Recordo o verão da minha infância com saudade. Não apenas as intermináveis brincadeiras de rua, que terminavam já a noite ia alta, ou as idas à praia com o tijolo a tocar a altos berros no velhinho 88 que ia de São Roque ao Castelo do Queijo. Nem sequer os naturais e desejáveis amores de verão, que tinham tanto de intensos como de fugazes, inevitavelmente levados pelas águas das primeiras chuvas. Recordo particularmente os imensos momentos que tinha apenas comigo, e os meus livros e os dias inteiros para ler. Recordo as descobertas que fiz através da literatura, as coleções que comprava e vendia no velho alfarrabista do Bonjardim, que me devia achar alguma piada porque me dava mais livros que aqueles que eu lhe entregava. E depois, começada a escola, recordo o caminho interminável, sempre percorrido a pé porque não havia autocarro, pelo menos duas vezes por dia, outros bem mais, ou porque vinha almoçar a casa, ou porque ia aos treinos de uma das muitas atividades desportivas que fui tendo. Naqueles três quilómetros aprendi a viajar cá por dentro, a rever histórias, a preparar futuros, a fazer planos mil vezes desfeitos e refeitos porque cada caminhada era suficientemente longa para imaginar mil vidas. E como eu as imaginava!
Desse tempo ficaram estas minhas duas vertentes da minha personalidade, tão antagónicas quanto imprescindíveis para o meu equilíbrio: a alegria de estar com os outros quando estou com os outros; a necessidade de estar comigo quando estou comigo. Por vezes penso que a segunda, a da reclusão do mundo, é prevalente, é mais importante, é mais eu. Que eu estou melhor quando estou apenas comigo próprio, com as minhas memórias, com os meus sonhos e fantasmas. No entanto, fazem-me sentir muitas vezes que sou melhor com os outros, quando não me recluo mas deixo-me ser nos outros e deixo que os outros sejam em mim. É aí que se revela sempre o melhor de mim, e chego à conclusão que é aí que me aligeiro e me liberto de mim próprio.
As minhas últimas insónias têm sido preenchidas por Santiago. Faço e desfaço mochilas, aponto mentalmente o que não pode faltar, engendro esquemas para que caiba tudo e pese pouco. Santiago ocupa já uma boa parte do meu consciente e inconsciente. Num isto de memória e projeção, vejo-me a caminhar, invariavelmente no fim da fila, a conversar brevemente com quem me acompanha na ocasião e a deixar a mente esvoaçar por entre passadas mais ou menos ritmadas e paisagens mais ou menos deslumbrantes. Talvez por isso goste tanto da ida a Santiago: permite-me um misto de isolamento e partilha, devidamente acompanhado pela oração interior e exterior; permite-me ter gente boa à minha volta sem no entanto comprometer a minha necessidade de caminhar comigo mesmo; permite-me sair de mim a qualquer momento quando sou necessário e acolher quem se apercebe que também eu preciso de ajuda.
Santiago aproxima-se.
Deus seja louvado!

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