas minhas próprias palavras, na minha forma muito minha  - não são todas as nossas formas muito nossas? - de amar. A tal ponto que às tantas são-me ditas muitas vezes e feitas sentir outras tantas e mais ainda que amar não chega. Que amar é pouco. que amar, mesmo vivido ou tentado na sua plenitude não chega. e que a forma balélica como amo estilhaça. E o meu mundo estilhaça. E a paisagem que me rodeia é já totalmente outra, e o que vejo a seguir nada tem a ver com o que via antes e tenho de refazer uma outra paisagem, interior, feita de estilhaços, tentando descobrir neles um outro sentido, um outro refazer, se possível sem recomeçar, sem baralhar e dar de novo. Ainda que sabendo que construir a partir de estilhaços não é construir. É, quando temos sorte, reconstruir; é, quando não temos sorte, tapar o sol com a peneira, é viver com a aparência de construir, rezando para que não haja momento, pelo menos tão cedo, em que a água entre.

20161031


Hoje não tinha ainda pousado a pasta e um aluno - um amigo! - pediu-me, em tom de brincadeira, para analisar um poema de Fernando Pessoa. Sorri imediatamente a seguir a ter-lhe passado os olhos por cima. Para mim era claro como água, como se me estivesse a ver ao espelho, ou tivesse estado estes anos (precisaria de anos para o fazer!) a tentar por no papel a inquietação que tenho por assídua companhia dia após dia, noite após noite. Disse-lhe que não percebia qual a sua dificuldade mas que o deveria analisar depois dos cinquenta. 

Eu entendo a sua dificuldade. Porque na verdade não anda longe da dificuldade de muitos dos que me rodeiam e que, volta e meia, me olham com a mesma naturalidade e compreensão com que olhariam um elefante vestido de tutu cor de rosa. A maioria das vezes não estou nem aí para tentar explicar o inexplicável e finjo recuar. Como explicaria o insaciável? Como explicaria o interminável? O ilógico, o irracional de ter permanentemente fome quando é suposto sentir-me saciado? Como explicaria esta sede nunca plenamente satisfeita sem arrasar quem me dá a sua vida, todos os dias, para me completar? Como fazer outra coisa quando sei que jamais me sentirei plenamente saciado por mais que alguns - breves - momentos?

Valha-me este e outros pessoas para me desisolar de mim! 

20161027


Eu penso na morte. Na minha morte. No que quero que façam ao meu corpo, não que considere o meu corpo algo de muito importante mas sobretudo porque considero a memória algo de muito importante. Não tenho o culto dos mortos. Não tenho o hábito de ir ao cemitério visitar aqueles que amei e que já lá estão, Não sinto essa necessidade. Recordo-os muitas vezes nas mais diversas situações, rezo-lhes algumas (não por eles, que estão junto do Pai, mas a eles, que estão junto do Pai) porque acredito que possuem agora a clarividência que nunca temos por aqui e porque acredito que me amam e ma poderão, de alguma forma, transmitir. Dificilmente o faria num cemitério que, por muito que me digam o contrário, é um lugar de mortos. E de morte.
Fiquei apreensivo esta semana ao ler a Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé. Não, eu não sou o tipo de católico que segue à risca as orientações da Igreja; Sim, eu sou o tipo de católico que está atento ao que a Igreja proclama e defende. E para mim é importante o que a Igreja proclama e defende. Mas não é absoluto. O que faço, normalmente, é ler, estudar, refletir, comparar com a minha vida e aquilo em que acredito - muito do qual a partir do evangelho - e depois, assumir como meu aquilo que é verdadeiramente meu. Foi o que eu fiz coma  Instrução. É o que tenho andado a fazer com a Instrução. Porque há muitos anos que quero ser cremado. Porque há alguns anos quero que as minhas cinzas sejam espalhadas pelos dois lugares aos quais pertenço: a minha cidade, o Porto; e Taizé. E esta Instrução veio agora trocar-me as voltas.

20161026


Naquela mesa redonda do chinês cumpria-se um sonho. Nós chegamos cedo, prerrogativa de pais, para quem o tempo já se mede de uma outra maneira, diferente, mais lenta, menos absorvente, com os segundos e os minutos a pautarem a vida num outro ritmo, provavelmente menos premente. Eles foram chegando. Aos poucos, Dois a dois. Passado pouco tempo, estávamos todos. Naquela mesa redonda do chinês a algazarra era pouco diferente da de todos os dias lá de casa. O mesmo tom de conversa. as mesmas conversas cruzadas, os mesmos risos, a mesa alegria, a mesma partilha. E eu, ora a participar ativamente, ora a brincar com o tabuleiro giratório daquela mesa redonda do chinês - tenho que arranjar uma coisa destas - ora observando-os, completamente embevecido, imensamente grato. Estão enormes, os meus filhos!

Estamos naquela fase da vida e que a conciliação de horários e disponibilidades é cada vez mais difícil e por isso paira como que uma urgência sempre que estamos juntos. As refeições com todos vão sendo cada vez menos frequentes até serem cada vez mais raras, e mesmo as férias exigem já uma reserva prévia com meses de antecedência. Andamos todos uns para cada canto, em lugares diferentes, em países diferentes, por vezes até em continentes diferentes. Sinal dos tempos de uma miúdos que foram crescendo sob o nosso olhar atento e que agora vão sendo cada vez mais homens e mulheres com voz e vida própria e, Graças a Deus, ativa.

Naquela mesa redonda do chinês, ontem, cumpria-se um sonho, O nosso sonho. O meu sonho. Não me lembro de desejar ser rico (dava jeito!) ou ter casas enormes (não me fazia mal!) ou barcos (um dia destes...!) mas lembro-me sempre de desejar ter filhos, muitos, à volta da mesa, em alegre algazarra. Ontem aconteceu naquela mesa redonda do chinês, No futuro será em qualquer outra mesa. Desde que estejamos todos como ontem, felizes, basta.

Para que se cumpra a minha vida.

20161025


Conhecemo-nos há alguns anos. Esta, claro, é apenas uma das muitas formas de o dizer. Na verdade, não nos conhecemos. Conhecíamos a mesma pessoa e, por seu intermédio, passamos algum - escasso - tempo juntos. Nunca fomos íntimos, nunca passamos mais que algum tempo juntos e, sempre que o fizemos, havia, pelo menos da minha parte, aquele misto de identificação e desafio intimidante. Intimidam-me sempre as pessoas com personalidade forte, mas no sentido de me fazer correr para elas, como uma mariposa que fica fascinada pela luz, apesar de saber que poderá muito bem ser o seu fim, Os amorfos nunca me disseram nada, absolutamente nada, como se eu precisasse da vertigem do abismo - ainda que por interposta vida - para me sentir vivo. Sendo do sexo masculino então, sinto uma espécie de desafio nunca claramente assumido, devidamente acompanhado pela voz do speaker de um combate de boxe "de um lado....
Vamos começando a conhecer-nos agora, alguns anos depois. O mesmo fascínio por mim sentido, a mesma intimidação, devidamente certificada, agora pelo "poderia muito bem ser eu." Vou registando a distância que nos separa, fruto das vicissitudes da vida de cada um. Ao lado do seu tumulto constante eu pareço até uma pessoa serena, pacificada, mentalmente arrumada, o que desmente tudo aquilo que sinto cá por dentro quase todos os dias. Os meus trambolhões interiores parecem-me pequenas quedas insignificantes sempre que conversamos. À admiração de si (como é possível resistir a tanta pancada da vida?) alia-se agora, impercetivelmente, um sentimento de gratidão. Por não ter tido que passar pelo mesmo - com consequências certamente devastadoras para mim - mas, sobretudo, pela oportunidade de poder aprender com quem andou pelos fundos e não se deixou ficar por lá.
Pelo menos aparentemente.

20161024


Frequentemente, digo que sou muito olhos. Sou-o, efetivamente. Desde sempre! Numa pessoa, qualquer que seja a sua idade, a primeira coisa que me salta à vista é o seu olhar. Não a cor dos olhos, que essa me passa completamente ao lado e será mais tarde atribuída por mim em função do que me diz, mas o mundo que revela, à superfície ou na profundidade. Quando era mais novo era fortemente gozado por causa disso. Para começar, porque olhava com a mesma atenção, curiosidade e gozo os olhos de quem quer que fosse, independentemente do seu género ou idade. E isso, para os outros, era muito esquisito! Depois, porque raramente reparava em quaisquer outros atributos físicos, muito mais em voga na altura, mas que me passavam completamente despercebidos. Ainda hoje, o critério mais importante continua a ser o olhar. É-me muito difícil gostar de alguém cujo olhar não me diz coisa nenhuma. Para que isso aconteça tenho que apelar a uma série de racionalidades que me levem mais longe que a minha perceção inicial mas, mesmo que, mesmo quando chego a gostar, gosto apesar do olhar, e instintivamente me impedem de me entregar sem reservas, como acontece com aqueles em cujo olhar confio.
Claro que já me correu mal, claro que há olhares que me inspiraram uma confiança nunca confirmada pela realidade, claro que há outros dos quais desconfiei e se revelaram pessoas extraordinárias. Mas é daquelas coisas. Como muitas na minha vida.

20161023




Fazer alguém feliz, ser motivo de felicidade - mais que alegria, fugaz, felicidade mesmo, mais interior mas mais profunda e duradoura - é uma tarefa árdua. Pelo menos para mim. Conheço pessoas extremamente felizardas que o conseguem com uma naturalidade tal que parece que lhes basta respirar para que os outros sejam felizes. Pessoas graciosas, leves, elas próprias intrinsecamente felizes ao ponto de irradiarem uma felicidade genuína, quase infantil, naquilo que a infância tem de melhor. Eu não consigo. Não com essa naturalidade. E mesmo quando o consigo é como que arrancada a ferros. Pensada. Construída. Intencional. Com destinatário.

Ironicamente, eu, que gosto tanto do Principezinho, levo muitas vezes nas orelhas por não conseguir assumir a responsabilidade de cuidar devidamente daqueles que cativo. Provavelmente faço com eles o que faço com quase tudo na vida: vivo-os muito intensamente, desligo muito rapidamente. Numa das últimas conversas à volta dessa temática, dei por mim a argumentar que esse desligar se devia a três factores: uma primeira infância com muitas moradas e muitos refazeres de relações; um complexo de último (mais vale ser recordado que me sentir imposto); uma clara tendência para viver num mundo de fantasia onde convivo, na minha cabeça, com todos os ausentes da minha realidade.

Por vezes acredito que as alturas em que consigo levar mais felicidade são aquelas em que me consigo dedicar totalmente a alguém. Pode acontecer numa breve conversa ou uma caminhada de vários dias, ou meses ou até anos. Mas quando acontece eu não estou, apenas. Eu sou. De corpo e alma.

Esse ir sendo com os outros contribui para que eu vá sendo vários, muitos, espalhados, no tempo e no espaço. Onde a falta de consistência vai sendo compensada pela enorme intensidade com que vou sendo. Em cada um. Em cada momento.

20161020


Nos vários mundos que me habitam, ora coincidentes ora alternados, ora em rebuliço ora em pacificada coexistência, há um que detesto particularmente, que constitui o meu ódio de estimação, porque odeio essa pessoa que volta e meia também me habita: o ingrato. Tenho dias, ou momentos, ou alturas, em que ando zangado com o mundo e com tudo e todos os que me rodeiam, Uma zanga séria e profunda que me leva a praguejar num constante e abafado silêncio, numa sensação horrível que sou credor do mundo e que todos me devem prestar justíssima vassalagem. Uma zanga alicerçada na mais profunda das incompreensões, de mim para mim, claro, mas sentida e multiplicada como sendo dos outros para mim, onde ninguém me entende, ninguém me dá o devido valor, ninguém se digna sequer de colocar o pedestal, estender a passadeira, instalar o púlpito a partir do qual tudo e todos dão loas pela minha simples existência. São dias, ou momentos, ou alturas, de profunda solidão, de alguma depressão, que me toldam o olhar e me roubam a esperança.

E depois chegas tu, e desmontas-me, em meia dúzia de palavras, em meia dúzia de olhares aparentemente distanciados, em meia dúzia de discretas chamadas à pedra e eu, lentamente, começo a redescobrir-me o cavaleiro da triste figura.

E dou Graças. Apenas por existires na minha vida!

20161018





Há muitos anos deram-me um livro do Paulo Coelho como indireta. As nossas muitas conversas e partilhas desembocavam sempre na posse. Ou melhor, na minha clara pulsão para de alguma forma controlar aqueles que amo. Quem mo ofereceu não duvidava do meu amor, da minha capacidade de amar mas, pelo contrário, da forma total e totalizante com que o fazia, dizendo-me algumas vezes que corria o risco de asfixiar. Naturalmente, como sempre me acontece com os que me amam verdadeira e, sobretudo, desprendidamente, cocacolizei aquela evidente idiotice, estranhando-a antes e entranhando-a depois de pensar nela com calma. E com alma. O que é certo é que aquele livro e aquelas conversas e aquelas idiotices evidentes transformaram a minha forma de amar.
Os meus filhos que o digam!

Hoje acordei muito tentado a fazer uma pesquisa numa qualquer rede social. Seja pelas conversas que tenho noite dentro, seja pelos sonhos que tenho noite fora, seja pela vida que me pulsa a cada momento, o que é certo é que tenho tido por companhia uma questão daquelas que, sendo simples, podem ser traiçoeiras.
Afinal, amar serve para quê?

20161013


Sou um criador. De mundos. Alternativos. Alternados. De vidas. Alternativas. Alternadas. Que, no meu imaginário, são muito pouco imaginárias. Têm vida vivida, quotidiana, paralela, e são tão ou mais reais quanto a vida real, aquela que é suposto ser por mim vivida. Em cada uma dessas vidas eu sou um outro que não eu, com sentimentos próprios e alegrias próprias e tristezas próprias e razões próprias e por vezes naturalmente contraditórias em função da vida que é vivida paralelamente a uma qualquer oura vida que eventualmente será vivida num outro momento. Gostaria de poder afirmar, taxativamente, indubitavelmente, que todas essas vidas me têm em comum, como ator principal, numa peça por mim escrita e cujo desenlace é por mim controlado, mas a sensação que tenho a maioria das vezes é justamente a oposta, que eu sou apenas mais um, pequeno, insignificante figurante, que a maior parte do tempo se olha a si mesmo, a partir de um canto, escuro, à espera de me ver, e à minha construção, estatelados ao comprido. E que, uma vez estatelado, se empenha na laboriosa construção de um outro mundo, com uma outra vida, com um outro imaginário apenso à realidade, onde eu possa ser um outro eu. Um melhor eu. Para variar.

20161011



Dizia-lhe, ontem, apenas ontem, como me tinha sentido irremediavelmente só. Não o fiz muitas vezes, ao longo de todos estes anos, não sei se por medo,se por comodidade, se por entender, como ainda entendo, que é uma coisa apenas minha e ninguém tem nada a ver com isso a não ser que eu o queira partilhar. Depois da surpresa - e há sempre surpresa quando lhe digo algo deste género - disse-me que algures entre a minha solidão desejada e a indesejada espera pela minha necessidade de encontro. Que também existe. E disse-me aquela que é a minha maior evidência, que sou muito complicado. Obrigadinho. Já o sabia. Desde sempre!

Naquele primeiro banco da nossa igreja deu-se o click que fez com que a solidão se eclipsasse com a mesma rapidez e naturalidade com que chegara. Nem sei bem o que o padre dissera, sei que me reconstruiu por dentro - "serás restaurador de ruas destruídas" - e me fez encarar o resto do dia de domingo com outro espírito.

Ainda ontem, no seguimento da conversa a caminho de casa, tentei explicar - como o mesmo resultado nulo de sempre - a importância da minha fé, particularmente naquelas alturas. Acredito que é uma fé viva, mas não é uma fé natural, intrínseca, contra tudo e  contra todos, como a de algumas pessoas que conheço e admiro. Diria que é uma fé procurada, porventura razão no início do processo e, de certeza, coração no seu desenlace. É uma fé que que procuro, racionalmente, para me tentar balizar, para me tentar encaixar na vida mas, sobretudo, dentro de mim., Em quem eu sou. Diria que é uma fé que encontra maior segurança e certeza na resposta à pergunta de Jesus:"Zé, tu amas-me?" que na pergunta que me fora feita, dias antes: "Zé, tu amas-te?"

20161007


Hoje quase almoçava sozinho. Não consegui. Quando estou assim, quando não me recomendo, uma amiga gosta de me provocar e pergunta-me se estou no meu momento autista. Sorrio. Sorrio apenas. Nestes dias a última coisa que me apetece é estar a justificar o que quer que seja. Nestes dias tenho a sensação que lambo feridas. E só me apetecia estar assim, num qualquer canto escuro, só completamente só, deliciosamente só, até que a tristeza passe.

Nem sempre há um motivo palpável para esta tristeza. É um misto de sensação de perda com necessidade premente de recolhimento. Que acontece quando sinto que estou a perder (me?) ou naquele momento de distensão que acontece logo a seguir a uma tarefa que exigiu muito de mim. Ou as duas coisas, que andam muitas vezes de mãos dadas. Como se a respiração tivesse estado sustida uns dias e precisasse agora de encher de novo os pulmões. Quando estou assim, quando não me recomendo e me refugio, uma amiga gosta de me provocar e diz-e que eu gosto é de ser resgatado. Talvez. Não faço a mínima ideia. E hoje não me apetece nada estar a pensar nisso. Apetece-e apenas e só ficar assim. Só. Completamente só. Deliciosamente só. A lamber feridas até que esta tristeza passe.

20161005



"O suicídio é sempre um assassínio de um outro." Impressionou-me, esta frase. Muito! Talvez porque ao longo da minha vida me tenha deparado com vários suicídios, uns levados a cabo com sucesso, outros fracassados - sintomático, quando o sucesso de algo leva à morte e o seu fracasso conduz à vida! - de pessoas que me eram queridas. À tremenda surpresa do acontecimento sucedia-se sempre a tremenda culpa de não ter estado presente quando era mais necessário. Não importa para o caso se vivia longe, se não tinha a mínima hipótese de saber, se ninguém o suspeitava ou se andava distraído. Importa sim que eu não estava lá. Qualquer que tivesse sido o motivo, eu não estava lá. Para poder conversar, para poder olhar nos olhos, para poder estender a mão e dizer que nada é tão mau que justifique tamanha decisão.

Durante alguns meses não consegui encarar o seu irmão. A notícia da morte atingira-me com uma violência que até então eu desconhecia, ao ponto de quase correr para poder estar junto do seu corpo, apesar do seu corpo ser já apenas um corpo, vazio de vida, abandonado pela vida a que ele próprio havia posto um fim. Alguns anos antes ajudáramos, juntos, o seu irmão a aprender a tocar os primeiros acordes numa guitarra. Nessa altura passávamos imenso tempo juntos, a tocar e a cantar, a descobrir novas músicas num tempo em que não existia ainda a internet, e a descobrir novas vozes que ficassem bem. Depois veio a vida, a minha e a dele, e tudo pouco passava de um cumprimento de vez em quando, e a notícia da sua morte me atingiu em cheio. Uns meses depois, o seu irmão apareceu em minha casa. De surpresa. Para minha surpresa. Aquela culpa de não ter estado presente continuava bem viva e, pensava eu, era mutuamente sentida. Com aquela conversa libertei-me de uma boa parte dessa culpa. A restante permanece, juntamente com tantas outras!

20161003



Ao vê-los, no campo, a dirigir com mestria a partilha dos grupos dos ainda mais miúdos que eles próprios, senti um imenso orgulho. A minha ganapada está a crescer e a preparar-se para outros voos. Mais altos. Mais exigentes. Talvez vá sendo tempo de, lentamente, progressivamente, ir eu voando a um ritmo paulatinamente mais baixo. Até porque o corpo já começa a dar sinais claros de dificuldade em acompanhar ritmos.

Quando acompanhei o RH+ (que saudades do RH+!) deparei-me com um problema que, já na altura, não era novo para mim. A minha intenção sempre tivera sido a de lhes dar asas, de lhes dar ferramentas para a vida de adultos que se avizinhava. Quando quis soltá-los, suavemente, percebi que continuavam dependentes, demasiado dependentes para o meu gosto, demasiado colados a mim para o que precisavam, e acabei por largá-los repentinamente. E dolorosamente. Para eles. E para mim. Prometi-me na altura ficar mais atento para que não voltasse a acontecer.

Recordo com particular satisfação uma oração do 24 Minutos ComTigo do ano passado na qual não pude participar logo desde o início e que, quando cheguei lá, corria às mil maravilhas. Lembro-me de me emocionar, sentado ao fundo da capela, a vê-los a tocar e a rezar. Durante este fim de semana senti algo de semelhante ao vê-los a coordenar os pequenos grupos de tal forma que nem sequer foram necessários os adultos para os vigiar nas ruas de Fátima.

Algumas das brincadeiras com os meus filhos homens eram particularmente exigentes a nível físico. E eu, que nunca deixei os meus filhos ganhar em nada apenas porque eram meus filhos, ia-me apercebendo do imenso gozo que eles tinham de cada vez que me conseguiam ganhar ao que quer que seja, um gozo apenas comparável ao imenso baile que me davam nos dias seguintes a dizerem-me que estava velho.

Se eles soubessem como a maior vitória de qualquer ai é ser ultrapassado pelos seus filhos!

20160928


Tendo a olhar para as pessoas a partir de uma perspetiva enquinada. De baixo para cima. Passei anos a tentar perceber porque era assim, porque os outros me pareciam sempre mais tudo, mais inteligentes, mais bonitos, mais simpáticos, mais sortudos, mais queridos por todos, a começar, claro está, por mim. Talvez tivesse sido a infância, talvez tivessem sido as circunstâncias da minha vida, talvez toda a gente seja assim e apenas eu penso nisso, sei lá, mas a verdade é que quando começo a conhecer alguém a minha primeira sensação é de gratidão. Por me permitirem conhecer, por me permitirem entrar na sua vida, por me permitirem fazer caminho. Talvez porque acredite muito nisso: que basta conhecer para se fazer caminho. Essa gratidão - que me é inerente e quase permanente - faz com que me apresente desarmado. E, não raras vezes, ajuda a desarmar.

Existiu um tempo, contudo, em que não fui assim. Armei-me aos cágados, compensando com o que tinha tudo aquilo que deixara de ser. Dei-me mal, claro. Estrondosamente mal. E aprendi. Espero eu!

No entanto, apesar de já o conseguir aceitar sem questionar em demasia, nem sempre gosto dessa minha perspetiva. Porque uma visão debaixo para cima, não sendo a pior de todas, dificilmente é a correta. O que me vale é que essa vou conseguindo tê-la. À medida que me vão puxando o olhar para cima.

20160926



Não. Ainda não voltei. Refugiei-me lá, no meu mundo, meu apenas, a tentar colocar a cabeça em ordem, a tentar silenciar a gritaria, a escolher possibilidades, alternativas, caminhos. Refugio-me lá cada vez mais frequentemente, numa espécie de regresso às origens, que se acentua à medida que a idade vai avançando, Com cada vez menos pachorra para tricas, com cada vez menos vontade de me justificar e tentar explicar processos que nem eu sem muito bem como acontecem cá por dentro, com cada vez maior ânsia de meter pés a caminho, por fora e por dentro, onde apenas o passo seguinte importa, por vezes sem rumo, por vezes sem rota, por vezes sem outro destino que não o que vou tendo diante do olhar a cada passo dado. Ou sonhado!

Mentiria se não dissesse que me assusta um bocado, este afastamento, cada vez mais presente, cada vez mais assíduo. Porque me é confortável, cómodo, natural. Por vezes é até desafiante, colocando-me em percursos interiores poucas vezes percorridos, onde a cada nova paisagem descubro um novo desafio, ou uma nova leitura sobre o que me vai acontecendo. Mas afasta-me. Dos outros, dos que me provocam e contestam e me fazem crescer, dos que me apoiam e incentivam e me fazem crescer, dos que comigo rezam e cantam e me fazem crescer.

20160923



Pronto prévio: eu acredito no amor incondicional. Eu próprio, assim como quase todos os pais (mesmo aqueles que aparentemente não amam da maneira que entendemos ser melhor), vivo um amor perfeitamente incondicional há mais de 25 anos, que se tem prolongado no tempo e que se prolongará independentemente do que aconteça nas nossas vidas. Esse é o amor verdadeiramente incondicional que eu conheço: sempre total e totalizante, sempre arrebatador, sempre ardente, sempre imenso, pleno e infinito. Mas o amor de pai não é, de todo, um amor desligado. É  amor atento, nem que seja pelo canto do olho, é um amor presente, nem que se esteja longe, é um amor intrínseco, nem que seja subvalorizado.

Eu não acredito num amor a dois incondicional. Num amor onde seja permitido tudo, sem retorno, sem partilha, sem cumplicidade, sem construção, sem futuro. Amor a dois exige reciprocidade. Sem essa reciprocidade - que pode, ela sim, assumir muitas formas - é peso, é dependência, é doença. E ânsia de libertação. Que é o oposto de amar.

Para mim, o amor que está mais próximo da incondicionalidade e do desapego - e que por isso para mim é sublime! - é a amizade. Quem mais nos diz olhos nos olhos o que não gostamos mas precisamos tanto de ouvir? Quem mais se preocupa mais com o nosso próprio rumo que com a possibilidade de nos perder? Quem mais parte e regressa, uma e outra vez, depois de um mal-entendido, de umas palavras mal medidas, de umas atitudes precipitadas? Quem mais nos encontra no meio da rua depois de meses ou anos de separação e conversa com a naturalidade da retoma das conversas nunca interrompidas? Quem mais, tendo vida para além de nós, nos escuta como se apenas nós existíssemos?


20160916


Os ingredientes de um bom amigo são fáceis de imaginar: amar muito, aceitar algumas coisas, vontade de mudar as mais graves, frontalidade, clareza e meiguice em doses generosas e convenientemente aplicadas, amar muito, amar muito amar muito. Não é fácil que tudo isto coexista numa pessoa só. É extremamente raro que essa pessoa nos conheça e ainda por cima goste de nós o suficiente para aplicar aquela ou outra fórmula qualquer que faça de nós pessoas melhores. Por isso um bom amigo (sem qualquer distinção de género ou idade) nos é tão precioso!

Conheço pessoas que fazem uma gestão racional dos amigos. Escolhem o que dizem, quando o dizem, reservam lugares e direitos, num cuidadoso e perspicaz jogo de luzes e sombras com o intuito de salvaguardar posições interiores. Eu, nestas como em todas as coisas importantes, sou um completo estouvado. Digo o que me vai na alma, falo de mais ou de menos, ajo incoerentemente, sem qualquer apetência para a avaliação cuidadosa das consequência dos meus atos ou palavras, genuina e ingenuamente confiante que um bom abraço sentido, um beijo na testa e um encontro do olhar é na esmagadora maioria das vezes a resposta mais eficaz para os problemas do mundo. Pelo menos comigo funciona. Particularmente quando cometo as minhas maiores camelices. Que são frequentes. 

20160914


"Não faço isto por promessa. É apenas para limpar a cabeça. Enquanto caminho não penso em mais nada."

Tirando o amor que nos temos, eu e o meu irmão não temos muito em comum. Dez anos mais novo que eu, é de uma outra geração e ainda por cima apanhou uma dinâmica familiar muito diferente daquela que eu apanhei, com todas as coisas boas e menos boas que isso implica. Não nos vemos nem conversamos muitas vezes - à semelhança do que acontece também com os meus pais e a minha irmã - porque existimos em mundos diferentes, mas sabemos da importância que temos uns nos outros.

Desta vez o pretexto do encontro foi uma festa de aniversário e às tantas a conversa fluiu para as nossas peregrinações a pé: Fátima, a dele; Santiago, a minha. Apesar de ambos termos uma vivência cristã assídua e importante para as nossas vidas sabemos que "peregrinação" é um termo exagerado para o que fazemos. Caminhamos, sobretudo, para nos encontrarmos no caminho e se nesse  encontro reencontramos e recentramos a nossa fé é mais por consequência que por causa. Nenhum de nós acredita num Deus que se compadece pela dor auto-infligida mas num Deus que nos habita e espera que Lhe demos espaço e oportunidade para fazer caminho em nós.

Não sei se será pela antecipação desse encontro profundo, mas existe em mim uma alegria interior quando estou de mochila às costas que dificilmente encontro noutra situação. O facto de apenas ter que me preocupar com que um pé suceda ao outro e deixar com isso que a cabeça, o coração e a alma e todo o meus ser se preencha com o que vai acontecendo dentro e fora de mim, faz com que aceite com toda a naturalidade as dores de pés, de articulações, de costas, de músculos - que nestas circunstâncias até nos são mais "visíveis" - como um suave preço a pagar por tamanho mergulho.

Porque o que conta. mesmo, são os quilómetros que fazemos em cada jornada. Dentro de nós.

20160913


Hoje andamos à volta do recomeçar.

As pessoas certinhas na vida e seguras nas convicções normalmente não precisam de recomeçar nada. Mesmo quando cometem erros encaram-nos com absoluta normalidade - eventualmente recriminando-se com severidade - e retomam o seu caminho com a mesma normalidade. Não entendem por isso a necessidade de recomeçar. Para elas, as regras são claras e distintas e quem falha deve ser naturalmente penalizado por isso - como elas próprias se autopenalizam por isso. Recomeçar implica um corte e esse corte não permite entender que se fez mal e não entender que se fez mal propicia um novo erro. Simples e eficaz.

As pessoas erradas na vida e sempre à procura de novas convicções precisam de recomeçar sempre. Para quem vive na procura, os erros são mais frequentes que as certezas encontradas e a auto-satisfação é sempre efémera. Todo o ponto de chegada rapidamente se torna novo ponto de partida e necessidade de... recomeçar. A frustração do erro é rapidamente substituída pelas possibilidades de futuro que fervilham e impulsionam para novo risco, novo arrojo e certeza de que agora é que é... até à próxima!

20160912


Não acredito em coincidências. Nem sei bem quantas vezes comecei com esta afirmação. Porque não acredito mesmo em coincidências. Acredito em pessoas e situações e momentos que Deus nos vai colocando no caminho deixando-nos a parte da resposta que queremos dar a essas pessoas, situações ou momentos.

Se há algo que tenho imensa dificuldade em discernir é o papel das pessoas na minha vida. O meu papel nas suas vidas já está despido de ilusões - salvo algumas raridades, chego, permaneço por curto espaço de tempo, e seguem à sua vidinha, como deve ser. Muito mais complexa é a sua presença cá por dentro, que teima em permanecer apesar do longe e da distância, a operar mudanças significativas na forma como vejo e vivo a vida. Não chegam de visita mas instalam-se, de armas e bagagens, no seu espaço próprio, nunca desocupado pelas memórias comuns.

Nunca consegui deixar ir. Por mais que possa ser a atitude certa, por mais que eventualmente magoe menos, por mais argumentos racionais que possa ter, deixar ir é tarefa impossível para mim. Acabo sempre por mascarar a ausência, fantasiar a presença, numa tentativa por vezes idiota de prolongar a presença, ainda que meramente ilusória, ainda que apenas cá por dentro.

20160911

Terminado mais um Santiago, inicia-se mais um ano. Aponto no meu calendário as minhas atividades já marcadas e assusto-me. Como sempre, vejo-o carregado de várias cores e antecipo um ano carregado de sem tempo, de correria, de dificuldade para a introspeção, meditação e oração. À semelhança no ano passado, e do ano anterior, empenhar-me-ei em conseguir um espaço apenas meu, um espaço de encontro comigo próprio, essencial para sopesar o que se passa dentro com o que se passa fora.
Essencial, meu caro Zé. Independentemente do que te possam dizer!

20160815


Recordo o verão da minha infância com saudade. Não apenas as intermináveis brincadeiras de rua, que terminavam já a noite ia alta, ou as idas à praia com o tijolo a tocar a altos berros no velhinho 88 que ia de São Roque ao Castelo do Queijo. Nem sequer os naturais e desejáveis amores de verão, que tinham tanto de intensos como de fugazes, inevitavelmente levados pelas águas das primeiras chuvas. Recordo particularmente os imensos momentos que tinha apenas comigo, e os meus livros e os dias inteiros para ler. Recordo as descobertas que fiz através da literatura, as coleções que comprava e vendia no velho alfarrabista do Bonjardim, que me devia achar alguma piada porque me dava mais livros que aqueles que eu lhe entregava. E depois, começada a escola, recordo o caminho interminável, sempre percorrido a pé porque não havia autocarro, pelo menos duas vezes por dia, outros bem mais, ou porque vinha almoçar a casa, ou porque ia aos treinos de uma das muitas atividades desportivas que fui tendo. Naqueles três quilómetros aprendi a viajar cá por dentro, a rever histórias, a preparar futuros, a fazer planos mil vezes desfeitos e refeitos porque cada caminhada era suficientemente longa para imaginar mil vidas. E como eu as imaginava!
Desse tempo ficaram estas minhas duas vertentes da minha personalidade, tão antagónicas quanto imprescindíveis para o meu equilíbrio: a alegria de estar com os outros quando estou com os outros; a necessidade de estar comigo quando estou comigo. Por vezes penso que a segunda, a da reclusão do mundo, é prevalente, é mais importante, é mais eu. Que eu estou melhor quando estou apenas comigo próprio, com as minhas memórias, com os meus sonhos e fantasmas. No entanto, fazem-me sentir muitas vezes que sou melhor com os outros, quando não me recluo mas deixo-me ser nos outros e deixo que os outros sejam em mim. É aí que se revela sempre o melhor de mim, e chego à conclusão que é aí que me aligeiro e me liberto de mim próprio.
As minhas últimas insónias têm sido preenchidas por Santiago. Faço e desfaço mochilas, aponto mentalmente o que não pode faltar, engendro esquemas para que caiba tudo e pese pouco. Santiago ocupa já uma boa parte do meu consciente e inconsciente. Num isto de memória e projeção, vejo-me a caminhar, invariavelmente no fim da fila, a conversar brevemente com quem me acompanha na ocasião e a deixar a mente esvoaçar por entre passadas mais ou menos ritmadas e paisagens mais ou menos deslumbrantes. Talvez por isso goste tanto da ida a Santiago: permite-me um misto de isolamento e partilha, devidamente acompanhado pela oração interior e exterior; permite-me ter gente boa à minha volta sem no entanto comprometer a minha necessidade de caminhar comigo mesmo; permite-me sair de mim a qualquer momento quando sou necessário e acolher quem se apercebe que também eu preciso de ajuda.
Santiago aproxima-se.
Deus seja louvado!

20160804


"Olá. O meu nome é Zé Pinho. Sou casado, tenho cinco filhos."

Já muitos miúdos e graúdos ouviram isto da minha boca. É fácil de dizer e diz o essencial de mim - como é dito num contexto de formação católica, a outra parte que me é essencial está subentendida.

Desde sempre que tivemos muitos filhos. Que agora estão um pouco espalhados. Na próxima semana terei uma em Vila Real, outra nem sei bem mas sei que é numa aldeia do interior (um pai não consegue saber tudo!) outra no Algarve a trabalhar e outro na Tanzánia, em missão. E o mais novo já disse que tem que arranjar maneira de se por ao fresco, que não está para servir de velinha as férias todas. Mesmo aquela tradicional semana de todos juntos não foi possível este ano. Uns iam e outros vinham mas nunca estivemos todos ao mesmo tempo.

Viver com os filhos longe é uma aprendizagem. Mais uma. Se por um lado ansiávamos ambos que esta altura chegasse, se ansiávamos pelo nosso tempo, sem darmos justificações, sem pensarmos em  jantares a horas e em roupas e em limpezas; por outro lado vemo-nos agora recuados aos tempos em que namorávamos: os passeios a dois, os jantares a dois, as caminhadas a dois, só que desta vez por entre mensagens de facebook e chamadas para e dos nossos filhos. É bom. É muito bom. Mas não deixa de ser um bocadinho esquisito. E inteiramente novo!

Viver a dois é sempre uma aprendizagem. Exige ajustamento constante, descoberta constante, redescoberta constante, não sendo para isso muito relevante se estamos juntos há três ou há trinta anos. Os desafios que se nos colocam hoje são muito diferentes daqueles que se se nos colocaram ao longo dos últimos trinta anos. São novos, são diferentes, são outros, que nos exigem novas avaliações e novas respostas... e novos ajustes. Constantemente.

Na semana passada pensava acerca de uma frase que deito muitas vezes da boca para fora: "não acredito em casamentos para sempre; acredito em casamentos de todos os dias." É verdade. Mas não é menos verdade que um casamento de todos os dias ao longo de trinta anos tem um outro peso, um outro lastro, uma história feita de cuidar mútuo que dá outro tipo de retorno.... e de desafios... e de segurança!

Estas férias têm sido também isso: um tempo de redescoberta. Mútua e de cada um de nós nos outros. Umas ricas férias!

20160720



Disse que tinha que ir abandonando os pontos de interrogação.

Surpreendi-me quando verifiquei que conseguia meter toda a minha vida numa pequena colagem de frases e imagens escolhidas quase ao acaso. Não acredito muito em acasos. Acredito com maior facilidade em milagres e, particularmente, em sinais de Deus. Os acasos acontecem quando andamos à procura deles e estamos atentos aos sinais. Parece que as coisas caem no nosso colo vindas do nada quando, na realidade, estiveram sempre lá e apenas lhes demos um outro sentido. Ter, diante de mim, aquele pequeno cartaz com frases e imagens recortadas a partir de duas ou três revistas e ver aí tudo o que me é verdadeiramente importante foi pouco menos que uma revelação. Principalmente quando elevei o olhar e me comparei com outras colagens e escutei as suas explicações. Creio que foi a primeira vez que tive a sensação que eu estaria mais arrumado que confuso, mais assente que navegante, mas convicto que inseguro.

Tens que ir abandonando os pontos de interrogação. E passar ao ponto final seguido do de exclamação.

Não sei se o consigo. Muito menos se o quero. Sempre me dei bem na dúvida, na interrogação constante, na procura incessante, que e fez sempre ir mais além. Claro que tenho momentos em que  que mais desejo é um pouco mais de certezas, mas, no geral, é na dúvida que sinto que pertenço. É a questionar tudo, a refazer tudo, a desmontar para voltar a montar, peça por peça, mesmo que a sua aparência final seja exatamente igual à que a antecedia.

Será que me quero deixar de questionar? Será que me quero acomodar? Será que estou preparado para passar do "quem sou eu?" para o "este sou eu.!"?

Não me parece! Se algum dia isso acontecer, terá que acontecer porque não sinta necessidade de procurar. Até aí...

20160712


Não acredito - nunca acreditei! - que a fé é um dom destinado apenas a alguns - poucos - predestinados; nunca acreditei que os milagres - nos quais acredito - tenham um alvo específico, e muto menos que esse alvo seja alguém que é comummente visto como "puro" ou "crente"; nunca acreditei em pessoas particularmente "puras" ou "crentes", sem os inúmeros fantasmas que nos habitam e nos obrigam a discernir; nunca acreditei em supers - super homens, super mulheres, super poderes, super iluminados - e muito menos em supers à custa de uma bênção particular divina; nunca acreditei que um terço pendurado no espelho do carro ou no bolso traga mais sorte que um trevo de quatro folhas ou uma perna de porco embalsamada; nunca acreditei em fezinhas ou fezadas ou rezas ou feitiçarias ou responsos ou o que quer que seja que pretendam atrais um olhar especial sobre o que quer que seja.

Acredito num Deus que nos olha com amor, por amor, e com amor cuida de cada um de nós, de igual forma. Acredito em pessoas, com fantasmas, com medos, com coragem, com risos e choros, com choros e risos, e maus feitios e bons feitios, e bons momentos e maus momentos, capazes dos melhores gestos e dos piores gestos. Acredito no pequeno, no simples, no comum, que volta e meia é capaz do grandioso, do extraordinário, do incomum, mas que, passada a necessidade, é capaz de voltar ao pequeno, ao simples, ao comum, com a mesma alegria e serenidade com que aí habitava antes, com a mesma felicidade profunda que aí sentia antes. Acredito na oração, no poder da oração, que nos configura com Deus, que nos puxa para Deus, que nos faz desejar ser um pouco mais como Deus, naquilo que Deus tem de serviço, de fazer-se pequeno, de fazer os outros maiores. Acredito no reconhecimento do amor que Deus tem por cada um de nós, que Deus tem por mim, e que me faz sentir feliz por eu ser eu, que faz com que cada um se sinta feliz por ser quem é, único e irrepetível. com tudo aquilo que faz com que cada um seja exactamente o que verdadeiramente é: único e irrepetível.

Por tudo isto, fazem-me alguma confusão as proclamações de fé aliadas ao sucesso (não é o caso do Fernando Santos, cuja proclamação foi escrita durante o aparente insucesso); faz-me alguma confusão que se meta no mesmo saco fé e fezadas, terços e traças, orações e rezas; faz-me alguma confusão que alguns daqueles que têm uma fé esclarecida (alicerçada na vida e no estudo) aproveitem agora um momento de glória para falar dos supostos benefícios da fé. Admito, no entanto, que tudo isto deixará de me fazer tanta confusão se, no próximo insucesso, ler as mesmas conclusões das mesmas pessoas. Será sinal que perceberam que não é a fé que torna as coisas possíveis. É a nossa leitura da vida (porventura com a confiança que nos vem da fé) que nos torna fazedores das coisas impossíveis. E que, sobretudo, nos torna capazes de aceitar, com a mesma serenidade, o que não somos (ainda) capazes de fazer.

20160614



Apesar de ser um otimista nato, não sou um inconsciente. E estou preocupado. Com toda esta deriva de violência e extremismos que quase todos os dias nos assalta o quotidiano e perturba a consciência. Eu sei que a maior parte dos acontecimentos é potenciado pela velocidade das redes sociais que fazem com que tudo o que acontece no mundo aconteça aqui e agora. Eu sei que, por causa disso, tendemos a fazer nossos todos os problemas, todos os massacres, todas as discriminações que acontecem do outro lado do mundo. Mas também sei que todos os problemas, todos os massacres, todas as discriminações são efetivamente nossos, onde quer que aconteçam. E que, por isso, as redes sociais não são um alvo a abater mas a admitir, primeiro, e a admirar depois. Claro que nos roubam o sossego, claro que nos entorpecem, claro que nos insensibilizam, mas também nos mobilizam e nos desviam do cuidado hiperatento que temos com o nosso próprio umbigo.

Eu sei História. E sei como, em milhares de anos de civilização, tudo o que é basilar se mantém basilar. Os mesmos medos, a mesma necessidade de defesa, o mesmo nós contra os outros. E, da minha parte, a mesma dificuldade em saber lidar com acontecimentos antagónicos: por um lado, uma noção de liberdade que permite e potencia todos os abusos; por outro lado um extremismo latente e perigosíssimo que abusa permanentemente da liberdade de que goza e se aproveita dela para no-la roubar.

Não consigo perceber como, mas urge por cobro a isso. E alegra-me que, por uma vez, a Igreja que somos nós esteja no caminho certo. Sem dúvidas, sem subterfúgios, sem meias palavras. Tenhamos a coragem de o assumir. Se não o fizermos, de cabeça levantada e voz audível, seremos cúmplices na barbaridade. No mínimo.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...