Mensagens

A mostrar mensagens de 2015
Imagem
serenidade, alegria, verdade e liberdade Também eu não costumo escapar aos balanços de fim de ano. Nem o desejo, em boa verdade. Se nos tempos normais gosto de me sentar e dividir o tempo, e analisar o que eu e o tempo nos temos provocado mutuamente, no final de cada ano - e quem está no ensino tem mais que uma sensação de final de ano... e oportunidade de recomeçar - essa tarefa é absolutamente dominante. Passo-me em revista, revisito caminhadas e conversas e partilhas e dores e alegrias, voltando a sentir muitas delas, alternando sorrisos e suspiros, peso gestos e atitudes, volto a penitenciar-me por alguns, a orgulhar-me por outros, e chego à invariável conclusão que estou mais velho... e que isso não se nota nada. Continuo a sonhar, por vezes contra todas as probabilidades, continuo com a mesma dificuldade em me situar dentro dos parâmetros exigidos para quem tem a minha idade, continuo a não reconhecer quem está do outro lado do espelho, apesar das dores nas articulações, das
Imagem
À medida que vou envelhecendo, parece que um certo Natal vai envelhecendo em mim. Lembro-me com alguma nostalgia de uma véspera de Natal em que era quase hora da ceia e eu ainda estava na baixa do Porto, mergulhado num trânsito caótico, feliz da vida enquanto todos à minha volta estavam com ar desesperado. Na altura, Natal era também muito isso para mim: confusão, compras, movimento, música no ar e luzes a piscar. E depois, já em casa, era aproveitar a magia a que apenas os filhos emprestam ao Natal, com a sua felicidade extrema, com os seus gritos de alegria, com a sua inocência que, uma vez partida, já não regressa da mesma maneira. A nossa felicidade era a antecipação da sua felicidade, a nossa alegria era o gozo prematuro da sua alegria, a nossa maior prenda de Natal eram as suas prendas de Natal. A determinada altura a vida impôs um outro tipo de condições. Os presentes já não eram bem os desejados mas os possíveis, e com isso o Natal começou a ser por mim vivido com um certo
Imagem
Nunca mo tinham perguntado assim, de forma tão clara e direta, tão olhos nos olhos, tão alma na alma, suspendendo as palavras até que ecoasse a minha resposta: "gostas do que vês quando te olhas ao espelho?". A pergunta, como qualquer boa pergunta, não era bem uma pergunta mas uma necessidade de constatação. Antecipávamos ambos, pelo que nos conhecemos, a resposta, e seria uma enorme surpresa se tivesse sido outra. Foi justamente porque sabíamos a resposta que a pergunta tinha sido feita. E foi devidamente dada. Nunca me considerei definitivo. Em nada. Em ninguém. Em nada porque desde muito novo que me habituei a reconstruir a minha paisagem quotidiana. De cada vez que mudava de casa - e foram muitas - mudavam também os cheiros e os toques e os sons e as vistas e agarrava-me ao que permanecia, apesar de tudo, eu e (fugazmente) os meus. Em ninguém porque com as casas vinham os vizinhos e os amigos e os colegas da escola e os professores e os amigos, e tudo isto era def
Imagem
Para muitas pessoas que me conhecem, tenho um terrível defeito: sou um péssimo pagador de promessas. E, mesmo para mim, é um bocadinho difícil entender porquê. Nesta altura, convém referir que não prometo apenas quando estou atrapalhado. Nem prometo apenas em voz alta. Nem prometo apenas aos outros. Ou até especialmente aos outros. Antes de mais, para que a promessa tenha alguma hipótese de concretização, começo por me prometer a mim mesmo. Algo assim do tipo "não voltarei a ligar" ou então "não imporei mais a minha presença" e por vezes até "vou fazer de conta que não existe". Tudo coisas bastante simples de prometer, que quase sempre dependem única e exclusivamente de mim, e que quase sempre beneficia outros para além de mim próprio. E, fundamentalmente, tudo promessas que quando prometidas fazem todo o sentido na minha cabeça. Repare-se que não prometo nada que à partida não posso cumprir, nem mundos e fundos, nem coisas que escapam ao meu alcance. N
Imagem
"É preciso construir boas memórias!" Recordei-o hoje à medida que caminhava quase no deserto, envolvido num amanhecer agreste, na margem de um mar ainda mais agreste, tendo apenas as memórias como companhia. Recordei-o a propósito da esplanada, hoje ainda mais despida, hoje sem nos ter como protagonistas principais, hoje sem as personagens secundárias que desfilavam à nossa frente sem verem ou serem vistas, hoje sem história, ou filme, ou enredo, tendo apenas as memórias por companhia. Recordei-o quando o mar me abordou, hoje mais que o costume, muito mais que o costume (estava revolto como nunca o tinha visto) e não tive quem me quisesse agarrar por causa de histórias de vertigens alheias, e tive apenas as memórias por companhia. Recordei-o ainda quando, totalmente imerso na paisagem que me rodeava e me invadia a alma, pensava numa partilha de Taizé e numa forma de descobrir Deus na natureza e aí O confirmar e aí ter a certeza da Sua presença e eu a pensar, na altura,
Imagem
"Se algum dia ouvir aquilo que o L ouviu, ninguém me volta a por a vista em cima." Disse-o a três pessoas. Apenas. As que interessava. Por motivos distintos. Completamente distintos. Porque são pessoas diferentes. Completamente diferentes. Porque, juntas, abarcam toda a vida. Todas as dimensões da vida. E assim já sabem o que não procurar. Onde não procurar. "O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio." Li agora mesmo. Do António Lobo Antunes, na Visão. É isto, é justamente isto, o que não quero. Ele consegue ver uma coragem que eu não consigo, que eu não quero, que eu me nego ver. Prefiro outra. Prefiro gastar a minha vida ou, nessa altura, o que restar dela, numa qualquer terra de África ou da Ásia ou da Europa, ou de qualquer parte do mundo a torná-la verdadeiramente significativa para alguém. Assim, mato dois coelhos de uma cajadada: deixo-me gastar de forma digna (porventura resgatando-me a mim próprio) e evito os olhares piedosos dos que am
Imagem
Falamos hoje a primeira vez. Ao telefone! Desde 26 de Outubro que não escutava nada vindo dele. Desde esse dia que apenas o vi dormir, quando o fui visitar, mas ele estava tão cansado que nem conseguia abrir os olhos e nem deu conta que eu estava lá. Hoje disse-me que lho tinham dito. Ainda bem! Prometi-lhe que esta semana visita-lo-ia, com tempo para sentar, olhá-lo, ser olhado, e conversarmos o que temos a conversar. Com Tempo! Que eu pensei nunca mais voltar a ter junto dele. Sou um homem de fé. Acredito em milagres. Não particularmente em luzinhas vindas do céu, particularmente dirigidas a alguém, mas acredito em milagres. Acredito que há pessoas boas e profissionais bons e sensíveis e inteligentes que estão atentos aos que deles necessitam e fazem tudo o que podem e sabem, não querendo saber nessas alturas das suas próprias circunstâncias. E acredito que Deus atua neles e por eles, por vezes até ao arrepio das suas próprias conveniências. E acredito que o Jorge é um milagre
Imagem
Acho sempre espantosa a volatilidade do meu olhar. Acredito algumas vezes que o que vejo é o que vejo e que as coisas são como as vejo. Que o azul é azul e o vermelho vermelho, que o belo que vejo apenas pode ser belo e toda a vida foi belo, que nada nem ninguém pode adulterar algo para mim tão evidente - naquele momento - como aquilo que vejo. E então ajo em conformidade, alicerçado na perceção evidente do meu mundo, que me é trazido pela clarividência do meu olhar. Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida. Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs
Imagem
Acredito que há amor que me ultrapassa. Acredito que todo o amor me ultrapassa. Ou então não é amor. Pode ser arrebatamento, ou paixão, ou obsessão desenfreada que nos tolhe os movimentos e o pensamento por alguns, breves, momentos - o que é um momento no espaço de uma vida? - e depois passa, eclipsa-se, acaba, como acaba o sol no final de cada dia, por muito quente que esse dia tenha sido. Mas não volta. Não permanece. Não fica, apesar de tudo, apesar de toda a racionalidade, apesar de todo o bom senso, ou mau senso, ou qualquer senso. O amor ultrapassa. Todo o senso. Mesmo o contrassenso. Aliás, estou convencido que todo o amor é contrassenso. Não faz sentido. Faz sentir, o que é absolutamente diferente. Para melhor! No amor não pesamos os prós e contras, como numa tabela de cálculo. Porque não há cálculo. Ou então, é um amor calculista. E já não é amor. Não sendo cálculo, terá que ser, assumidamente, risco. Não de engenheiro - não é cálculo - ou de arquiteto - nem sempre é bonito
Imagem
"Está uma manhã fria e feia", escrevi. "Como eu", pensei sem o escrever. Estava, de facto. estávamos, ambos, eu e a manhã, frios e feios, sem qualquer réstia de sol que aquecesse. E o fim de semana até foi bom, tive o Juramento de Hipócrates da minha filha - que estava felicíssima! - deu para descansar e recuperar forças, deu para escrever algumas coisas, preparar outras, mas... Há uma cena no "vamos dançar" em que o protagonista confessa a sua vergonha por sentir que lhe falta algo, apesar de ter tudo o que sempre sonhou. Como eu o percebo! Tenho dias em que o sol não me aquenta, em que me deixo ir abaixo, em que a acutilância desta sensação de perda me incomoda verdadeiramente. A ponto de moldar o meu dia. São dias em que me sinto uma sombra, em que pareço uma sombra, em que procuro a sombra, em que quero caminhar na sombra do corredor, e onde cada "biba" ou "bom dia" me soa a descabido. Em que o que mais me apetece - e já o fi
Imagem
"Eu quero viver, sabes? Finalmente viver. Ir a um teatro, a um cinema, a uma exposição de arte, passear a sábado de manhã, escolher não passear ao sábado de manhã e ficar em casa, simplesmente ficando em casa. sem nada para fazer, saboreando o sem nada para fazer. Quero apanhar um comboio ou um avião no final de sexta e ir para um outro lugar e conhecer e viajar, quero estar de volta no domingo, a tempo de descansar e me preparar para a semana que se segue. Quero deixar de ter compromissos de fim de semana e de ter que estar sempre ocupado para os outros e pelos outros. Quero a minha carta de alforria, o meu grito do ipiranga. Adio-me há mais de trinta anos,tenho dez ou quinze para viver com qualidade, para sentir a vida a acelerar o pulsar do sangue e não os quero desperdiçar." Escutei o que dissera, passei-o em revista, e suspirei fundo, concordando novamente. Em nada do que dissera escutara qualquer novidade. Mas vai ser uma surpresa do caraças. Para toda a gente.
Imagem
A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando acinzentado, mais nublado, mais turvado, e eu com ele. Eu gosto de olhar. A fundo. Consigo esquecer os nomes e os lugares onde os nomes se tornaram nomes e as pessoas se tornaram pessoas, mas dificilmente esqueço um olhar. Disseram-me, em Quelimane, numa outra vida - já tive tantas vidas! - que por vezes o meu olhar é demasiado. Intenso, provocador, invasivo, contundente, incómodo, revelador... é vir o diabo e escolher. Não tinha essa ideia. Para mim, olhar sempre fora olhar. Apenas isso. Só depois me apercebi que para mim, olhar é muito mais que apenas olhar. Que serve para ver. Que serve para conhecer. Que serve para valorizar. Ou não. Não estou, no entanto, habituado a ser olhado. Perscrutado. Analisado. Revelado. Amado, até. Pelo olhar de alguém que não o meu. Incrivelmente, há novidad
Imagem
Aperto o casaco de Taizé até cima e ainda assim o vento gelado entra-me pelo pescoço dentro. Meto as mãos nos bolsos, na vã tentativa de manter as mãos quentes - logo as mãos, que neste tempo estão sempre geladas! - e acelero o passo. Hoje não vi ainda ninguém. Não admira. Lá para abril ou maio é que isto começa a ficar pejado de gente a  correr, a passear, a estenderem-se como bacalhaus a secar. Por agora o frio ou a expectativa de chuva afasta a maioria das pessoas. Ainda bem! Lá para abril ou maio, à medida que os outros vão chegando, eu vou saindo. Não que tenha a mania, mas porque é sossego, o que procuro, e sossego é pouco compatível com algum tipo de pessoas. Viro a esquina para subir as escadas e deparo-me como senhor de calções. Já vi alguém. Arrepio-me ao pensar como pode alguém andar de calções com aquele vento gelado e sigo caminho. Ao fundo vejo, finalmente, o senhor idoso com o cão idoso e, como sempre quando me cruzo com eles, não consigo concluir qual deles tem mais
Imagem
Ontem era dia de estudarmos juntos. Filosofia. O que, para a cabeça do meu-mais-novo é uma tremenda complicação. Ainda ontem me dizia que o sonho dele é trabalhar com motores. Montá-los e desmontá-los, perceber a fundo como funcionam e o que faz mover o quê. E que sonho mesmo era montar ele um carro de raiz, o carro dele, de princípio a fim. E fazê-lo com os filhos. Disse-o numa conversa como quem-não-quer-a-coisa, nem sequer se apercebendo que foi a primeira vez que me falou a sério dos seus sonhos de futuro que não envolvessem qualquer disparate adolescente. Mas ontem era dia de filosofia. De nós cegos, portanto, numa cabeça que encontra muita maior tranquilidade nas físicas e matemáticas e que fica  à rasca quando tem que argumentar e consolidar posições. Ontem era sobre determinismos e liberalismos e livre arbítrios. E foi muito interessante. Falamos das nossas opções, das nossas responsabilidades pelas nossas opções, das nossas cada vez menores desculpas e justificações à medid
Imagem
Sentamo-nos brevemente.A conversar. Para conversar. Tínhamos estado, momentos antes, à vez, com uma amiga comum, que conhecemos em circunstâncias muito diferentes, mas que nos atou a ambos com o mesmo laço. A determinada altura ela percebeu que quando falávamos, em momentos e lugares diferentes, de modelos, era um do outro que falávamos. E disse-nos. A ambos. Em momentos diferentes. Falou-nos da surpresa que tinha sido para ela referirmo-nos um ao outro em termos muito semelhantes. De amizade, de admiração, de modelagem alicerçada por um percurso de vida que, apesar de distante no espaço e no tempo, tem muitos pontos similares. Foi mais um pretexto para nos sentarmos e conversarmos e partilharmos e voltarmos a aprender um com o outro. Poderia ser meu filho mas nem é como filho que o vejo, nem é como pai que me vê. Somos amigos, vamos sendo, cada vez mais, companheiros de caminho, com toda a cumplicidade que quem caminha sabe que se cria, e como frutifica. Há uns tempos, n
Imagem
Interrogo-me o que me faz carregar esta procura. Permanentemente! Uma vezes como se fosse um fardo, um fado, um destino, jamais satisfeito na sua plenitude, jamais saciado. Outras desafiador, motor, impulso, que me leva a tentar ir sempre mais longe, para além daqueles que acredito serem os meus limites, e que, quando corre, bem, me catapulta para um outro patamar. Uma procura que me é, antes de mais, interior, profundamente interior, que está cá antes de qualquer pensamento, antes de qualquer processamento lógico, antes de qualquer racionalização mas que me é tão ou mais natural que eu próprio, que provavelmente já seria antes de mim, porque desde que me conheço não me conheço noutra condição que não esta. Questiono-me o que me faz sentir esta sintonia. Esta profunda sintonia. Esta sensação que tudo está, finalmente, no seu lugar, que todo o universo conspira para que eu encontre, finalmente, o meu lugar, para que eu, finalmente, sinta que pertenço, que estou por direito próprio
Imagem
Já não sei caminhar sozinho. Já não consigo caminhar sozinho. Fazem-me companhia os que me habitam, que vão conversando comigo, que vão discutindo comportamentos e atitudes, que vão corrigindo palavras menos cuidadas, posturas menos sensatas, com as quais vou argumentando sucessivamente, escutando atentamente os seus argumentos, pesando-os, valorizando-os, até que eu possa fazer as minhas próprias conclusões. E decisões. E não me habitam apenas pessoas. Também tenho filmes cá por dentro e músicas e fotos e extratos de livros que ando a ler ou que já li e que volta e meia vou buscar para poder comparar, para poder escolher, para poder decidir sobre este ou aquele assunto, importante ou secundário, relevante ou supérfluo, que isso não importa para nada. Nada do que faço ou digo ou leio ou vejo é em vão. Nada. Absolutamente nada! Nenhuma atitude, nenhuma conversa, nenhum alheamento, voluntário ou não, nenhum silêncio, nenhuma palavra, nada, absolutamente nada, deixa de te, em determ
Imagem
Serenar, organizar as ideias, ver, agir. Em conformidade. Comecei ontem a ler um livro do Miguel Sousa Tavares. Como me acontece muitas vezes quando o leio, as suas descrições de um lugar dão-me uma vontade de, logo ali, naquela altura, fazer a minha mochila e partir para aquele lugar que ele tão bem descreve. Apetece-me ouvir os pássaros que ele ouve, estar no alpendre onde ele está, no pequeno apartamento que alugou num sítio que nem sei bem onde fica e escutar a noite como ele escuta. Raras vezes, sou assaltado pelos "e se...": ... e se tivesse a coragem de partir? ... e se largasse tudo, de repente, sem comos nem porquês?... e se fizesse apenas o que me desse na real veneta sem ligar para as consequências?... e se vivesse, efectivamente, cada dia como se fosse o último? Um dia destes, enquanto via uma apresentação da missão a Timor, tive que me levantar e procurar um outro lugar onde pudesse estar mais longe dos olhares dos que me rodeavam. Senti uma saudade imen
Imagem
Vi-o sair, nitidamente mais cabisbaixo que o costume. "Então? Está tudo?" "Nem por isso." Pressenti o seu desejo de conversar, apesar de nunca termos trocado mais que palavras de circunstância numa qualquer reunião de pais das nossas filhas. "Que se passa?" "A minha mulher morreu." Nada nos prepara para ouvir isto, muito menos de chofre, muito menos numa conversa que não era suposto acontecer. A tristeza do seu olhar era agora indescritível, e eu perguntava-me como não pudera ver isso antes. "Estávamos tão bem, agora... a nossa filha a trabalhar... tínhamos ido de férias em setembro... dia 22 morreu no hospital... cancro... sinto-me perdido em casa... sozinho..." Parece que se acantonou de armas e bagagens por estes lados. Sonho com ela recorrentemente, penso nela mais que o costume, porventura mais que o que devia, como se fosse uma sombra permanente sobre o ombro. Sempre presente. "...hoje não vou poder ir: morreu o i
Imagem
Na semana passada, conversava com um dos meus filhos acerca de carros. Nós somos assim: conversamos de tudo e de nada, de fé e política, de convicções e diversões, de filmes e cartoons, de carros e jogos, de testes e filosofia... não temos uma cartilha de conversas importantes e secundárias, todos os motivos, todas as horas, todos os momentos, são bons para aprendermos juntos. Mas naquela altura era de carros que falávamos. Adolescente como é, cheio de "velocidade furiosa" na cabeça, contava-me o seu fascínio por eleanors, e mustangs e outros que tais. Eu contrapunha com classes E e series 5 e ele dizia-me  - como me dizem todos eles - que eu estava a ficar velhote. É verdade! Mas não é apenas isso. As minhas benditas caminhadas matinais junto ao mar têm feito o seu caminho cá por dentro. Têm sido uma oportunidade para reeducar os sentidos. Logo que desço da avenida para junto ao mar o som muda com uma rapidez impressionante e fico apenas com o som das ondas, das gaivo
Imagem
Gostei sempre de filmes épicos. Aqueles em que se luta até ao limite das forças, contra todas as probabilidades, contra tudo e contra todos, sempre em nome do amor. Então se for com morte certa, se ficar apenas um para a história, melhor ainda. Com extraordinária facilidade sinto-me catapultado para o centro dos acontecimentos e também eu me vejo lá, orgulhosamente lá, a lutar sozinho, a morrer sozinho e, sobretudo - porque isto é o que verdadeiramente me seduz - a ser finalmente reconhecido como um herói por aqueles em nome de quem abnegadamente lutei. É evidente que se o que me emociona é o reconhecimento final, a minha luta é tudo menos desinteressada. Até porque normalmente sou mais sensível a este tipo de epopeias quando estou mergulhado até ao pescoço em algum tipo de alhada da qual não consigo forma de me livrar de cabeça erguida. Então, nada melhor que um ato heróico que me faça tirar da mediocridade e elevar-me à justificadíssima, evidentíssima, condição de herói da human
Imagem
No sábado, por entre reuniões de trabalho, almocei com gente tida como importante. No entanto, sentia-me completamente em casa. Como sempre acontece naquela família, tivera sido muito bem acolhido, sintonizo-me com a sua forma de ser e de estar, identifico-me com a sua forma de trabalhar e servir, e quando isso acontece, esqueço com extrema facilidade os cargos ligando-me apenas às pessoas. Na altura, enquanto a conversa vai fluindo, isso não me incomoda absolutamente nada: sorrio quando tenho que sorrir, concordo quando tenho que concordar, tento argumentar quando isso não acontece, como se estivéssemos verdadeiramente entre família, onde os cargos que se ocupam são sempre circunstanciais e perfeitamente secundários. O problema é que quando isso acontece tendo a preservar-me pouco, porventura a revelar-me em demasia, a cometer alguns erros - que apenas a mim me comprometem, no entanto - e nem sempre saio bem visto da coisa. Mais tarde, quando passei a conversa em revista, quando
Imagem
...e de repente, depois de uma série de anos de calmaria, ondas vindas de vários quadrantes atingem-me o barco. Parece que tudo mexe, parece que nada mais será como antes, parece que os deuses se reuniram em conluio para me agitarem as águas e testarem as minhas escolhas. A nível pessoal, profissional e agora até a nível nacional, as verdades que ainda ontem o eram inquestionavelmente hoje são já ultrapassadas pela realidade que, apesar de incrédula, é indesmentível. Conversávamos ontem ao jantar acerca da imprevisibilidade da vida e das nossas reações quando tudo parece escapar ao nosso controlo. E vamos sempre ter à incógnita do amanhã e ao Carpe Diem, que ainda ainda assim tem múltiplas interpretações: se há quem ache que o que importa é viver tudo hoje e com isso cometa as maiores loucuras, outros acham que o importante é a qualidade da marca que deixamos nos outros e com isso viva voltado para fora. De comum às duas visões, a premência da vida que teima em escapar-se-nos por
Imagem
Há conversas que nunca acabam. Poderíamos estar ali, uma vida toda, com o tempo todo, com o sol todo, e a brisa, e a paisagem, e tudo o que nos rodeia, que haveria sempre qualquer coisa que ficaria por dizer. E partilhar. e sentir. Quando, a custo, nos afastamos - e é sempre a custo que o fazemos - ecoa ainda tudo o que não foi dito. É o que dissemos que é passado em revista, uma e outra vez, num e noutro sentido, mas é no que ainda não dissemos que me detenho. Porque não foi dito. Terá sido condicionado? Terá sido voluntário? Talvez não tenha sido ainda o tempo de o fazer, talvez seja ainda cedo, talvez seja agora demasiado tarde, talvez ainda seja necessário mais caminho, talvez... Provavelmente, seria mais fácil se as palavras não tivessem que ser ditas. Se tudo funcionasse por osmose, sem termos que fazer nada por isso, sem ter que ser escolhido e por isso pensado e decidido e deliberado, mas fluísse apenas, permitindo a certeza da evidência, clarificando com a certeza da evidê
Imagem
Na minha família de cientistas, os meus olham para mim com a mesma naturalidade com que se olha para um elefante vestido com um tutu cor de rosa. Volta e meia, enquanto eles estão a discutir enzimas e bactérias e outras coisas que tais, eu, meio para os provocar meio a sério, digo-lhes que encontro mais certezas nas coisas do Espírito Santo que naquilo que eles estão a dizer. Para além da natural provocação - que me dá um gozo especial quando os meus cunhados irlandeses estão cá (eles são mesmo cientistas!) - eles sabem que acredito naquilo que afirmo, e eu deixo que isso os escandalize. Quando consigo provocá-los a ponto de discutirmos a sério, tenho o cuidado de substituir o Espírito Santo pela alma, o que, não sendo para mim a mesma coisa, permite no entanto despir a carga teológica da discussão e abrir caminhos comuns, defendendo a minha dama porque a verdade é que eu acredito mesmo nas coisas da alma, na importância da alma, na inevitabilidade da alma, que a essência do q
Imagem
Existem muitas maneiras de sermos culpados. Basta procurar. É como numa operação stop: podemos ter tudo em ordem, pode o carro ter vindo da vistoria há duas horas, podemos ser o condutor mais cuidadoso do mundo, mas se o polícia acordou mal disposto não temos nada a fazer. Há sempre uma luz que pisca, há sempre uma luz que não pisca e devia piscar, há sempre um traço contínuo que se ultrapassa, há sempre um sinal que foi roubado mas devia estar lá e nós não o vimos. Há sempre uma maneira de sermos culpados. Adoro escutar. Pela quantidade e, sobretudo, pela qualidade das pessoas que se abrem comigo, fui aprendendo que este deve ser um dos meus dons. Que me esmero em colocar em prática. Algumas vezes ainda fico demasiado absorvido pela data limite que o trabalho sempre nos impõe, mas tento ir ficando mais atento a quem se aproxima - ainda que ao longe - tento ir lendo nos olhares - ainda que se desviem - tendo ir disponibilizando um lugar para que, quem quiser, quando quiser, se qui
Imagem
"Ele estava ontem com questões existenciais. Pelas mensagens que lhe enviam, ele não sabe se não deveria alterar a sua rotina para ficar mais em consonância com a dor que deveria sentir." Sorri, para dentro, e percebi bem o seu dilema. Os outros esperam sempre que tenhamos um determinado tipo de atitude, que demonstremos um determinado tipo de dor, ou de alegria, ou de indiferença, e, muitas vezes sem o desejarem, julgam-nos por isso. Eu aprendi há muitos anos a não dar especial relevo às expectativas dos outros. Vejo, escuto, interrogo-me, faço o meu próprio julgamento, e tento seguir caminho. Normalmente sem sequer me preocupar em explicar as minhas decisões, o meu comportamento, as minhas atitudes. A não ser que magoe alguém por isso - e aí uma explicação é exigível - nunca me apetece justificar-me, nunca sou bom em justificar-me, nunca consigo justificar-me sem ter aquela sensação que ninguém tem nada a ver com isso. A não ser que eu o queira, a não ser que eu lhe
Imagem
Não foi a primeira vez. Ali estávamos nós, como estamos em cada dia 1 de Novembro, no cemitério, junto daqueles que jazem à nossa frente, acompanhados daqueles que ali estarão, em princípio, daqui a algum tempo. Nenhum outro lugar me consciencializa com tanta evidência do ciclo da vida. Lembro-me que há um par de anos, neste mesmo dia, olhava para a Tia Micas e tinha a percepção clara que ela imaginava que estaria ali, dou outro lado, no próximo 1 de Novembro. E ontem lá estava ela, efectivamente. Estava um fabuloso final de tarde, ontem. O cemitério não tão cheio - "os velhos vão morrendo e os novos não vêm a estas coisas" - o Padre Rosas a celebrar, e eu a olhar à minha volta, a ver os meus velhos que me rodeavam, a ver alguns dos amigos de sempre a prestarem homenagem aos seus pais, amigos, familiares, e eu a olhar para o céu, a conseguir ver o laranja forte do sol nas nuvens carregadas de água "está um belíssimo final de tarde!" e a pensar no Jorge, que nor
Imagem
O mesmo dia, dois momentos, dois estados de espírito, duas formas de estar, duas formas de sentir, diferentes. Completamente diferentes. Caminhamos como caminhamos sempre. Com palavras. Por vezes com pés, outras com olhares, rápidos, fugidios, muitas com a doce ilusão do que se vê de olhos fechados, mas sempre com palavras. Não foram elas que nos introduziram, foi outra coisa, que as dispensa, que as torna supérfluas, mas que elas vão consolidando. Com a particularidade de, desta vez, terem sido outras, as palavras que tivemos por companhia. Menos perguntas, menos repostas, menos necessidade de perguntas e de respostas, mais lugar ao puro prazer da companhia, à coisa nenhuma, ao tudo profundo, ao tudo e ao nada, provavelmente espelhando uma maior confiança no tempo que há de trazer consigo o tempo das perguntas e respostas significativas, acreditando que agora o tempo joga a nosso favor. Caminhamos como caminhamos ultimamente. Olhos no chão, olhos no que nos rodeia, no que se
Imagem
Passo uma música, dez segundos depois escolho outra, tento concentrar-me, seja como for. Em vão! Hoje tudo é em vão! Enquanto ele estiver nos cuidados intensivos, enquanto não souber ao certo o que se passa, enquanto não conseguir lidar com esta inquietação que me habita as entranhas, tudo é em vão. A aparência da normalidade, que se impõe nestas alturas, deixa um intenso sabor a fel. A sensação que não é aqui que deveria estar, a certeza que deveria ser lá, mais perto dele, ainda que tão impotente quanto aqui, ainda que tão inútil como aqui, entorpece-me os sentidos e não consigo pensar nada, fazer nada, sentir outra coisa que não esta impotência que me tolhe os movimentos. Esperávamo-lo ontem para, como sempre, festejar connosco mais um aniversário de mais um dos nossos filhos. Sabíamos que desta vez não viria, como veio tantas outras, apenas para se sentar no canto do sofá, apenas para aí estar, sem abrir a boca, sem olhar para coisa nenhuma, bebendo dos nossos sons, absorvend
Imagem
... e, de repente, acordas. Fui visitar a minha avó. E, como tem acontecido a longo deste último ano, a viagem de regresso a casa gira em torno dela, da rápida aceleração do seu processo de envelhecimento, da passagem tão difícil do cérebro à boca que torna as suas palavras tão entarameladas, do seu olhar que ora está vivo como antes, ora, de repente, se embacia, da sua consciência da progressiva perda de consciência, do fatídico "estou mortainha por morrer"... Se os seus 94 anos tinham já repercussão no seu corpo, a sua cabeça, até há pouco tempo, permanecia tão lúcida como antes. Dizia mal das mesmas pessoas, mandava as suas piadas - invariavelmente entrecortadas com as caralhadas que eram a sua imagem de marca - perguntava por mim e pelos meus sabendo que perguntava por mim e pelos meus conseguindo identificar quem eram os meus. Agora, quando finalmente sabe o meu nome, confunde-me com o meu pai, ou com um dos meus filhos, alternando sucessivamente as suas convers
Imagem
Sinto sempre um respeito e responsabilidade profundos por aqueles que são capazes de fazer aquela que é, para mim, a mais difícil das partilhas: a dos momentos difíceis. Aconteceu num destes dias. Cruzáramo-nos várias vezes nos corredores da vida, com cordialidade nos cumprimentos e no olhar, apercebendo-nos do bom acolhimento mútuo. Mas nunca conversáramos, a sério, nunca tínhamos feito nada juntos, nunca tivéramos sequer oportunidade de trocar mais que o mecanizado e mecanizante "tudo bem?" da praxe. Mas aconteceu num destes dias. Calhou ter-se proporcionado um momento para conversarmos e, passada aquela barreira que nos permite confirmar ou não a intuição sentida, partilhou. As suas dores, as suas dificuldades, a sua solidão, porventura o seu desespero em conseguir lidar com a situação, a sua profunda solidão, mais uma vez, numa manifesta incapacidade de gerir - sem julgar poder contar com mais ninguém! - o céu que teima em desabar sobre a sua cabeça. Impressi
Imagem
Esta noite foi passada na companhia da minha velha amiga insónia. Muitas vezes não é assim tão amiga: deixa que eu me enrede nos meus próprios pensamentos como peixe na rede, sem me conseguir soltar de mim próprio, sem avançar noutro sentido que não seja o círculo perfeito, voltando uma e outra vez ao mesmo lugar, sem progredir coisa nenhuma. Não foi isso que aconteceu esta noite. Desta vez fartamo-nos de conversar. Das coisas da alma, principalmente. Disse-me que eu estava enganado havia muito tempo. Que a alma não é uma só, presa ao corpo, amarrada à vontade, rendida aos nossos desejos mas tem vida própria. Que prender e amarrar e render fazem parte de um outro vocabulário, que é estranho à linguagem da alma. Que refere a um outro mundo: o das coisas, das quais o corpo faz parte. E disse-me ainda - para me tentar fazer perceber - que a alma é um pouco como Deus que, sendo um, não é apenas um, e não sendo apenas um, não deixa no entanto de ser um. E que, sendo um, habita em mui
Imagem
Apenas duas coisas em mim provocam o silêncio involuntário: o peito vazio e o peito cheio. Quando vazio, não tenho nada para dizer. Tudo é turbilhão de ideias e imagens e momentos e frases e gritaria em alvoroço, provocando o alvoroço, impedindo qualquer pensamento claro, obstruindo qualquer discernimento. Nada sai porque tudo acontece ao mesmo tempo, e o silêncio é ensurdecedor. Quando cheio, não consigo dizer nada. Tudo é turbilhão de ideias e imagens e momentos e frases e gritaria em alvoroço, provocando o alvoroço, impedindo qualquer pensamento claro, obstruindo qualquer discernimento. Nada sai porque tudo acontece ao mesmo tempo, e o silêncio é ensurdecedor. Apenas aparentemente o vazio e o cheio são a mesma coisa. Quando o peito está vazio, o meu percurso é descendente. Tudo é colocado em causa, todas as decisões, todas as atitudes, todas as palavras, são passadas pelo crivo, frequentemente impiedoso, da minha racionalidade em busca de uma razão, de um motivo, de algo
Imagem
Nunca entendi bem o que leva as pessoas a chegarem à minha vida. E a saírem. Permanecendo... ou não. Umas entram de rompante e provocam tumultos, remexendo, revirando, saindo depois com a mesma impetuosidade, indiferentes ao rasto que deixam atrás de si. E o que deixam é quase sempre uma marca de saudade dos futuros que nunca o chegaram a ser, de tudo o que poderia ter sido, das loucuras que poderia ter cometido mas que, por decisão própria, falta de coragem, falta de arrojo, excesso de comodidade, foram por mim preteridos em favor de outros caminhos escolhidos. Volta e meia cruzamo-nos novamente, normalmente num rede social, e ficamos mutuamente felizes por sabermos que a vida nos conduziu a lugares que, sendo diferentes, são os de cada um de nós. Outras pessoas, no entanto, entram de mansinho. Por algumas delas espero bastante tempo. Intuo que há qualquer coisa, que a vida se encarregará de confirmar ou desmentir, e vou ficando atento, pelo canto do olho, aos seus sinais, ao
Imagem
Todos os dias, antes de começar, olho para trás, na esperança que chegue. Todos os dias, antes de acabar, olho par a frente, na esperança que chegue. Todos os dias, ainda que nunca chegue, espero que amanhã seja o dia em que chega. Eu gosto de esperar. Gosto que combinem, antecipadamente, de marcar o dia, e o local, e a hora. Gosto de acordar antes, de chegar antes, de viver antes o que calculo que irei viver a seguir. Gosto daquela sensação de aperto, de expectativa, de imaginar as conversas, o percurso interior que iremos fazer, o percurso exterior que iremos fazer, de antecipar as paisagens e os sons e as cores que irão colorir aquele momento que será apenas nosso. Gosto de confiar que chegue, que depois, pouco antes de chegar, rapidamente se transforma em duvidar que chegue, rapidamente dá lugar ao perscrutar do horizonte, numa tentativa de ver, primeiro a silhueta, depois o andar, a forma como caminha e se dirige a mim, depois, mais perto, o olhar, o sorriso - se o motiv