Quase todos os anos, no âmbito dos grupos de pastoral de que faço parte, surge a proposta de brincarmos aos pobrezinhos: por uns tempos, na quaresma, por exemplo, vamos passar algumas refeições sem comer para nos solidarizarmos com os que nada têm para comer. Oponho-me sempre, algumas vezes de uma forma veemente, porque entendo que é um insulto para quem nada tem. Talvez porque eu já testemunhei o que era isso, talvez porque eu já vi a aflição dos meus pais, talvez porque em algumas alturas da minha vida o que tive foi o necessário para matar a fome e nada mais, talvez porque hoje em dia contacto com pessoas que, efetivamente, nada têm para comer e não sabem onde o poderão ir buscar, tudo o que seja brincar às fomes parece-me um insulto. Nunca nenhum de nós saberá o que é ter efetivamente fome. Nunca nenhum de nós saberá o desespero de ver um filho esfomeado e nada ter para lhe dar. Nunca nenhum de nós saberá o que será, não saltar uma refeição sabendo que a poderá retomar quando o "sacrifício" passar, mas não saber quando e como e o que se poderá meter à boca. É insultuoso que nós, pessoas mais ou menos bem instaladas na vida, tenhamos sequer a pretensão de imaginar o que é viver nessas condições. Melhor - e muito mais difícil  - seria que dedicássemos pelo menos os 40 dias a ir ao encontro dessas pessoas e dar-lhes meios e soluções e apresentar-lhes caminhos para poderem ultrapassar essa miséria, ainda que, muitas vezes, seja de cabeça. Melhor seria que nos deixássemos de brincadeiras e nos dispuséssemos a ir ao encontro verdadeiro, radical e total dessas pessoas e tentar resolver a sua vida. Não temos tempo? Se quisermos sentir uma miragem das suas dificuldades, tenhamos a coragem de pedir uma licença de 40 dias e de os passar junto deles, comendo o que calhar, dormindo o que calhar e onde calhar, sujeitos ao que a vida nos poderá dar. Aproveitemos esse tempo para formar, para educar, para sensibilizar, para irmos com eles às instituições de apoio e percebermos o que é ser olhado de soslaio mal se chega a uma sala, o que é nem sequer nos olharem. Gastemos esses dias a tentar arranjar-lhes emprego, com a sua formação, com os seus níveis escolares, com o seu passado acumulado de desastres sucessivos. Passemos esses dias tentando fazê-los perceber que a maior parte das vezes estão a colher o que semearam e que é fundamental que tentem dar a volta à situação. Não conheço ninguém capaz de o fazer, mesmo sabendo que no fim desses 40 dias poderá voltar a sua casa. Vai, vende tudo o que tens e junta-me a mim. É radical? É sim senhor. É definitivo? É sim senhor. Eu sou capaz de o fazer? Não sou, não senhor. É demasiado o que me prende ao chão, é demasiado o medo do desconhecido, é demasiada a confiança no dinheiro que se tem que ter para assegurar minimamente o futuro e, por contrapartida, é demasiado pequena a minha fé e a minha confiança naquele que não deixa que nada de mal me aconteça. Mas, enquanto não consigo abraçar essa radicalidade, pelo menos tenho consciência da minha pequenez e não insulto ninguém brincando aos pobrezinhos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue