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Nunca fui de grandes atos de coragem. Sonhava-os muitas vezes, continuo a sonhá-los algumas, embalado pelas memórias do Cavaleiro da Triste Figura, dos filmes do Zorro e do Gavião dos Mares do Errol Flyn, devidamente condimentadas pelo Major Alveja. Choro sempre nos filmes dos heróis que dão a sua vida por um bem maior ansiando pela oportunidade que a vida me dará de um dia fazer algo do género e imagino o meu funeral ao som da música de Taizé ao pormenor de pensar o que será escrito na minha lápide - dando de barato que se for cremado, como desejo, não terei direito a lápide. A verdade é que nunca fui dado a grandes atos de coragem. A pequenos talvez, ínfimos, provavelmente, aqueles que nunca são contados nas histórias nem aparecem nos filmes porque são atos banais de pessoas banais com vidas banais. Não é isso que me apoquenta. Eu gosto do pequeno. Aprecio o pequeno. Valorizo o pequeno, o quotidiano, o (apenas) aparentemente banal.  Mas há alturas em que o pequeno não basta. P
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Apregoo muitas vezes que há muitas formas de amar. E de amor. Amar é tão tudo que enfiá-lo em conceitos pré definidos é limitá-lo a nós próprios e à nossa forma de amar.  Isto quando todos sabemos como o amor é muito mais que nós. No entanto, há formas de amar que dificilmente cabem no amor. Quem ama sabe que volta e meia a coisa dói. Imenso. E dói mais intensamente quanto mais se ama. Diria que faz parte, que dificilmente poderia ser de outra forma, que ou mexe com tudo em nós ou não vale a pena, e se mexe com tudo em nós não mexe apenas quando é bom. Mas apenas entendo a dor no amor quando são dores de crescimento, quando é para acrescentar, para ajustar o ser mais, que exige sempre algum tipo de poda do coração, nem sempre fácil, muitas vezes dolorosa. Será, provavelmente, a maior das ilusões deste nosso tempo, a ideia que é possível amar asseticamente, onde tudo é bom, onde nada custa. Eu incorro muitas vezes nessa ilusão  - que ainda mais vezes me acusam de eu próprio criar nos
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Tão inevitável como eu fazer um balanço de final de ano é eu escrever aqui que é inevitável eu fazer um balanço de final de ano. Estava agora a ler uma notícia e deparei-me com uma palavra na qual não penso muitas vezes mas que me diz muito - e porventura poderá até dar-me pistas que contribuam neste constante processo de definição pessoal: itinerante. Este ano foi um ano de itinerâncias. Tantas que às tantas já me perdia de mim. Ontem disseram-me que o que me vale é que as pessoas que me rodeiam - e me amam - são adultas por mim e, à força de amar, me vão quase forçando a escolher os caminhos que eu deveria escolher se tivesse o hábito - que não tenho - de manter a cabeça em cima dos ombros e o coração no lugar certo. A verdade é ao longo deste ano me descobri a querer sol na eira e chuva no nabal, reconciliar o inconciliável e ficar de bem com Deus e o Diabo. Nessa mesma conversa de ontem lá fui concluindo, a custo - acontece-me muito ir descobrindo conclusões à medida que a co
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Uma das coisas mais ou menos boas de se ter filhos adultos é escutar o que eles têm a dizer de nós próprios. Uma das minhas filhas é muito crítica em relação a tudo. A começar por ela própria, esticando-se, não raras vezes, para além dos seus próprios limites. Já lhe disse que penso que irá longe em termos profissionais, embora tenha algumas dúvidas se alguma vez terá paz. No entanto, paz para ela tem um significado um pouco diferente do meu. Ela fica em paz quando consegue fazer o possível e o impossível para alterar uma qualquer situação com a qual não concorda, seja aqui ou na conchichina. A minha paz é algo de muito mais pessoal e interior. E difícil de alcançar. E proporcionar à minha volta. E era justamente a propósito disso que conversávamos ambos no outro dia. Eu tenho andado mais silencioso, mais metido comigo mesmo, no meu mundo, como eles dizem. Os meus filhos têm muitas memórias de um pai sempre às cambalhotas com eles, sempre a rebolar pelo chão, muito físico, muito pr
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rasgo-me. e arrependo-me. volto a rasgar-me. e a arrepender-me. não porque  tenha um melhor retrato. apenas porque não tenho outro. e este, com todos os remendos, continua a ser o único que tenho. não me custam os remendos passados. prefiro-os à fantasia de uma perfeição que nunca me atraiu por aí além. e são a minha história. ou as minhas histórias. e a dos meus fracassos. e a dos sucessos que sempre lhes seguiram. o que me custam são os remendos novos, ou os novos rasgares. que implicam remendos novos. e às tantas não há retrato que resista. até porque há partes de mim que eu já nem sei se me pertenciam ou se foram emprestadadas por outros. que me remendaram, quando me remendaram, com pedaços seus. eles, mais pobres de pedaços. eu, mais remendado. mais rico de pedaços mas mais remendado. cada vez mias remendado.
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Devo estar mesmo fragilizado. Nos últimos dias escutei de várias bocas que somos um todo, e por isso o corpo reflete o que nos vai na cabeça. Sei que têm sido muitos os acontecimentos nestes últimos tempos, que têm sido tempos de despedidas. E eu sou péssimo em despedidas. Mas daí a existir alguma repercussão no corpo espero que vá uma longa distância. Senão então não antevejo grande descanso corporal para o que aí vem. É destes tempos, com certeza, mas ainda ontem via esta foto e invejei o velhote.Ter tamanha liberdade e paz - que acredito que mesmo para o velhote existirá no momento da foto mas não será permanente - será um privilégio que eu quero ir conquistando à medida que o tempo vai passando. Como conciliar essa paz e essa liberdade com as minhas conquistas até aqui é que por vezes me tira o sono. Por um lado, amo o que faço e tenho e construí até hoje. Um longo percurso feito, como todos os percursos, de algum sacrifício mais ou menos apagado pelo sabor da felicidade, e
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Eu orgulho-me de, regra geral, respeitar o espaço de cada um. Nem sempre acontece, ou melhor, nem sempre consigo que aconteça, particularmente com aqueles que me são mais importantes. Talvez pela proximidade (física, afetiva, emocional), em determinadas alturas não consigo discernir com clareza o que é demais e chego até a ultrapassar limites que em situações normais eu próprio me imporia com todas as escassas certezas que me habitam. Ainda recentemente me disseram que eu sou naturalmente transgressor, o que - como acontece com todas as verdades verdadinhas que apenas aqueles que me amam me dizem - a princípio estranhei mas depois entranhei tentando averiguar da veracidade da afirmação (acusação?). Era verdade. Um dos meus maiores anseios - creio que de toda a humanidade - é poder voltar atrás. Recuar. Refazer, Conseguir que o que aconteceu nunca tivesse acontecido. Que o que se perdeu nunca tivesse sido perdido. Que o que se ganhou permanecesse ganho. Não tanto porque não tives
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Por muito que espere e goste de esperar, por muito que eu pense que a minha vida é um quase permanente advento, por muito que me ache preparado para as curvas da vida, não consigo deixar de ser surpreendido. Por vezes acho que esta esperança constante, este fazer e refazer permanente, esta ausência de planos pré-definidos não passam de uma defesa mal amanhada para tentar lidar com a imponderabilidade da vida. Se não consigo controlar coisa nenhuma, porque não render-me ao nada que sou? Abro os braços, metaforicamente ou não, e preparo-me para o embate. Talvez por isso as botas de caminhar e a mochila sejam uma presença constante no meu imaginário consciente. Sinto-me sempre preparado para partir, lutando permanentemente para me libertar das amarras de cada vez que me tentam prender. Imaginem agora esta forma de sentir a vida num casamento de mais de vinte e cinco anos. Apenas posso imaginar como será para a Isabel - que nisto como em muitas coisas é o oposto de mim - lidar comigo e
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A verdade tem como hábito ser desagradável. Qualquer que ela seja. Por vezes chega cedo de mais, outras não aparece quando mais precisamos e, pelo menos a mim, surge frequentemente na forma de bofetada na cara. Nunca fomos muito íntimos, eu e a verdade. Nunca entendo aquela coisa que a minha sogra diz de peito cheio "a verdade acima de tudo, custe o que custar, doa a quem doer", particularmente quando a vejo atirar a verdade como quem dispara uma arma. Há verdades que escondo, outras que adio, outras que suavizo. O mal é que todas acabam por dar à tona da vida respeitando a fatídica Lei de Murphy, na pior altura possível. No mundo de fantasia que me acolhe quando estou atrapalhado a verdade fica de fora, como quem descalça os sapatos com que anda na rua para não conspurcar o ambiente. Aí, nesse mundo só meu  - muitas vezes mais real que o mundo real - não existem problemas, confusões, trapalhadas, dores ou sofrimentos. Na verdade, não existe nada. absolutamente nada. Nem
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Nesta manhã atarefada, vinha a subir as escadas em passo rápido mas ele quase me obrigou a parar. Estava lá em baixo, na arena, rodeado de miúdos muito miúdos, e sorria e metia-se com eles, e brincava e utilizava a sua sonora voz para os impressionar e intimidar... na brincadeira. Por vezes gostava de ter o tempo e a coragem de fazer mais coisa nenhuma a não ser isto: observar aqueles que, a cada momento, me rodeiam. Apanhá-los assim, como ele estava, completamente desprevenidos, e poder apreciar o seu lado bom, aquele que o cargo ocupado força a permanecer quase escondido talvez pelo medo de se contagiar na alegria e se perder a autoridade das coisas sérias. Olhar as pessoas assim, seja num breve espaço de tempo seja num tempo mais demorado, conduz-me sempre a novas perspectivas, a novidades, a traços até então desconhecidos ou esquecidos de tão pouco vistos. Não me é nada raro alterar a minha percepção sobre alguém a partir de um momento destes. Um brilho no olhar, um gesto de at
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Lá em casa, a discussão sobre a fé, a religião, o papa, cristianismo e afins está sempre tão aberta como qualquer outra sobre a democracia, homossexualidade, casamento, direitos e afins. A partir da altura em que os meus filhos usam a cabecinha para pensar - e fazem-no desde muito cedo - não me recordo de alguma vez ter dito aos meus filhos que "isso" não se discute. Todos encontramos espaço para discutir o que quer que seja, desde os temas mais pacíficos - onde estamos quase todos em sintonia - aos aparentemente mais fraturantes - sem a presença da avó, claro, para não lhe dar um xelique - porque para nós sempre foi muito importante discutirmos abertamente para podermos saber o que cada um pensa e aprendermos uns com os outros. Nas discussões sobre a Igreja é frequente aperceber-me como os meus filhos andam aparentemente perdidos. Apesar do seu sentimento de pertença - para alguns apenas por causa do caldo cultural onde nasceram - são fortemente contestatários das posiçõ
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Há palavras ou expressões ou ditos que me perseguem desde que tenho consciência de mim. Um destes dias estava numa eucaristia e o sacerdote falava daqueles que, mesmo sem terem disso grande consciência, se servem dos outros como combustíveis para si próprios. A minha memória de elefante teletransportou-me imediatamente várias décadas, levando-me de volta a uma outra conversa. igualmente com um sacerdote, que me acusava sub-repticiamente de utilizar as pessoas como quem come laranjas: aproveitando o sumo, deitando fora a casca. Na altura eu era demasiado novo e a imagem do sacerdote tinha ainda um peso específico que me impedia de o contestar. Se um padre me dizia aquilo - apesar de não me conhecer de lado nenhum e saber mais tarde que estava a satisfazer encomendas - só podia ser verdade. E deixou marcas. Esta hipótese assalta-me muitas vezes. Até porque a verdade é que eu me alimento das pessoas que me rodeiam: da sua sabedoria, da sua capacidade, da sua disponibilidade, do seu ime
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Pelo segundo dia consecutivo a caminhada não foi junto ao mar mas no parque, a escassos metros, mas verdadeiramente um outro mundo. Uma mistura de cores e cheiros verdadeiramente avassaladores, tendo apenas o barulhos dos passos e dos patos como companhia. É muito fácil começar o dia a louvar a Deus, ali, naquele lugar, que me recorda sempre o Tozé que, provavelmente sem sequer se aperceber disso, foi quem me despertou para esta presença de Deus no belo da natureza. Dois mundos completamente diferentes fora de mim, dois mundos ainda mais diferentes cá por dentro. A paisagem exterior ontem fora a mesma, mas a interior estava radicalmente diferente! O desassossego deu lugar à tranquilidade, o tumulto, à serenidade. Objetivamente nada mudou de um dia para o outro, não foram tomadas decisões para além das de todos os dias, não aconteceu a descoberta da cura para o cancro (e como a vou pedindo!) e o que estava por resolver continua por resolver. Não se trata de universos exteriores mas
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Por esta altura já devia saber que a uma bacorada saída desta boca se segue um ensinamento tendo-me como destinatário. Face a uma crise de estômago até então por mim desconhecida, confidenciei a algumas pessoas que não sei lidar com a minha fragilidade física. "com a psicológica já estou habituado, agora a física..." Esquecera-me que enquanto a fragilidade física tem uma repercussão quase exclusivamente pessoal, os meus devaneios deixam, não raras vezes, marcas em vidas alheias. E que na verdade, isso me é ams insuportável que uma dor de estômago, por muito má que ela possa ser.
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Andamos todos à procura de paz. Daquela paz que nos permite dormir à noite, andar de cabeça erguida, olharmo-nos ao espelho, falarmos com quem quer que seja sem pensarmos no que aí vem. Era eu ainda miúdo e recordo-me que essa paz não passava de uma miragem. Vivia como que temeroso, envergonhado, a sentir-me constantemente devedor dos outros e do mundo. Depois acabei por me refazer mas aprendi cedo que de uma paz assim é muito mais fácil falar que conseguir. E que, mesmo para mim, que segundo alguns dos que me rodeiam tenho uma consciência por vezes muito pouco consciente, esta é uma paz que não conheço muitas vezes. Tenho essa mania de me perscrutar quase quotidianamente, quase obsessivamente, tentando perceber quem magoei desta vez, a quem é que disse o que não devia ou deixei de o fazer a quem o devia, revendo cada gesto e cada palavra que saíram de mim. A maior parte das vezes acabo por me render à evidência do que sou, num mal conseguido exercício de baixar a fasquia, e arranjo
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Ainda na semana passada, a propósito de anjos e encontros e vozes de Deus, perguntava como é que sabemos que as voz de quem nos fala vem de Deus ou se estamos a ser endrominados por uma qualquer pessoa com jeito para falinhas mansas. Não importa para aqui a origem da voz. Conheço pessoas da Igreja a quem não daria ouvidos de forma alguma e outras dos bairros que escuto atentamente. Não é uma questão de proveniência, portanto. Também não dou particular interesse à idade ou condição social, que pouco ou nada têm a ver com a sabedoria que procuro. Mas então, como saber? Tivesse eu uma personalidade forte e provavelmente esta questão nem sequer se colocaria. Não que as personalidades fortes não tenham duvidas mas porque encontram sempre forma de lhes responder. Nós, os que se questionam permanentemente, é que temos mais dificuldade. Até porque a cada nova resposta entrevemos rapidamente uma nova questão. Nesse encontro, enquanto ia colocando questões, ocorreu-me que a forma de o sabermo
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Por vezes - sempre dolorosas vezes - descubro-me pródigo em balelas. Por vezes são os meus mais próximos que mo dizem, por vezes carinhosamente, outras de forma ríspida, provavelmente porque mereço bem o que me dizem. Uma das mais pródigas balelas saídas da minha boca tem amar como temática. É que eu normalmente acredito mesmo na imensidão de amar. Amar, não amor. Amar, um ato vivido, sentido, propositado, com destinatário concreto e definido, e não Amor, essa coisa demasiado global indefinida que pode ser tudo e nada. Encho muitas vezes a minha boca - a minha vida - com o Amar, tentando conjugá-lo com verdade, com disponibilidade, com abertura e concessão de espaço. E deixo-me enredar nas minhas próprias palavras, na minha forma muito minha  - não são todas as nossas formas muito nossas? - de amar. A tal ponto que às tantas são-me ditas muitas vezes e feitas sentir outras tantas e mais ainda que amar não chega. Que amar é pouco. que amar, mesmo vivido ou tentado na sua plenitude nã
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Hoje não tinha ainda pousado a pasta e um aluno - um amigo! - pediu-me, em tom de brincadeira, para analisar um poema de Fernando Pessoa. Sorri imediatamente a seguir a ter-lhe passado os olhos por cima. Para mim era claro como água, como se me estivesse a ver ao espelho, ou tivesse estado estes anos (precisaria de anos para o fazer!) a tentar por no papel a inquietação que tenho por assídua companhia dia após dia, noite após noite. Disse-lhe que não percebia qual a sua dificuldade mas que o deveria analisar depois dos cinquenta.  Eu entendo a sua dificuldade. Porque na verdade não anda longe da dificuldade de muitos dos que me rodeiam e que, volta e meia, me olham com a mesma naturalidade e compreensão com que olhariam um elefante vestido de tutu cor de rosa. A maioria das vezes não estou nem aí para tentar explicar o inexplicável e finjo recuar. Como explicaria o insaciável? Como explicaria o interminável? O ilógico, o irracional de ter permanentemente fome quando é suposto
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Eu penso na morte. Na minha morte. No que quero que façam ao meu corpo, não que considere o meu corpo algo de muito importante mas sobretudo porque considero a memória algo de muito importante. Não tenho o culto dos mortos. Não tenho o hábito de ir ao cemitério visitar aqueles que amei e que já lá estão, Não sinto essa necessidade. Recordo-os muitas vezes nas mais diversas situações, rezo-lhes algumas (não por eles, que estão junto do Pai, mas a eles, que estão junto do Pai) porque acredito que possuem agora a clarividência que nunca temos por aqui e porque acredito que me amam e ma poderão, de alguma forma, transmitir. Dificilmente o faria num cemitério que, por muito que me digam o contrário, é um lugar de mortos. E de morte. Fiquei apreensivo esta semana ao ler a Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé. Não, eu não sou o tipo de católico que segue à risca as orientações da Igreja; Sim, eu sou o tipo de católico que está atento ao que a Igreja proclama e defende. E para mi
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Naquela mesa redonda do chinês cumpria-se um sonho. Nós chegamos cedo, prerrogativa de pais, para quem o tempo já se mede de uma outra maneira, diferente, mais lenta, menos absorvente, com os segundos e os minutos a pautarem a vida num outro ritmo, provavelmente menos premente. Eles foram chegando. Aos poucos, Dois a dois. Passado pouco tempo, estávamos todos. Naquela mesa redonda do chinês a algazarra era pouco diferente da de todos os dias lá de casa. O mesmo tom de conversa. as mesmas conversas cruzadas, os mesmos risos, a mesa alegria, a mesma partilha. E eu, ora a participar ativamente, ora a brincar com o tabuleiro giratório daquela mesa redonda do chinês - tenho que arranjar uma coisa destas - ora observando-os, completamente embevecido, imensamente grato. Estão enormes, os meus filhos! Estamos naquela fase da vida e que a conciliação de horários e disponibilidades é cada vez mais difícil e por isso paira como que uma urgência sempre que estamos juntos. As refeições com tod
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Conhecemo-nos há alguns anos. Esta, claro, é apenas uma das muitas formas de o dizer. Na verdade, não nos conhecemos. Conhecíamos a mesma pessoa e, por seu intermédio, passamos algum - escasso - tempo juntos. Nunca fomos íntimos, nunca passamos mais que algum tempo juntos e, sempre que o fizemos, havia, pelo menos da minha parte, aquele misto de identificação e desafio intimidante. Intimidam-me sempre as pessoas com personalidade forte, mas no sentido de me fazer correr para elas, como uma mariposa que fica fascinada pela luz, apesar de saber que poderá muito bem ser o seu fim, Os amorfos nunca me disseram nada, absolutamente nada, como se eu precisasse da vertigem do abismo - ainda que por interposta vida - para me sentir vivo. Sendo do sexo masculino então, sinto uma espécie de desafio nunca claramente assumido, devidamente acompanhado pela voz do speaker de um combate de boxe "de um lado.... Vamos começando a conhecer-nos agora, alguns anos depois. O mesmo fascínio por mim
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Frequentemente, digo que sou muito olhos. Sou-o, efetivamente. Desde sempre! Numa pessoa, qualquer que seja a sua idade, a primeira coisa que me salta à vista é o seu olhar. Não a cor dos olhos, que essa me passa completamente ao lado e será mais tarde atribuída por mim em função do que me diz, mas o mundo que revela, à superfície ou na profundidade. Quando era mais novo era fortemente gozado por causa disso. Para começar, porque olhava com a mesma atenção, curiosidade e gozo os olhos de quem quer que fosse, independentemente do seu género ou idade. E isso, para os outros, era muito esquisito! Depois, porque raramente reparava em quaisquer outros atributos físicos, muito mais em voga na altura, mas que me passavam completamente despercebidos. Ainda hoje, o critério mais importante continua a ser o olhar. É-me muito difícil gostar de alguém cujo olhar não me diz coisa nenhuma. Para que isso aconteça tenho que apelar a uma série de racionalidades que me levem mais longe que a minha pe
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Fazer alguém feliz, ser motivo de felicidade - mais que alegria, fugaz, felicidade mesmo, mais interior mas mais profunda e duradoura - é uma tarefa árdua. Pelo menos para mim. Conheço pessoas extremamente felizardas que o conseguem com uma naturalidade tal que parece que lhes basta respirar para que os outros sejam felizes. Pessoas graciosas, leves, elas próprias intrinsecamente felizes ao ponto de irradiarem uma felicidade genuína, quase infantil, naquilo que a infância tem de melhor. Eu não consigo. Não com essa naturalidade. E mesmo quando o consigo é como que arrancada a ferros. Pensada. Construída. Intencional. Com destinatário. Ironicamente, eu, que gosto tanto do Principezinho, levo muitas vezes nas orelhas por não conseguir assumir a responsabilidade de cuidar devidamente daqueles que cativo. Provavelmente faço com eles o que faço com quase tudo na vida: vivo-os muito intensamente, desligo muito rapidamente. Numa das últimas conversas à volta dessa temática, dei por mi
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Nos vários mundos que me habitam, ora coincidentes ora alternados, ora em rebuliço ora em pacificada coexistência, há um que detesto particularmente, que constitui o meu ódio de estimação, porque odeio essa pessoa que volta e meia também me habita: o ingrato. Tenho dias, ou momentos, ou alturas, em que ando zangado com o mundo e com tudo e todos os que me rodeiam, Uma zanga séria e profunda que me leva a praguejar num constante e abafado silêncio, numa sensação horrível que sou credor do mundo e que todos me devem prestar justíssima vassalagem. Uma zanga alicerçada na mais profunda das incompreensões, de mim para mim, claro, mas sentida e multiplicada como sendo dos outros para mim, onde ninguém me entende, ninguém me dá o devido valor, ninguém se digna sequer de colocar o pedestal, estender a passadeira, instalar o púlpito a partir do qual tudo e todos dão loas pela minha simples existência. São dias, ou momentos, ou alturas, de profunda solidão, de alguma depressão, que me toldam
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Há muitos anos deram-me um livro do Paulo Coelho como indireta. As nossas muitas conversas e partilhas desembocavam sempre na posse. Ou melhor, na minha clara pulsão para de alguma forma controlar aqueles que amo. Quem mo ofereceu não duvidava do meu amor, da minha capacidade de amar mas, pelo contrário, da forma total e totalizante com que o fazia, dizendo-me algumas vezes que corria o risco de asfixiar. Naturalmente, como sempre me acontece com os que me amam verdadeira e, sobretudo, desprendidamente, cocacolizei aquela evidente idiotice, estranhando-a antes e entranhando-a depois de pensar nela com calma. E com alma. O que é certo é que aquele livro e aquelas conversas e aquelas idiotices evidentes transformaram a minha forma de amar. Os meus filhos que o digam! Hoje acordei muito tentado a fazer uma pesquisa numa qualquer rede social. Seja pelas conversas que tenho noite dentro, seja pelos sonhos que tenho noite fora, seja pela vida que me pulsa a cada momento, o q
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Sou um criador. De mundos. Alternativos. Alternados. De vidas. Alternativas. Alternadas. Que, no meu imaginário, são muito pouco imaginárias. Têm vida vivida, quotidiana, paralela, e são tão ou mais reais quanto a vida real, aquela que é suposto ser por mim vivida. Em cada uma dessas vidas eu sou um outro que não eu, com sentimentos próprios e alegrias próprias e tristezas próprias e razões próprias e por vezes naturalmente contraditórias em função da vida que é vivida paralelamente a uma qualquer oura vida que eventualmente será vivida num outro momento. Gostaria de poder afirmar, taxativamente, indubitavelmente, que todas essas vidas me têm em comum, como ator principal, numa peça por mim escrita e cujo desenlace é por mim controlado, mas a sensação que tenho a maioria das vezes é justamente a oposta, que eu sou apenas mais um, pequeno, insignificante figurante, que a maior parte do tempo se olha a si mesmo, a partir de um canto, escuro, à espera de me ver, e à minha construção, e
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Dizia-lhe, ontem, apenas ontem, como me tinha sentido irremediavelmente só. Não o fiz muitas vezes, ao longo de todos estes anos, não sei se por medo,se por comodidade, se por entender, como ainda entendo, que é uma coisa apenas minha e ninguém tem nada a ver com isso a não ser que eu o queira partilhar. Depois da surpresa - e há sempre surpresa quando lhe digo algo deste género - disse-me que algures entre a minha solidão desejada e a indesejada espera pela minha necessidade de encontro. Que também existe. E disse-me aquela que é a minha maior evidência, que sou muito complicado. Obrigadinho. Já o sabia. Desde sempre! Naquele primeiro banco da nossa igreja deu-se o click que fez com que a solidão se eclipsasse com a mesma rapidez e naturalidade com que chegara. Nem sei bem o que o padre dissera, sei que me reconstruiu por dentro - "serás restaurador de ruas destruídas" - e me fez encarar o resto do dia de domingo com outro espírito. Ainda ontem, no seguimento da conv
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Hoje quase almoçava sozinho. Não consegui. Quando estou assim, quando não me recomendo, uma amiga gosta de me provocar e pergunta-me se estou no meu momento autista. Sorrio. Sorrio apenas. Nestes dias a última coisa que me apetece é estar a justificar o que quer que seja. Nestes dias tenho a sensação que lambo feridas. E só me apetecia estar assim, num qualquer canto escuro, só completamente só, deliciosamente só, até que a tristeza passe. Nem sempre há um motivo palpável para esta tristeza. É um misto de sensação de perda com necessidade premente de recolhimento. Que acontece quando sinto que estou a perder (me?) ou naquele momento de distensão que acontece logo a seguir a uma tarefa que exigiu muito de mim. Ou as duas coisas, que andam muitas vezes de mãos dadas. Como se a respiração tivesse estado sustida uns dias e precisasse agora de encher de novo os pulmões. Quando estou assim, quando não me recomendo e me refugio, uma amiga gosta de me provocar e diz-e que eu gosto é de se
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"O suicídio é sempre um assassínio de um outro." Impressionou-me, esta frase. Muito! Talvez porque ao longo da minha vida me tenha deparado com vários suicídios, uns levados a cabo com sucesso, outros fracassados - sintomático, quando o sucesso de algo leva à morte e o seu fracasso conduz à vida! - de pessoas que me eram queridas. À tremenda surpresa do acontecimento sucedia-se sempre a tremenda culpa de não ter estado presente quando era mais necessário. Não importa para o caso se vivia longe, se não tinha a mínima hipótese de saber, se ninguém o suspeitava ou se andava distraído. Importa sim que eu não estava lá. Qualquer que tivesse sido o motivo, eu não estava lá. Para poder conversar, para poder olhar nos olhos, para poder estender a mão e dizer que nada é tão mau que justifique tamanha decisão. Durante alguns meses não consegui encarar o seu irmão. A notícia da morte atingira-me com uma violência que até então eu desconhecia, ao ponto de quase correr para poder es
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Ao vê-los, no campo, a dirigir com mestria a partilha dos grupos dos ainda mais miúdos que eles próprios, senti um imenso orgulho. A minha ganapada está a crescer e a preparar-se para outros voos. Mais altos. Mais exigentes. Talvez vá sendo tempo de, lentamente, progressivamente, ir eu voando a um ritmo paulatinamente mais baixo. Até porque o corpo já começa a dar sinais claros de dificuldade em acompanhar ritmos. Quando acompanhei o RH+ (que saudades do RH+!) deparei-me com um problema que, já na altura, não era novo para mim. A minha intenção sempre tivera sido a de lhes dar asas, de lhes dar ferramentas para a vida de adultos que se avizinhava. Quando quis soltá-los, suavemente, percebi que continuavam dependentes, demasiado dependentes para o meu gosto, demasiado colados a mim para o que precisavam, e acabei por largá-los repentinamente. E dolorosamente. Para eles. E para mim. Prometi-me na altura ficar mais atento para que não voltasse a acontecer. Recordo com particular s
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Tendo a olhar para as pessoas a partir de uma perspetiva enquinada. De baixo para cima. Passei anos a tentar perceber porque era assim, porque os outros me pareciam sempre mais tudo, mais inteligentes, mais bonitos, mais simpáticos, mais sortudos, mais queridos por todos, a começar, claro está, por mim. Talvez tivesse sido a infância, talvez tivessem sido as circunstâncias da minha vida, talvez toda a gente seja assim e apenas eu penso nisso, sei lá, mas a verdade é que quando começo a conhecer alguém a minha primeira sensação é de gratidão. Por me permitirem conhecer, por me permitirem entrar na sua vida, por me permitirem fazer caminho. Talvez porque acredite muito nisso: que basta conhecer para se fazer caminho. Essa gratidão - que me é inerente e quase permanente - faz com que me apresente desarmado. E, não raras vezes, ajuda a desarmar. Existiu um tempo, contudo, em que não fui assim. Armei-me aos cágados, compensando com o que tinha tudo aquilo que deixara de ser. Dei-me mal
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Não. Ainda não voltei. Refugiei-me lá, no meu mundo, meu apenas, a tentar colocar a cabeça em ordem, a tentar silenciar a gritaria, a escolher possibilidades, alternativas, caminhos. Refugio-me lá cada vez mais frequentemente, numa espécie de regresso às origens, que se acentua à medida que a idade vai avançando, Com cada vez menos pachorra para tricas, com cada vez menos vontade de me justificar e tentar explicar processos que nem eu sem muito bem como acontecem cá por dentro, com cada vez maior ânsia de meter pés a caminho, por fora e por dentro, onde apenas o passo seguinte importa, por vezes sem rumo, por vezes sem rota, por vezes sem outro destino que não o que vou tendo diante do olhar a cada passo dado. Ou sonhado! Mentiria se não dissesse que me assusta um bocado, este afastamento, cada vez mais presente, cada vez mais assíduo. Porque me é confortável, cómodo, natural. Por vezes é até desafiante, colocando-me em percursos interiores poucas vezes percorridos, onde a cada
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Pronto prévio: eu acredito no amor incondicional. Eu próprio, assim como quase todos os pais (mesmo aqueles que aparentemente não amam da maneira que entendemos ser melhor), vivo um amor perfeitamente incondicional há mais de 25 anos, que se tem prolongado no tempo e que se prolongará independentemente do que aconteça nas nossas vidas. Esse é o amor verdadeiramente incondicional que eu conheço: sempre total e totalizante, sempre arrebatador, sempre ardente, sempre imenso, pleno e infinito. Mas o amor de pai não é, de todo, um amor desligado. É  amor atento, nem que seja pelo canto do olho, é um amor presente, nem que se esteja longe, é um amor intrínseco, nem que seja subvalorizado. Eu não acredito num amor a dois incondicional. Num amor onde seja permitido tudo, sem retorno, sem partilha, sem cumplicidade, sem construção, sem futuro. Amor a dois exige reciprocidade. Sem essa reciprocidade - que pode, ela sim, assumir muitas formas - é peso, é dependência, é doença. E ânsia de li
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Os ingredientes de um bom amigo são fáceis de imaginar: amar muito, aceitar algumas coisas, vontade de mudar as mais graves, frontalidade, clareza e meiguice em doses generosas e convenientemente aplicadas, amar muito, amar muito amar muito. Não é fácil que tudo isto coexista numa pessoa só. É extremamente raro que essa pessoa nos conheça e ainda por cima goste de nós o suficiente para aplicar aquela ou outra fórmula qualquer que faça de nós pessoas melhores. Por isso um bom amigo (sem qualquer distinção de género ou idade) nos é tão precioso! Conheço pessoas que fazem uma gestão racional dos amigos. Escolhem o que dizem, quando o dizem, reservam lugares e direitos, num cuidadoso e perspicaz jogo de luzes e sombras com o intuito de salvaguardar posições interiores. Eu, nestas como em todas as coisas importantes, sou um completo estouvado. Digo o que me vai na alma, falo de mais ou de menos, ajo incoerentemente, sem qualquer apetência para a avaliação cuidadosa das consequência
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"Não faço isto por promessa. É apenas para limpar a cabeça. Enquanto caminho não penso em mais nada." Tirando o amor que nos temos, eu e o meu irmão não temos muito em comum. Dez anos mais novo que eu, é de uma outra geração e ainda por cima apanhou uma dinâmica familiar muito diferente daquela que eu apanhei, com todas as coisas boas e menos boas que isso implica. Não nos vemos nem conversamos muitas vezes - à semelhança do que acontece também com os meus pais e a minha irmã - porque existimos em mundos diferentes, mas sabemos da importância que temos uns nos outros. Desta vez o pretexto do encontro foi uma festa de aniversário e às tantas a conversa fluiu para as nossas peregrinações a pé: Fátima, a dele; Santiago, a minha. Apesar de ambos termos uma vivência cristã assídua e importante para as nossas vidas sabemos que "peregrinação" é um termo exagerado para o que fazemos. Caminhamos, sobretudo, para nos encontrarmos no caminho e se nesse  encontro reencon
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Hoje andamos à volta do recomeçar. As pessoas certinhas na vida e seguras nas convicções normalmente não precisam de recomeçar nada. Mesmo quando cometem erros encaram-nos com absoluta normalidade - eventualmente recriminando-se com severidade - e retomam o seu caminho com a mesma normalidade. Não entendem por isso a necessidade de recomeçar. Para elas, as regras são claras e distintas e quem falha deve ser naturalmente penalizado por isso - como elas próprias se autopenalizam por isso. Recomeçar implica um corte e esse corte não permite entender que se fez mal e não entender que se fez mal propicia um novo erro. Simples e eficaz. As pessoas erradas na vida e sempre à procura de novas convicções precisam de recomeçar sempre. Para quem vive na procura, os erros são mais frequentes que as certezas encontradas e a auto-satisfação é sempre efémera. Todo o ponto de chegada rapidamente se torna novo ponto de partida e necessidade de... recomeçar. A frustração do erro é rapidamente sub
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Não acredito em coincidências. Nem sei bem quantas vezes comecei com esta afirmação. Porque não acredito mesmo em coincidências. Acredito em pessoas e situações e momentos que Deus nos vai colocando no caminho deixando-nos a parte da resposta que queremos dar a essas pessoas, situações ou momentos. Se há algo que tenho imensa dificuldade em discernir é o papel das pessoas na minha vida. O meu papel nas suas vidas já está despido de ilusões - salvo algumas raridades, chego, permaneço por curto espaço de tempo, e seguem à sua vidinha, como deve ser. Muito mais complexa é a sua presença cá por dentro, que teima em permanecer apesar do longe e da distância, a operar mudanças significativas na forma como vejo e vivo a vida. Não chegam de visita mas instalam-se, de armas e bagagens, no seu espaço próprio, nunca desocupado pelas memórias comuns. Nunca consegui deixar ir. Por mais que possa ser a atitude certa, por mais que eventualmente magoe menos, por mais argumentos racionais que po
Terminado mais um Santiago, inicia-se mais um ano. Aponto no meu calendário as minhas atividades já marcadas e assusto-me. Como sempre, vejo-o carregado de várias cores e antecipo um ano carregado de sem tempo, de correria, de dificuldade para a introspeção, meditação e oração. À semelhança no ano passado, e do ano anterior, empenhar-me-ei em conseguir um espaço apenas meu, um espaço de encontro comigo próprio, essencial para sopesar o que se passa dentro com o que se passa fora. Essencial, meu caro Zé. Independentemente do que te possam dizer!
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Recordo o verão da minha infância com saudade. Não apenas as intermináveis brincadeiras de rua, que terminavam já a noite ia alta, ou as idas à praia com o tijolo a tocar a altos berros no velhinho 88 que ia de São Roque ao Castelo do Queijo. Nem sequer os naturais e desejáveis amores de verão, que tinham tanto de intensos como de fugazes, inevitavelmente levados pelas águas das primeiras chuvas. Recordo particularmente os imensos momentos que tinha apenas comigo, e os meus livros e os dias inteiros para ler. Recordo as descobertas que fiz através da literatura, as coleções que comprava e vendia no velho alfarrabista do Bonjardim, que me devia achar alguma piada porque me dava mais livros que aqueles que eu lhe entregava. E depois, começada a escola, recordo o caminho interminável, sempre percorrido a pé porque não havia autocarro, pelo menos duas vezes por dia, outros bem mais, ou porque vinha almoçar a casa, ou porque ia aos treinos de uma das muitas atividades desportivas que fui
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"Olá. O meu nome é Zé Pinho. Sou casado, tenho cinco filhos." Já muitos miúdos e graúdos ouviram isto da minha boca. É fácil de dizer e diz o essencial de mim - como é dito num contexto de formação católica, a outra parte que me é essencial está subentendida. Desde sempre que tivemos muitos filhos. Que agora estão um pouco espalhados. Na próxima semana terei uma em Vila Real, outra nem sei bem mas sei que é numa aldeia do interior (um pai não consegue saber tudo!) outra no Algarve a trabalhar e outro na Tanzánia, em missão. E o mais novo já disse que tem que arranjar maneira de se por ao fresco, que não está para servir de velinha as férias todas. Mesmo aquela tradicional semana de todos juntos não foi possível este ano. Uns iam e outros vinham mas nunca estivemos todos ao mesmo tempo. Viver com os filhos longe é uma aprendizagem. Mais uma. Se por um lado ansiávamos ambos que esta altura chegasse, se ansiávamos pelo nosso tempo, sem darmos justificações, sem pensarmo
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Disse que tinha que ir abandonando os pontos de interrogação. Surpreendi-me quando verifiquei que conseguia meter toda a minha vida numa pequena colagem de frases e imagens escolhidas quase ao acaso. Não acredito muito em acasos. Acredito com maior facilidade em milagres e, particularmente, em sinais de Deus. Os acasos acontecem quando andamos à procura deles e estamos atentos aos sinais. Parece que as coisas caem no nosso colo vindas do nada quando, na realidade, estiveram sempre lá e apenas lhes demos um outro sentido. Ter, diante de mim, aquele pequeno cartaz com frases e imagens recortadas a partir de duas ou três revistas e ver aí tudo o que me é verdadeiramente importante foi pouco menos que uma revelação. Principalmente quando elevei o olhar e me comparei com outras colagens e escutei as suas explicações. Creio que foi a primeira vez que tive a sensação que eu estaria mais arrumado que confuso, mais assente que navegante, mas convicto que inseguro. Tens que ir abandonand
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Não acredito - nunca acreditei! - que a fé é um dom destinado apenas a alguns - poucos - predestinados; nunca acreditei que os milagres - nos quais acredito - tenham um alvo específico, e muto menos que esse alvo seja alguém que é comummente visto como "puro" ou "crente"; nunca acreditei em pessoas particularmente "puras" ou "crentes", sem os inúmeros fantasmas que nos habitam e nos obrigam a discernir; nunca acreditei em supers - super homens, super mulheres, super poderes, super iluminados - e muito menos em supers à custa de uma bênção particular divina; nunca acreditei que um terço pendurado no espelho do carro ou no bolso traga mais sorte que um trevo de quatro folhas ou uma perna de porco embalsamada; nunca acreditei em fezinhas ou fezadas ou rezas ou feitiçarias ou responsos ou o que quer que seja que pretendam atrais um olhar especial sobre o que quer que seja. Acredito num Deus que nos olha com amor, por amor, e com amor cuida de ca
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Apesar de ser um otimista nato, não sou um inconsciente. E estou preocupado. Com toda esta deriva de violência e extremismos que quase todos os dias nos assalta o quotidiano e perturba a consciência. Eu sei que a maior parte dos acontecimentos é potenciado pela velocidade das redes sociais que fazem com que tudo o que acontece no mundo aconteça aqui e agora. Eu sei que, por causa disso, tendemos a fazer nossos todos os problemas, todos os massacres, todas as discriminações que acontecem do outro lado do mundo. Mas também sei que todos os problemas, todos os massacres, todas as discriminações são efetivamente nossos, onde quer que aconteçam. E que, por isso, as redes sociais não são um alvo a abater mas a admitir, primeiro, e a admirar depois. Claro que nos roubam o sossego, claro que nos entorpecem, claro que nos insensibilizam, mas também nos mobilizam e nos desviam do cuidado hiperatento que temos com o nosso próprio umbigo. Eu sei História. E sei como, em milhares de anos de c
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De vez em quando converso com pessoas que entraram em stand by. Como se fossem meras peças de uma máquina maior, como se apenas desempenhassem funções, sem as ligar à substância da vida, desligando-se elas mesmas da substância da vida. De comum, dizem que não acontece de repente, mas através de uma espécie de letargia que se vai instalando e, às tantas, apenas fazem. Não pensam (a não ser em termos profissionais), não sintem (a não ser o que têm que sentir para fazer), e arrastam o cadáver, como diz o meu bom amigo PM. Como consequência, o inevitável vazio que sempre anda de mãos dadas com a letargia e o deixar correr.  Mal o tempo mo permitiu, retomei as minhas caminhadas matinais. E, com elas, a sentir a vida a regressar ao meu quotidiano. Apesar de o fazer há bem mais que um ano, sinto que estou ainda em fase de descoberta. Novos sons, novas cores, novos cheiros, que potenciam novos olhares sobre os apenas aparentemente mesmos lugares. Até as pessoas que passam por mim - ca
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Esta semana tive uma reunião onde falava do que faço. Era uma reunião de trabalho, embora chamar trabalho a um encontro de amigos que procuram, juntos, a melhor maneira de levar Deus aos outros, soe ainda demasiado estranho para mim. E falávamos justamente acerca disso, de como pessoas que fazem o que nós fazemos têm que estar sempre on, nunca desligam, porque não é possível desligar Deus da vida nem a vida de Deus. Desde há muitos anos que não há nada que veja, sinta ou faça que não tenha o levar Deus aos outros como pano de fundo. Um filme, uma canção, um texto, uma postagem no facebook, tudo tem para mim uma leitura feita a partir do olhar da fé, que pode ser concordante ou contestatária, declara ou inerente, mas que pode e deve ser partilhada. Não me considero nada prosiletista, não comungo nada da ideia que apenas eu marcho com o passo certo, não tenho nada a convicção que os outros estão errados nas suas escolhas de caminhos diferentes dos meus. Mas também, em contrapartida,
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Por esta altura do ano, nas minhas caminhadas matinais, passo todos os dias por santiagueiros. E mordo-me de inveja. Vê-los com as suas mochilas, o seu passo certo, o seu olhar, apreciador da beleza envolvente, mas determinado, leva-me a ansiar pegar na minha própria mochila e partir. Em boa verdade, Santiago é apenas um pretexto: não lhe tenho especial devoção, ou à Senhora de Fátima, ou a qualquer outro santuário. Vou acreditando cada vez mais, que é o caminho o que verdadeiramente importa. O exterior e o interior. E, fundamentalmente, o comum. Se não tenho particular devoção a santuários, o mesmo não se passa em relação às pessoas que me acompanham na jornada. Ontem, a propósito do Pentecostes, vagueava pela melhor definição de Espírito Santo que conheço: numa relação de amor existem sempre três entidades diferentes: o que ama, o que é amado e o amor que flui entre eles. Esse amor é o Espírito Santo. Não acredito num Deus do Livro. Acredito num Deus das pessoas. O Livro é muit