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202012111230

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Eu sei o que é viver imerso no medo. Eu sei o que é acordar com ataques de pânico. Eu sei o que é ter pesadelos e acordar e desejar com todas as forças regressar ao pesadelo. Eu sei o que é viver de cabeça baixa, com vergonha de olhar ao espelho, com medo que descubram quem sou (era). Eu sei o que é o medo, como nos tolhe, como nos limita, como toma conta de tudo em nós, dos nossos pensamentos, gestos atitudes, olhares, fantasias. Eu sei como se insidia, como se instala, como nos trabalha por dentro, como nos leva a ver o que não existe alterando completamente a perceção da realidade, escurecendo-a, enegrumando-a. Eu detesto o medo. Visceralmente. Esta semana disseram-me que o confinamento me tinha feito bem. Que estou mais calmo, mais ponderado, atribuindo a cada coisa o seu devido peso, sem dramatismos bacocos que não ajudam ninguém a crescer. "Estás mais sábio". Sorri, querendo muito acreditar que sim, sabendo certamente que não. Ainda não, pelo menos. Porventura, poderei

Fratelli Tutti - Artigo para O Poço

    Rerum Novarum, 1891. Poderia apostar que quase ninguém sabe o que é. No entanto, é um documento importantíssimo na História da Igreja. O mundo ocidental de então estava no início da industrialização e, com ela, a procura da riqueza exacerbada, a qualquer custo, sob qualquer sacrifício. O Papa Leão XIII, constatando a progressiva exploração e consequente desumanização dos operários que, considerados meras ferramentas produtivas, trabalhavam horas e dias a fio, publica no dia 15 de maio de 1891 a encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), Sobre a Condição dos Operários. Nesta encíclica, que é tida como a fundadora da Doutrina Social da Igreja, é lançado um olhar sobre os vários aspetos que orientam a sociedade: o primado do trabalho, a noção de bem comum, o salário justo, os direitos e deveres dos trabalhadores e dos detentores do capital. Para espanto de muitos, incentivava os trabalhadores a organizarem-se em sindicatos, avisando, no entanto, do perigo encantatório dos “ismos” –

202011291951

Eu acredito que um dia estarei de frente para Deus. Acredito que ele me acolherá, com o Seu amor de Pai, e me confrontará com a minha vida. Acredito que nos sentaremos numa conversa onde o tempo é sem tempo, que é o que acontece com quem se ama. Hoje estava na eucaristia e pensava nisto. O meu pároco dissera na homilia que ninguém se salva sozinho e nessas alturas eu sorrio sempre, agradeço sempre. Eu sei, desde sempre, que sozinho não teria a mínima hipótese. Sei-o desde sempre porque desde sempre fui resgatado por quem me ama o suficiente para me salvar de mim próprio. Sempre tive quem me dissesse "basta", quem me acordasse e abanasse e me fizesse chegar onde eu jamais chegaria sozinho. Às vezes, naquelas vezes em que preciso de ver o outro lado da vida, gosto de pensar que se calhar isto é também um dom. Deixar-me levar, deixar-me conduzir para melhores lugares de mim. Ou então ser suficientemente amável pelos outros, ao ponto que eles se preocupem verdadeiramente comigo,

202011191215

Acabo de receber a notícia da morte de mais um amigo, neste tradicionalmente nefasto mês, neste demasiado nefasto ano. Como sempre, há o toque a recolher das imensas memórias do imenso que fizemos juntos, particularmente quando éramos ambos novos e vivíamos a cumplicidade da idade da procura. Depois, como acontece com tantos de nós, acabamos por seguir rumos diferentes, sem nunca perdermos os pontos de contacto que nos mantinham debaixo da vista.  Na última vez que conversamos estávamos todos em recolhimento forçado. Ontem mesmo enviava um beijinho à sua mulher, nossa companheira no tempo das descobertas, sua desde sempre. E para o seu sempre.  À medida que o tempo passa vamos conversando sobre a morte. De coisas tão simples como códigos e palavras passe e contas e procedimentos que se devem adoptar para que ninguém fique de repente com as calças na mão. Há três ou quatro anos estas eram conversas quase impossíveis de se ter. Eu andava obcecado com a forma como me apresentaria diante d

202010291518

Hoje estou de baixa. Pela primeira vez desde que comecei a trabalhar, já lá vão 39 anos! E foi quase uma imposição da minha médica de família, que quis assegurar a possibilidade de eu ter, efetivamente, contraído o COVD-19. Estou confinado ao quarto das minhas filhas, a comida é-me colocada à porta e isso tudo é muito esquisito. A Isabel dorme no quarto ao lado mas para todos os efeitos é quase como se estivesse do outro lado da vida. Tenho a certeza quase absoluta que isto é apenas a gripe que costumo apanhar por volta desta altura e que se os tempos fossem outros hoje eu já teria ido trabalhar, apesar da febre. Mas muita coisa mudou ao longo deste ano e o medo instalou-se e a pulsão que todos sentimos é a de que mais vale prevenir. As notícias são muito más dia após dia e o que eu não queria mesmo era engrossar o número dos hospitalizados. Nem sequer é por mim, mas por aqueles que estão há tanto tempo a lidar com tudo isto e que a última coisa que necessitam é de uma marmanjão com qu

202010231508

Vagueio muitas vezes pelas redes sociais. Sobretudo por motivos profissionais porque, trabalhando sobretudo com malta nova tenho que ir onde eles estão se quiser perceber melhor como lhes transmitir o que quero transmitir. Mas não só. Das inúmeras idiotices que se podem ver por lá asseguro que as mais graves e mais escabrosas até nem vêm de gente nova mas de pessoas que já teriam idade para ter algum juízo. Com incrível facilidade se lêem insultos e se depara com intolerâncias que carregam uma violência tal que apenas acontecem porque quem as escreve está salvaguardado pela distância física pois de outra maneira não teria certamente coragem para o fazer. E se o tema é futebol, então, espanto-me com a extraordinária facilidade com que personalidades públicas se permitem revelar daquela forma e se esquecem que não há limite para quem irá ler aquelas coisas. Por isso tento sempre desmistificar quando dizem que os jovens dizem e fazem o que não deviam nas redes sociais. Não que seja mentir

202010201045

 Às vezes há mesmo teocidências, como diz a Daniela. Andava já há algumas semanas com uma questão cá por dentro: que tipo apóstolo serei eu? Instintivamente, sempre fui Pedro, não porque o admire mais - admiro mais a serenidade de João e a tenacidade de Paulo - mas porque me reconheço sobretudo na localização dos eu coração, bem pertinho da boca, o que  leva a dizer e a fazer disparates apenas contrabalançados pela sua extraordinária humanidade. Eu intuía isto até ontem, quando li  um extraordinário artigo de opinião do Bruno Vieira Amaral que coloquei ontem no outro blogue e que pode ser lido aqui. https://paraalemdomeuhorizonte.blogspot.com/2020/10/a-paixao-de-pedro.html. À medida que o lia parecia-me que encaixava tudo o que vinha a pensar, como se o autor o tivesse perscrutado na minha cabeça e depois tivesse a arte e engenho de o colocar no papel. Claro que associado a tudo isso vem sempre aquela sensação que nem que eu escrevesse cem anos seguidos conseguiria fazê-lo daquela mane

202010130932

Fosse eu ao que publiquei sempre por volta desta altura e tenho a certeza que o momento se repetiria. Passado o primeiro embate, superadas as primeiras dificuldades, entro no ritmo como se lá permanecesse desde sempre e para sempre. A rotina instala-se, as soluções procuram-se encontram-se, e os dias sucedem às noites a uma velocidade vertiginosa. E por volta desta altura, focado que estou no eficaz, como que acordo da letargia e sinto uma terrível falta do belo. As coisas da cabeça, apesar de fundamentais, sabem a pouco, a muito pouco, e estão longe de esgotar o sentido do que procuro. Mesmo agora, que faço aquilo para que acredito que nasci, o que faço não é, de todo, o que eu sou. Porque gosto de escutar - e isso deve transparecer - oiço frequentemente, daqueles com quem trabalho, que se sentem meras peças de engrenagem, ferramentas cuja única função é permitir que a máquina funcione. Quando lhes pergunto o que fazem, o que pensam, a que se dedicam para além do trabalho, a resposta

202009231053

Corro muitas vezes atrás de coisas que não interessam para coisa nenhuma. Discussões, ideiais, espumas, que ao fim de quinze dias já nem na memória ocupam lugar ou espaço. Puras perdas de tempo. Uma das minhas filhas é assim e eu espanto-me sempre que constato nela essa ânsia de correr atrás de moinhos de vento. Assume todas as discussões como se fossem fundamentais e, como eu instintivamente faço o mesmo, acabamos quase sempre em alta voz a debatermo-nos sobre coisa nenhuma, sem sequer nos apercebermos que estamos em concordância. A idade, no entanto, volta e meia vai-me permitindo algum juízo e já consigo ir distinguindo o essencial do acessório.  Lembrei-me disto ao ler um artigo acerca da descoberta do sexo por puro prazer, sem amor, depois dos quarenta. Aquele que pretendia ser um artigo liberalizador da mulher eu li como uma rendição. O artigo terminava com a constatação que a mulher em causa não era tão feliz (como era quando o sexo não era apenas prazer mas também afetividade)

202009091034

Uma das formas de avaliar o impactante na minha vida é o distanciamento. Eu, que tenho a propensão para o inebriamento do momento, normalmente preciso desse hiato de tempo para discernir os acontecimentos verdadeiramente importantes.  Diz-se que longe da vista é equivalente a longe do coração, e assim seria se não fosse essa coisa que, segundo alguns, é apenas nossa, que é a saudade, essa coisa boa que aquece o coração, torna presentes os ausentes, menosprezando o tempo. Nas eucaristias começa-me a faltar o tempo para recordar aqueles que partiram. Antes, nesse momento, recordava uma ou duas pessoas e agora são já tantas que quase sempre a eucaristia continua sem mim. Parece que de repente a morte passa a fazer parte da vida, não permitindo remetê-la para as calendas, para o ainda falta muito, para o terei muito tempo para pensar nisso. Todas as semanas morre alguém que carrega consigo uma parte das minhas memórias, e já sei que a cada notícia de morte são as memórias conjuntas que faz

Acolher, Discernir, Transformar, Retribuir, Agradecer

Os meus começos são sempre sonho. Depois poderão passar a projetos, mas em primeiríssimo lugar são sonhos. E gosto que o sejam. Porventura não demasiado ligados à realidade, porventura prenhes de impossibilidade, porventura irrealizáveis. Pouco importa. A vida vivida encarregar-se-à de me recolocar no lugar, de ajustar as expectativas, de me confrontar com os meus limites.  Os meus começos têm sempre um percurso idealizado, com etapas mentais onde, no começo - e quase sempre apenas no começo - tudo encaixo para que tudo faça sentido, para que eu possa crescer, para que eu possa manter a ilusão que o tempo traz consigo mais sabedoria. Este ano, este começo, tem também o seu percurso, uma espécie de mantra que procurarei recordar em cada dia: Acolher, Discernir, Transformar, Retribuir, Agradecer. Ontem, enquanto arrumava a cozinha, olhava para a esponja que tinha na mão. A forma como o líquido da loiça desaparece em si e se mistura com a água que cai da torneira, como a mistura que daí r

202008271453

Recordo uma deliciosa conversa de muitos anos: eu, um padre e um amigo então ligado à comunicação social. Eu, na altura como sempre à procura de segurança, perguntei se não seria melhor termos orgãos de comunicação social confessadamente católicos. Dessa forma, argumentava eu, saberíamos exactamente em que acreditar. O padre encolheu os ombros e o meu amigo, então ligado à comunicação social, disse logo que não, que o melhor era que os católicos que trabalham na comunicação social fossem verdadeiros e dessa forma tudo seria melhor. Serviu-me de exemplo e desde então tomo essa maneira de fazer como boa para tudo: é-se testemunho no que fazemos qualquer que seja o lugar, altura ou disposição. Ontem lembrei-me desta conversa quando vi que um partido que eu desconhecia mas se intitula democrata cristão se vai aliar ao Chega. Incomodou-me, claro. Não tem tanto a ver com o Chega - mas tem um bocado, confesso - mas com a audácia de um partido se auto-intitular democrata cristão. Eu entendo qu

202008241056

Penso em demasia. Sempre. Desde sempre. Tempos houve em que isso era uma bênção. Noutros, uma maldição. Agora, como outras realidades em mim, tento aceitar tal como são para as poder trabalhar. Vem isto a propósito da oração da manhã de hoje, que a dado momento pergunta se obedeço à minha consciência, não a traindo para agradar aos amigos. Comecei logo a divagar: o que forma a minha consciência? É algo que vem comigo, que nasce de dentro, ou que vem de fora, do que vejo e escuto? E o que vem de dentro é sempre mais importante que o que vem de fora? E sou melhor quando escuto o que vem de fora ou o que vem de dentro? A qual das duas vozes - entre tantas outra que me habitam - devo obedecer? Sendo assim, não é demasiado simplista dizer-me que devo obedecer à minha consciência?  Admiro muito os corações simples, os que pouco questionam, os que são suficientemente seguros de si para não sentirem esta necessidade de se questionarem. Muitas vezes quis eu próprio ser assim, com as certezas da

202008100939

Aprendo muitíssimo com a interioridade. Não é apenas em termos de reflexão, ou serenidade momentânea enquanto a pratico, mas na vida, nas escolhas que vou fazendo ou na forma como vou escolhendo. Talvez a coisa mais importante que aprendi foi a chamar a mim o que me rodeia. Antes de a conhecer e de a praticar, tinha a ideia que precisava de tirar o mundo de mim para que me pudesse encontrar. Cedo aprendi, no entanto, que o primeiro passo para um bom recolhimento é fazer o movimento oposto, é chamar a mim o que me rodeia para que me possa habitar. Um movimento simples, que acontece logo no início, é justamente escutar atentamente e assimilar, incorporar, o que se escuta. Apenas assim, tornando-o meu, o som que escuto pode ser reorganizado. Este gesto, este movimento, não me afasta do mundo mas coloca o mundo em mim.   

202007270922

A vida é o que é e vou percebendo que, apesar das minhas fantasias, saber ler as circunstâncias permite-me traçar rumos e calcorrear melhores caminhos. Ontem foi dia dos avós e não pensei nos meus mas nos dos meus filhos. Quanto aos meus, não há muito a dizer. A Teta tem o património exclusivo da ternura dos avós na minha vida, e mesmo nesse caso, foi porque, por minha iniciativa, nos aproximamos no final da sua vida. Fora isso, não haveria muito a dizer. Não tenho memória alguma do avô materno, tenho uma memória muitíssimo ténue do meu avô paterno e a que tenho da avó paterna é tudo menos agradável... apesar de ser minha madrinha. Houve alturas - muitas! - em que o meu maior desejo era ter avós e pais normais, como os dos meus amigos, como via nos filmes, como lia nos livros. Não era isso que acontecia, nunca foi, a não ser quando tivemos a nossa própria família, que pudemos construir e educar segundo aquilo que entendemos como o melhor. E foi, durante muito tempo, uma mágoa. Que se a

202007230845

Ultimamente tenho tido exemplos e conversas acerca desses exemplos de pessoas que têm tido atitudes diversas quando chegam ao fim da linha profissional. Umas, pacificadas, preparam e aceitam esse momento com tremenda tranquilidade, transpirando paz de espírito. Outros ficam angustiados, arrastando-se pelos corredores lembrando-me os zombies, que apesar de caírem aos pedaços, ainda se mantém em pé contra tudo e contra todos. Sempre tive o meu pai como um destes: trabalhou desde menino, primeiro nos campos de Mouriz e depois nas muitas atividades que foi desempenhando ao longo dos anos. Reformou-se aos 65 anos mas apenas no ano passos, com 7e anos, deixou de trabalhar. Para se dedicar a minha mãe. Nos primeiros meses correu espantosamente bem, mas recentemente tive ecos de que estaria com alguns sintomas de depressão.Que não me surpreendem. Cuidar da minha mãe, apesar de ser um trabalho de quase 24 horas, é pouco para quem toda a vida saía de manha e regressava à noite. Vamos ter que con

202007221509

Tentar descobrir Jesus nos outros, a cada momento, é um exercício que tem tanto de belo como de difícil. É certo que logo que consciencializo a intenção de o fazer já percorri mais de meio caminho: altera-se a atenção, o cuidado, e o propósito fica mais perto do alcance. Mas continua longe de me ser natural. E fácil. Uma parte importante dos meus dias e do meu trabalho é servir as pessoas. Servir mesmo, porque nenhuma delas paga e a nenhuma delas é mais pedido que a presença e, uma vez presente, que saiba estar. Volta e meia, quando corre bem lá vem uma palavra de gratidão ou reconhecimento, o que, não sendo o nosso propósito, serve também de alento. Mas na outra meia volta lidamos também com pessoas que , sendo-lhes dado tudo, acham-se ainda no direito de cobrar, de exigir, de se queixarem. E é com estas e nestas que é mais difícil descortinar Jesus, que se deve entreter a brincar às escondidinhas algures dentro delas. A estas apetece logo responder curto e grosso - uma linguagem que

202007171210

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Levei muitos anos, travei muitas inglórias batalhas contra imaginários moínhos, para perceber a minha forma de ser inteiro. Pensava eu que para ser inteiro deveria ser granítico, monobloco, sem rachadelas ou quebras, um pedaço que, pelo menos à vista desarmada, se apresentasse perfeito, incólume, sem falhas. E cada falha era tida por mim como um atentado a essa pretensão, como um desastre, como algo que deveria ser removido, o que normalmente significava ter que ser escondido do olhar, meu e dos outros. Tarde, mais ainda muito a tempo, o Meus fizeram-me perceber a minha idiotice. Que todos viam as minhas falhas, sabiam delas, e que, embora não gostassem particularmente delas, disseram que me amavam com elas, apesar delas, já que essas falhas são também o que eu sou. O curioso é que eu sempre gostei mais do antigo que do moderno. Sempre gostei das casas que apresentam marcas de uso, falhas e fendas, que interpreto sempre como marcas de vida. Gosto imenso das páginas amarelecidas dos liv

202007111034

"Que possas caminhar devagar" Parece fraco conselho. Pelo menos foi isso que eu senti quando o li, algures ameio do "Meia-Noite ou O Princípio do Mundo", do Richard Zimler. Como muitas vezes me acontece nas minhas leituras - há livros onde me demoro meses a fio - fechei-o e dei tempo e espaço para que esse conselho ecoasse em mim. E lá fui percebendo. Durante estas duas últimas semanas pensei nesse conselho várias vezes. Na verdade, nem sempre me posso dar a luxo de caminhar devagar. O tempo urge, os afazeres também, e há uma espécie de urgência que, estupidamente, nem sempre é efetiva mas imaginária, interior, mais auto-imposta que ditada pelos acontecimentos. São rabos de palha, coisas que ficam cá por dentro e impedem de fechar e arrumar outras coisas que deveriam fazer já parte do passado roubando-me o sossego e a tranquilidade. E eu até tenho uma vantagem relativamente à maior parte das pessoas: nessas alturas gaguejo mais e quando me interrogo porque gaguejo m

202007100927

Por vezes tenho alguma dificuldade em entender a dificuldade alheia em viver num clima de interiorização e espiritualidade. Eu, que caminho imenso e que rezo imenso enquanto caminho, tendo a desvalorizar quando oiço as bocas do tipo "pois, tu tens tempo", ou "tu tens sorte" ou então a costumeira "vidinha boa" com que sou frequentemente bombardeado. É que depois vejo-os na conversa, a quantidade de horas desperdiçadas, todos os dias, em ditos que não levam a lado nenhum onde valha a pena estar, e concluo que, na realidade, a maior parte das vezes, como em quase tudo na vida, são escolhas que se fazem, são passos que não se dão, são formas cómodas de se estar, e as bocas fazem parte do esquema. Mas outras vezes não. Hoje conversávamos de como as coisas mudam quando estamos focados na eficácia. O nosso paradigma é outro, é o da rentabilidade do tempo, da sua poupança e, sem que nos apercebamos, as nossas conversas, os nossos gestos e atitudes passam a obedece

202006260953

Provavelmente será da idade, que sabiamente atribui peso ao que antes era leve, mas um dos grandes privilégios do meu dia de aniversário é fazer a revisitação da imensidão das pessoas que me habitam. Os parabéns que me enviam pelas diversas redes sociais têm gente dentro, têm olhos e conversas e cantorias e caminhadas e partilhas. O meu aniversário tem sido, graças a isso, um rememorial, um revisionamento daquele que tem sido o meu percurso de vida, uma vida que, como dizia tantas vezes o Padre Almiro, mais vale que seja gasta que enferrujada. Viver com quem vivo, viver como vivo, é uma Graça imensa e gratidão tem sido o sentimento que mais tenho por companhia neste dia. Isto é tanto mais curioso quando eu recordo com facilidade como eu detestava este dia. E, nisso como em tudo na minha vida, o mérito da Isabel e da filharada é decisivo. Empenha-se de uma forma ainda mais afincada para que eu me sinta verdadeiramente amado e para que sinta este dia como meu. E isso, confesso, para a

202006191915

No início da pandemia, sobretudo no início do confinamento, haviam algumas expectativas no ar. Sabia que iriam ser tempos estranhos, muito estranhos, ainda para mais quando eu estou mais habituado à correria que à quietude. A primeira semana lembrou-me o primeiro dia de um retiro que eu fiz: apesar de meio perdido porque não sabia o que me esperava e sobretudo o que esperavam de mim, aproveitei para colocar o sono em dia, as coisas em dia, o trabalho em dia, e até o jardim ficou mais em condições. Rapidamente, no entanto, percebi que iriam ser tempos exigentes. Adaptações em cima de adaptações, novas formas de fazer, novas formas de contactar com tanta gente, e, sobretudo, procurar novas soluções para conseguirmos ajudar quem precisava ainda mais da nossa ajuda. Como tudo isto cansa! Hoje de manhã estava a olhar para a minha agenda para, apesar dos imponderáveis, tentar preparar o tanto que aí vem. Como sempre acontece - com incidência especial na fase final de cada ano lectivo - estav

202006181013

Estou a poucos dias dos 54. Tem sido um longo e belo percurso. Aqui chegado, olho para trás e fico feliz, percebo que, sobretudo atendendo ao meu ponto de partida, é imenso o que alcancei. Muitíssimo mais do que alguma vez, em miúdo, sonhei ou desejei ou pensei ser possível alcançar. E isso é muito bom. E tranquilizador. Há pouco tempo falava acerca da gratidão. De como eu gosto de me sentir grato. De como eu preciso de agradecer. De como eu tenho motivos para agradecer. A tanta gente! A alguns quotidianamente, de forma evidente e veemente, várias vezes ao longo de cada dia, não desperdiçando oportunidades para o fazer. A outros de forma menos regular mas não menos sentida ou importante. Tenho a imensa graça de conviver com pessoas sábias que se preocupam, que cuidam, que me ensinam, ajudam, corrigem e me apontam metas e estabelecem desafios. São os meus motores fora de bordo sem os quais a minha vida seria uma imensa, aborrecida e improfícua calmaria. São pessoas que transvestem Deus,

202006091130

Trabalhar onde trabalho e com quem trabalho assenta-me os pés no chão. Todos os dias lido com gente boa e menos boa que habita as margens da sociedade: rica e pobre, brancos e ciganos, negros e mestiços. Já fiz voluntariado em Quelimane e por este país dentro, sempre junto de miúdos e menos miúdos, para quem "família", "carinho" e "futuro" são meras palavras com conteúdo pouco menos que duvidoso... e sofredor. Já fiz catequese numa Instituição em que, quando disse que "Deus é Pai" obtive como resposta "se for como o meu, dispenso bem". Sou um privilegiado, portanto, por ter a oportunidade de viver os meus dias com pessoas assim, que me trazem a realidade e ma metem pelos olhos dentro sem me dar sequer hipótese de olhar para o outro lado. Há já imenso tempo que me desenganei, há já muito tempo que percebi que as dores são partilhadas pelos miúdos e pelas pessoas que habitam ambas as margens e que se umas têm vícios caros para se esquecer

202006081008

Sempre que, num programa de televisão, oiço a pergunta se alguém deve um pedido de desculpas ao entrevistador, raramente oiço a resposta. Porque penso na quantidade de pessoas a quem devo um pedido de desculpas. Eu não gosto da palavra culpa e muito menos do que ela significa. Apesar da culpa que por vezes sinto. Ou se calhar por causa disso mesmo. Fiz e disse coisas profundamente infelizes, normalmente a pessoas que me eram e continuam a ser importantes. Quando olho para trás, não são poucos os momentos em que não me reconheço nas palavras, nos atos ou nos gestos, e isso causa-me vergonha. Houve um tempo, até, em que me era dificilmente olhar ao espelho por não me reconhecer na pessoas que via do outro lado. O sentimento de culpa é, por isso, em mim, algo com o que tenho que conviver no meu quotidiano. Por isso, quando oiço aquela pergunta, penso numa série de pessoas com quem gostaria de voltar a conversar, olhos nos olhos, para tentar resolver algumas coisas. Não consigo alterar o p

202006041653

Ainda andam cá por dentro os oito minutos e quarenta e seis segundos. Os últimos do George Floyd. Hoje na rádio perguntava-se porquê esses e não outros, os milhares de outros que morrem de maneira igualmente infame. Para mim a questão é simples: eu vi estes. Sim. Não será politicamente correto afirmar, mas é isso que acontece comigo. Já referi aqui várias vezes a mobilização que me encheu de orgulho na altura em que todos nós nos levantamos por Timor. Sabíamos há muito o que lá acontecia, sabíamos das mortes e do desespero e do desrespeito pela vida. Mas nós nos comovemos quando ao som das balas se juntou o som da oração do terço em bom e percetível português. E fomos a correr ver as imagens e acordamos. foi preciso ver e ouvir para que o que se passava do outro lado do mundo tivesse a ver connosco. Não andamos muito longe disto, neste caso. Vemos, comovemos, achamos inconcebível, como se lidássemos com o desconhecido. Daqui a alguns dias avançaremos para outra. Por vezes concordo com

202006041047

Ontem à noite, depois de mais uma derrota do meu FCP, coloquei uma brincadeira no Facebook. E obtive logo uma resposta de um bom amigo, a levar demasiado a sério a minha brincadeira. Respondi-lhe que era apenas uma brincadeira e que não levo o futebol demasiado a sério. Hoje vinha a conduzir e a pensar nisso. Em como, para mim, há coisas que não são mesmo para levar a sério. Os meus filhos tiveram todos atividades extra escola. Ligados ao desporto ou à música. Eu sempre as vi como excelentes oportunidades para aprenderem a desenrascarem-se sozinhos. As matérias do ensino eram para serem levadas a sério e eu e a Isabel encarregavamo-nos disso; as matérias extra-curriculares dependiam deles. Eles é que falavam com os professores e treinadores, eles é que tinham que conjugar horários, fazer sacos, planear treinos e estudos. Eu limitava-me a levá-los, esperá-los, apreciá-los e trazê-los. Jamais falei com um treinador ou professor de música - a não ser quando eles me solicitavam. Estas eram

202006021643

Liguei ao meu pai. Não é muito hábito em mim, ligar aos meus pais. Vivemos a curta distância mas passam-se meses sem nos visitarmos mutuamente. Agora, a propósito do covid, falamos mais, contactamos mais. E isso é bom. Ha uma ressintonização, uma reidentificação, um reconhecimento mútuo que a vida agora se vai encarregando de pôr no devido lugar. E isso deixa-me mais tranquilo, mais sereno, mais resolvido em todas as minhas diatribes interiores que por vezes dão horas às minhas noites. Há coisas que não me definem no quotidiano mas acabam por me definir na vida. Essa convulsão interior não me impede - a maior parte das vezes - de ser feliz nem de fazer as coisas, mas a serenidade muda a forma como as faço e sinto. É como a harmonia de uma paisagem: quando não existe eu até posso gostar do que vejo, mas quando não há caos, quando tudo se conjuga nas cores e nos espaços, desperta em mim um sentimento de gratidão pela beleza, com aquela saborosa sensação que tudo está onde devia estar. Fo

202005311530

Acabei de ler, referindo-se a alguém, que era um bom cristão. Eu não sei o que é ser um bom cristão. Ou melhor, eu sei o que é querer ser bom cristão, agora, ser bom cristão... Pegando no exemplo de alguém que me interroga muitas vezes, judas, eu tenho uma série de questões que ainda não se silenciaram porque ainda não se viram resolvidas. Eu acho que judas era efetivamente um homem de bem. Seguia Jesus, admirava Jesus, e provavelmente quando O entregou julgou estar a fazer o melhor. Ao ponto de se ter suicidado por não conseguir lidar com a vergonha que os seus atos originaram. Era uma pessoa má porque tomou uma decisão má? Não sei! Não sei mesmo. Assim como não sei o que levou os dois ladrões a serem crucificados com Jesus. Sei que para Ele isso não foi importante, apenas a vontade de um deles em acreditar e, esgotado o tempo de o poder fazer cá por baixo, de O seguir no que se seguiria. Para Jesus apenas isso contou. Na verdade, isto complica bastante o esquema. É-nos instintivament

202005210847

Lentamente, os dias vão voltando a ser dias. Na normalidade possível, na nova normalidade, como agora se diz, o ritmo vai regressando às manhãs, tomando conta do acordar. Hoje a VCI tinha já o movimento parecido ao do tempo de férias escolares: em fila mas sem paragens. Há mais gente nas ruas, mais gente nos transportes e, não fora o uso generalizado de máscaras, dir-se-ia que estávamos num qualquer dia de julho ou agosto. Não estamos. É maio, mesmo. Mas creio que, ao fim de quase três meses de vida esquisita, ansiamos todos pela normalidade.  Ainda ontem, quando, pela primeira vez nos últimos três meses, passeávamos no Parque da Cidade, víamos alguns dos nossos alunos a fazer parte da imensa multidão que mandava o confinamento às malvas e se agrupava para conviver. E a Isabel dizia que haverá muita gente que preferirá viver neste regime, onde há mais tempo e menor tensão. Há uma notória dicotomia em todos nós. Por um lado, parecemos drogados viciados, adictos em trabalho, em rotinas,

202005191015

Recordo-me que já vi este filme. Há uns anos, numa das conversas com o meu sogro, ele punha-me perante a sua perspetiva do tempo: "já viste que se eu viver até aos 85 viverei apenas mais 15 anos?" Até porque ele veio a falecer repentinamente pouco tempo depois, nunca me esqueci dessa conversa. Desta vez foi a minha sogra: "já viste como há tanta gente que esteve no vosso casamento que já não está cá?". Começamos a contar, por alto, e 3 mãos não chegavam. Entre eles, alguns amigos, mais novos que eu ou da minha idade. A finitude e a morte têm vindo a fazer parte da minha vida. Durante anos fugi dela mas, inevitavelmente, as chapadas na boca forçaram-me a enfrentá-la. Nalguns casos com imensa surpresa, dor e consternação, noutros mais naturalmente, assumindo e aceitando a morte como algo fundamental da vida. Recentemente, um amigo disse-me que estava a ser tratado no IPO. Cancro. Chapada na boca, novamente. Fico sempre abananado quando isto acontece. A vida adquire um

202005150924

Começamos o dia como gostamos: pequeno almoço seguido de uma boa caminhada, desta vez por terras de são pedro da cova. Enquanto caminhamos fazemos o que nos é fundamental: falamos de tudo o que nos vem à cabeça, sem filtros, sem escolha de assuntos ou de palavras. Falamos de coisas importantes e de coisas nenhumas, que é a massa de que é feita a nossa vida. Desta forma, naturalmente, sem disso estarmos plena e permanentemente conscientes, juntamos a massa, misturamos a massa até que ela seja uma só para que possa ir levedando durante o dia. Ao longo deste confinamento estive uma semana sem caminhar. O joelho inchou e fui despachado a gelo, anti-inflamatório e repouso. Foi a única semana em que discutimos, não faço ideia a que propósito, mas sei bem porquê: estávamos ambos em casa mas, porque não caminhávamos, porque não íamos de carro para o colégio, não estávamos juntos. Ao longo dessa semana estivemos ambos com as orelhas mergulhadas nos nossos computadores, cheios de trabalho à dist

202005132346

Tenho lido poesia. A que consigo. Como consigo, que é mal. Roubando o que à poesia não se pode roubar: o tempo. Na verdade, não sou ainda um leitor de poesia, mas um consumidor de poesia. Ainda pego num poema sem nele me deter o suficiente para que ele ecoe em mim. Como a música. Acumulo, não oiço. Guardo para um dia, sabendo que esse dia dificilmente chegará. Só se eu mudar muito. Só se eu for já outro. Só se eu der já tempo ao tempo e parte desse tempo à poesia. E à música. Será outro tempo. Será outro eu. Mas sendo o tempo outro tempo e sendo eu outro eu, eu continuarei sem saber ler poesia.

202005121039

Se me dissessem, há trinta anos, que ao fim de trinta anos estava como estou, eu não acreditaria. Trinta anos de casado vai muito para além daquilo que eu imaginaria possível em mim. Não porque não os quisesse, não porque não os sonhasse, mas porque os temia tanto que me pareciam impossíveis! Não me recordo de muitas coisas do dia do nosso casamento - o fotógrafo foi assaltado nessa noite e nem fotos temos! - e a sensação que tenho sempre que penso nisso é a de que vivia um sonho. Recordo sim que, no final do dia anterior, ao ir daquela que seria a nossa casa para a minha casa de solteiro, ia em pânico: casar era tão para além daquilo que eu merecia na minha vida que eu tinha a certeza que iria ser atropelado porque uma coisa boa dessas não me poderia acontecer. Talvez por causa disso andei nas nuvens no dia do casamento e tudo o que recordo seja muita cantoria, muita alegria, muita dança e festança como convém à dona constança. E a verdade é que não andava muito longe do que temia. A

202005011838

Estava agora mesmo a atualizar os meus contactos. Dos alunos com quem trabalho, principalmente. Dos do 12º ano, em particular. À medida que ia passando por cada um deles ia revisitando os seus rostos e, sobretudo, os nossos momentos. Este 12º foi - ainda é, mas para mim, que não dou aulas, já foi - especial. A quantidade deles que estava envolvido nos Projetos, no ComTigo, nas orações formais e informais, nas conversas formais e informais, torna esta covid particularmente difícil. E injusta. Normalmente, por esta altura, estaríamos a pensar em mais um encontro, em mais um H'Ora Bem, a preparar a sua eucaristia de finalistas, tantas vezes falada ao longo do caminho para e de Taizé, e que agora vemos gorada. Tenho pena. Muita pena. Uma pena que, se medida, apenas perderia para a saudade.

202004291920

Não sei se sei viver senão sofregamente. Anseio a serenidade, no ser, no pensar, no fazer. Desejo dar tempo à sedimentação da leitura. Uma frase hoje, uma citação amanhã. Anseio repousar o olhar sobre uma imagem, sobre uma paisagem, sobre uma bela foto. Anseio escutar cada harmonia, cada nota, cada palavra que dança por entre as notas de uma canção. Anseio a demora, o permanecer, o bastar. Anseio tudo isso porque não consigo nada disso. A ânsia é uma ladra ciumenta. Leio a correr, vejo a correr, oiço sofregamente, sorvendo as palavras e as frases sem lhes chegar ao âmago, à essência, como se de uma laranja aproveitasse apenas a casca, desperdiçando o seu sumo por entre os dedos. Em mim, todo o pensamento é demorado, toda a ação é impulsiva. E nesta contradição interior estou sempre à espera que a idade acumulada me permita colher o que nunca semeei senão à superfície: a serenidade.

202004291011

Este é um tempo de humildade. Forçada, mas humildade. Normalmente em grosso modo, sou em quem determina o que faço. Não nas pequenas coisas e nos pequenos momentos, mas o rumo que a minha vida leva nesta altura é o escolhido por mim e pelos que amo e me amam. É uma viagem, por isso, a várias mãos, a várias cabeças, a vários corações, mas é mais ou menos definido por nós. Quando isso acontece, existe uma certa sobranceria, porventura inconsciente mas subjacente, onde até as contrariedades são vistas como meros acidentes de percurso nesse rumo que se mantém. Humildade? Nos primeiros tempos da pandemia dava voltas à cabeça para tentar encontrar a melhor maneira de apoiar aqueles miúdos e famílias que nos estão confiados no RAIZ. E o sentimento de impotência era quase avassalador. Por muito que tentasse, não conseguia pensar em algo de significativo, de verdadeiramente revolucionário, que de alguma forma trouxesse algum alívio àquela gente. Reunimo-nos e decidimos começar pelo que podíamos

202004230814

Adoro escrever. Faz parte daquelas poucas coisas que me são interiores e anteriores e independentes de mim, como se eu fosse apenas o senhorio de entidades que me habitam e que têm vida própria, para a qual a minha vontade conta pouco. Ou quase nada. Escrever é uma paixão e as minhas paixões são muito femininas, muito senhoras do seu nariz, muito autónomas, fazem-me pensar que  quem controla sou eu quando sabemos ambos que não é bem isso que se passa. E, como qualquer paixão, é autosuficiente, autoalimenta-se, autoelogia-se, autosatisfaz-se, autobasta-se, e ainda que se envaideça com eventuais comentários alheios, na verdade não precisa deles para nada. Por isso continuo a escrever, por isso continuo a dizer e a fazer asneiras, por isso continuo a parecer infantil e inconsciente e incongruente a quem paira fora da paixão, porque não a entende. E por isso é que preciso do seu velho companheiro de jornada, mais maduro, mais evoluído, menos primário, porventura até mais racional: o amor.

202004121222

Domingo de Páscoa! Já cheira ao cabrito da avó, a mesa já está posta, Cristo já ressuscitou. Domingo de Páscoa! Não parece nada. Nem eu nem os meus filhos estamos no compasso nesta altura, não se ouvem as campaínhas na rua nem a azáfama habitual neste domingo tão especial. Assistimos à eucaristia na internet, ainda de pijama, e pouco depois o nosso pároco passou aqui na rua, de carro, altifalantes ligados, a dar a novidade sempre nova: Aleluia. A Ana está em Portimão, o Ica em Bragança, a Rita na casa dela e há coisas que a internet nunca estará em condições de substituir. Domingo de Páscoa. Aleluia.

202004091001

Caminhávamos ontem, depois do jantar, nas ruas desertas, quando, de uma churrasqueira perto de nós, me veio ao nariz um dos cheiros que mais me despertam os sentidos. Falámos disso, como falamos sempre de coisas nenhumas, naquele que é, para mim, o mais verdadeiro comprovativo da verdadeira intimidade. Como tínhamos acabado de jantar, a Isabel não percebeu como aquele aroma me despertava os sentidos. Na restante parte do caminho, matutei. Na realidade, não era comer o churrasco que me punha a sonhar, era a imagem do churrasco, era o imaginar a carne suculenta no prato, as batatas estaladiças, o arroz perfeito na soltura e no sabor, era sobretudo a algazarra à volta da mesa, para a qual o churrasco é mero pretexto lá em casa. É frequente ser enganado pelos sentidos. De facto, é provável que a carne afinal viesse algo queimada, as batatas embebidas em azeite e já amolecidas pelo calor, o arroz empapado, e, sem dúvida, não teríamos a algazarra do costume, agora que metade dos filhos andam

202004062250

Estranha semana esta, meu Deus! Não posso estar como quero. Não posso estar com quem quero! Não me posso aproximar, tocar, abraçar, aqueles que me são próximos a que agora estão remetidos à distância profilática de um contágio!   Estranha semana esta, meu Deus! Penso na Tua Mãe, Senhor, Nos Teus amigos Nos Teus companheiros de jornada Na vontade que eles tinham De correr até Ti De Te abraçar De Te aliviar a dor Que é sempre exponenciada pela distância.   Estranha semana esta, meu Deus! Em que apenas a intimidade da partilha das memórias do caminho percorrido em mútua companhia, me permite estar com quem me habita e não está perto mas se faz perto.   Estranha semana esta, meu Deus! Escolho confinar-me em Ti e ofereço-Te a minha companhia. Ajuda-me, Senhor! a caminhar contigo, a caminhar com os que me habitam, a vivermos juntos esta semana, contigo, Senhor e a chegar, contigo, e em Ti, á alegria pascal

202004031621

Não estou muito habituado ao não fazer. Normalmente leio bastante, vejo bastante, escuto bastante, e por vezes dou até a sensação que apenas leio, vejo e escuto. No entanto, naquilo que eu entendo como sendo importante, há um formigueiro que não me deixa ficar parado. Esse formigueiro já me meteu em trabalhos inúmeras vezes na minha vida mas foi justamente esse formigueiro que me deu também algumas das maiores alegrias. Digo muitas vezes que, naquilo que é verdadeiramente importante, fecho os olhos e salto, sem questionar em demasia as consequências. Quando corre mal, tenho tido a bênção de ter os que me amam por perto e me recuperam da queda; quando corre bem, tenho tido a bênção de ter os que amo por perto para partilhar a felicidade e a alegria. Hoje de manhã acordei com um sentimento de impotência que não me é familiar. Leio, vejo e escuto imensas coisas e o que eu posso fazer, o que eu consigo fazer, é imensamente ineficaz, imensamente pouco, imensamente vão, e isso provoca-me um

202004021125

Adoro a presença dos meus. Dos filhos, dos amigos, dos companheiros de jornada, da família, de todos aqueles que me ajudam todos os dias nesta travessia que é a vida. Mas gosto muito, preciso muito, da distância. De estar sozinho, de caminhar sozinho, de pensar sozinho, da reserva, de sentir saudade. A saudade é uma forma de amor, e sentir saudade é uma forma de sofrer por amor e, incurável romântico que sou, sofrer por amor não é uma má forma de sofrimento. Na verdade, apenas sinto saudade de quem me toca a alma, e esse é um poder que eu, por amor, concedo a alguns, e que permanece, imune ao tempo e à distância, Por isso eu gosto da saudade. Não raras vezes sorrio estúpida e aparentemente sozinho quando na verdade as memórias me enchem a alma de conversas, de caminhadas, de boas recordações. Claro que a saudade dói, e quando a distância nos é imposta e não voluntária, dói como o caraças. Claro que, se pudesse, meter-me-ia já no carro e iria ao encontro da minha gente, nem que fosse pa

202003311040

Uma das boas novidades deste tempo de reclusão é o que posso fazer com o tempo. Tento dedicar os primeiros momentos da manhã à informação, depois algumas horas ao trabalho, que, inevitavelmente, não me ocupa todo o dia. Então leio, vejo filmes, e, retomando um velho hábito que tinha desde miúdo mas que entretanto larguei, vou apontando aquelas  frases e pensamentos - dessas leituras e desses filmes - que me inquietam e escrevo a partir delas. Nos momentos em que o faço o tempo comprime-se, como se vivesse dentro de um parêntesis: por um lado retorno à infância e adolescência; por outro lado é como se antecipasse a reforma. Há quem precise de jardinar, há quem necessite de passear, há quem sinta o nervoso miudinho de não ver o mar. Eu preciso  de pouco: que os meus estejam bem, de uma boa net que me permita ler e ver, de um papel e caneta que me permita escrever, de fazer as minhas caminhadas em regime de namoro ou em regime de podcast solitário. Tendo isso, podendo ter e fazer isso, di

202003301637

Estivemos ontem, mais uma vez, a assistir à eucaristia da minha paróquia pela internet. E, mais uma vez, assistir foi o termo correcto. No final da eucaristia fomos conversando acerca dela. A minha sogra, que assistiu connosco porque ligo o computador à televisão e ela pode ver e ouvir melhor, é pró nesta coisa de telemissas e levanta-se e senta-se e responde exactamente como se estivesse lá presente. Dissemos até na brincadeira - que ela não gosta, porque "Graças a Deus muitas; graças com Deus poucas" - que se houvesse maneira de distribuir a comunhão pela televisão ela colocaria a língua de fora para comungar. Nós temos outro tipo de atitude: sentados no sofá, meios a assistir, meios a participar, particularmente atentos apenas à homilia do nosso pároco, que nos ensina sempre imenso. Enquanto a missa decorria eu pensei imensas vezes em como a "Querida Amazónia", a Exortação Apostólica do Papa Francisco, ficou tão aquém do que se pretendia. Agora que experimentamo

202003281451

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Nunca conheci um Papa que vivesse tão dentro do nosso tempo como o Papa Francisco. Ao longo dos anos os Papas fizeram milhares de orações, publicaram milhares de documentos, fizeram milhares de homilias... às quais ninguém ligou patavina. Nem mesmo nós, católicos, que andávamos legitimamente entretidos nas nossas vidas e remetíamos essa parte para o "quando tiver tempo". Desde o século passado que todos eles tiveram a revolução da comunicação social à sua mercê mas preferiram sempre demonizá-la, ou ostracizá-la, ou remetê-la para as coisas supérfluas da sociedade. Todos os Papas do "meu tempo", isto é, do Papa Paulo VI ao actual Papa Francisco - com a óbvia excepção do Papa João Paulo I - foram visionários e operaram verdadeiras revoluções para que eu e os meus filhos possamos viver numa Igreja que, sem retirar a Trindade do centro, recolocou a Humanidade no lugar que Deus tinha escolhido para cada um de nós: perto de Si, ao alcance da Sua intimidade. No entanto,

202003271010

Hoje vi na televisão um homem curdo a dizer que rezava para que todos ficassem bem. E eu? Como rezo tudo isto? Como tenho rezado tudo isto? Tenho rezado? Quando rezo faço-o mais no sentido dos homens, isto é, pedindo a Deus que ajude os médicos e os enfermeiros e todos os outros a aplicar todos os seus conhecimentos, toda a sua humanidade, no tratamento das pessoas. Peço a Deus que ajude todos os infectados a confiar, a serenar, a ver que há Vida para além desta vida. Peço a Deus para que ajude os seus familiares para estarem presentes na confiança do infinito de amor. Mas toda esta medida do que peço é da ordem da humanidade: acreditar, aplicar, esperar, confiar... a um Deus que move montanhas não consegui ainda pedir para acabar com este vírus. Porque será? Será porque acredito que Deus não quer interferir na nossa liberdade? Será porque acredito que as coisas do mundo são separadas das coisas de Deus? Será porque não acredito que, afinal, Deus move montanhas? Será que as circunstânc

202003261104

Organizo-me de maneira muito diferente da habitual. Não é já a obrigatoriedade que dita as suas regras, mas a vontade. O "ter que fazer" dá o seu lugar ao "dever fazer" e até ao "querer fazer", o que seria impensável há apenas 15 dias. E isto, para mim, que sou um barco com motor fora de bordo, exige um outro tipo de regras pessoais, de exigência interior, inusitada e porventura inaudita. Em circunstâncias normais prefiro ser arrastado a arrastar. Mesmo quando tomo a dianteira faço-o sob um esquema mental que começou na negação e terminou no "tem que ser". Mas essa dianteira responde sempre a estímulos exteriores, sobretudo quando esses estímulos adquirem a forma de confiança em mim e encontram eco no meu omnipresente medo de desiludir. Nada me desafia e desinstala mais que essa expectativa! Agora é diferente! É como quando fico em casa com gripe. Nas primeiras horas, a felicidade da justificação da doença para pôr o sono em dia supera largament

202003251833

Uma das manifestações de solidariedade nacional mais marcantes para mim foi por altura da questão de Timor Leste. Num determinado dia, creio que ao meio dia, combinou-se um minuto de silêncio nacional. Recordo-me que nessa altura eu ia na VCI e parou tudo, absolutamente tudo. Desligamos os carros, alguns de nós saímos deles, os camiões pararam, alguns deles buzinaram durante todo aquele minuto, que me pareceu, na altura, longuíssimo e extremamente emocionante. Hoje, às 11:00, fomos para a cozinha da Vó. E rezamos o Pai-Nosso. Na Renascença, rezava também o Papa Francisco e, connosco, acredito que alguns milhares de pessoas. Durante esta quarentena o extremo tem encontrado o seu lugar. As mortes são tantas e tão quotidianas que quase me anestesiam, pelo menos enquanto os meus não forem atingidos. Todos os noticiários, de todas as horas, de todos os canais de informação, tratam o COVID-19 até à exaustão. É tudo muito esquisito, inacreditável, de tão mau. às vezes penso que estamos aind

202003241832

A vida já me ensinou que uma das sensações mais desagradáveis que tenho é quando me vejo na compulsão que defender alguém de quem gosto muito enquanto detesto algo que tenha feito. Isso acontece-me apenas com aquilo ou alguém que me é mesmo muito importante, que amo apesar de tudo, que apesar da imensidão de disparates que comete é para mim uma centelha de Deus. Infelizmente acontece-me muitas vezes relativamente à Igreja. Numa altura como esta é-me completamente incompreensível que se sobrevoe dioceses com o Santíssimo numa mão e a Nossa Senhora de Fátima noutra para se prevenir a doença. Não consigo entender as manifestações de fé que me parecem mais próximas da bruxaria que da fé. Até não consigo entender a preocupação do Papa Francisco com a absolvição global dos cristãos numa altura em que me faria amis sentido falar de esperança que de pecado. Amar alguém, amar a Igreja, também implica algo deste tipo: amar aquela parte que não compreendo e que preferia que não existisse. Aliás,