serenidade, alegria, verdade e liberdade Também eu não costumo escapar aos balanços de fim de ano. Nem o desejo, em boa verdade. Se nos tempos normais gosto de me sentar e dividir o tempo, e analisar o que eu e o tempo nos temos provocado mutuamente, no final de cada ano - e quem está no ensino tem mais que uma sensação de final de ano... e oportunidade de recomeçar - essa tarefa é absolutamente dominante. Passo-me em revista, revisito caminhadas e conversas e partilhas e dores e alegrias, voltando a sentir muitas delas, alternando sorrisos e suspiros, peso gestos e atitudes, volto a penitenciar-me por alguns, a orgulhar-me por outros, e chego à invariável conclusão que estou mais velho... e que isso não se nota nada. Continuo a sonhar, por vezes contra todas as probabilidades, continuo com a mesma dificuldade em me situar dentro dos parâmetros exigidos para quem tem a minha idade, continuo a não reconhecer quem está do outro lado do espelho, apesar das dores nas articulações, das
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A mostrar mensagens de dezembro, 2015
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À medida que vou envelhecendo, parece que um certo Natal vai envelhecendo em mim. Lembro-me com alguma nostalgia de uma véspera de Natal em que era quase hora da ceia e eu ainda estava na baixa do Porto, mergulhado num trânsito caótico, feliz da vida enquanto todos à minha volta estavam com ar desesperado. Na altura, Natal era também muito isso para mim: confusão, compras, movimento, música no ar e luzes a piscar. E depois, já em casa, era aproveitar a magia a que apenas os filhos emprestam ao Natal, com a sua felicidade extrema, com os seus gritos de alegria, com a sua inocência que, uma vez partida, já não regressa da mesma maneira. A nossa felicidade era a antecipação da sua felicidade, a nossa alegria era o gozo prematuro da sua alegria, a nossa maior prenda de Natal eram as suas prendas de Natal. A determinada altura a vida impôs um outro tipo de condições. Os presentes já não eram bem os desejados mas os possíveis, e com isso o Natal começou a ser por mim vivido com um certo
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Nunca mo tinham perguntado assim, de forma tão clara e direta, tão olhos nos olhos, tão alma na alma, suspendendo as palavras até que ecoasse a minha resposta: "gostas do que vês quando te olhas ao espelho?". A pergunta, como qualquer boa pergunta, não era bem uma pergunta mas uma necessidade de constatação. Antecipávamos ambos, pelo que nos conhecemos, a resposta, e seria uma enorme surpresa se tivesse sido outra. Foi justamente porque sabíamos a resposta que a pergunta tinha sido feita. E foi devidamente dada. Nunca me considerei definitivo. Em nada. Em ninguém. Em nada porque desde muito novo que me habituei a reconstruir a minha paisagem quotidiana. De cada vez que mudava de casa - e foram muitas - mudavam também os cheiros e os toques e os sons e as vistas e agarrava-me ao que permanecia, apesar de tudo, eu e (fugazmente) os meus. Em ninguém porque com as casas vinham os vizinhos e os amigos e os colegas da escola e os professores e os amigos, e tudo isto era def
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Para muitas pessoas que me conhecem, tenho um terrível defeito: sou um péssimo pagador de promessas. E, mesmo para mim, é um bocadinho difícil entender porquê. Nesta altura, convém referir que não prometo apenas quando estou atrapalhado. Nem prometo apenas em voz alta. Nem prometo apenas aos outros. Ou até especialmente aos outros. Antes de mais, para que a promessa tenha alguma hipótese de concretização, começo por me prometer a mim mesmo. Algo assim do tipo "não voltarei a ligar" ou então "não imporei mais a minha presença" e por vezes até "vou fazer de conta que não existe". Tudo coisas bastante simples de prometer, que quase sempre dependem única e exclusivamente de mim, e que quase sempre beneficia outros para além de mim próprio. E, fundamentalmente, tudo promessas que quando prometidas fazem todo o sentido na minha cabeça. Repare-se que não prometo nada que à partida não posso cumprir, nem mundos e fundos, nem coisas que escapam ao meu alcance. N
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"É preciso construir boas memórias!" Recordei-o hoje à medida que caminhava quase no deserto, envolvido num amanhecer agreste, na margem de um mar ainda mais agreste, tendo apenas as memórias como companhia. Recordei-o a propósito da esplanada, hoje ainda mais despida, hoje sem nos ter como protagonistas principais, hoje sem as personagens secundárias que desfilavam à nossa frente sem verem ou serem vistas, hoje sem história, ou filme, ou enredo, tendo apenas as memórias por companhia. Recordei-o quando o mar me abordou, hoje mais que o costume, muito mais que o costume (estava revolto como nunca o tinha visto) e não tive quem me quisesse agarrar por causa de histórias de vertigens alheias, e tive apenas as memórias por companhia. Recordei-o ainda quando, totalmente imerso na paisagem que me rodeava e me invadia a alma, pensava numa partilha de Taizé e numa forma de descobrir Deus na natureza e aí O confirmar e aí ter a certeza da Sua presença e eu a pensar, na altura,
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"Se algum dia ouvir aquilo que o L ouviu, ninguém me volta a por a vista em cima." Disse-o a três pessoas. Apenas. As que interessava. Por motivos distintos. Completamente distintos. Porque são pessoas diferentes. Completamente diferentes. Porque, juntas, abarcam toda a vida. Todas as dimensões da vida. E assim já sabem o que não procurar. Onde não procurar. "O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio." Li agora mesmo. Do António Lobo Antunes, na Visão. É isto, é justamente isto, o que não quero. Ele consegue ver uma coragem que eu não consigo, que eu não quero, que eu me nego ver. Prefiro outra. Prefiro gastar a minha vida ou, nessa altura, o que restar dela, numa qualquer terra de África ou da Ásia ou da Europa, ou de qualquer parte do mundo a torná-la verdadeiramente significativa para alguém. Assim, mato dois coelhos de uma cajadada: deixo-me gastar de forma digna (porventura resgatando-me a mim próprio) e evito os olhares piedosos dos que am
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Falamos hoje a primeira vez. Ao telefone! Desde 26 de Outubro que não escutava nada vindo dele. Desde esse dia que apenas o vi dormir, quando o fui visitar, mas ele estava tão cansado que nem conseguia abrir os olhos e nem deu conta que eu estava lá. Hoje disse-me que lho tinham dito. Ainda bem! Prometi-lhe que esta semana visita-lo-ia, com tempo para sentar, olhá-lo, ser olhado, e conversarmos o que temos a conversar. Com Tempo! Que eu pensei nunca mais voltar a ter junto dele. Sou um homem de fé. Acredito em milagres. Não particularmente em luzinhas vindas do céu, particularmente dirigidas a alguém, mas acredito em milagres. Acredito que há pessoas boas e profissionais bons e sensíveis e inteligentes que estão atentos aos que deles necessitam e fazem tudo o que podem e sabem, não querendo saber nessas alturas das suas próprias circunstâncias. E acredito que Deus atua neles e por eles, por vezes até ao arrepio das suas próprias conveniências. E acredito que o Jorge é um milagre
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Acho sempre espantosa a volatilidade do meu olhar. Acredito algumas vezes que o que vejo é o que vejo e que as coisas são como as vejo. Que o azul é azul e o vermelho vermelho, que o belo que vejo apenas pode ser belo e toda a vida foi belo, que nada nem ninguém pode adulterar algo para mim tão evidente - naquele momento - como aquilo que vejo. E então ajo em conformidade, alicerçado na perceção evidente do meu mundo, que me é trazido pela clarividência do meu olhar. Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida. Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs
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Acredito que há amor que me ultrapassa. Acredito que todo o amor me ultrapassa. Ou então não é amor. Pode ser arrebatamento, ou paixão, ou obsessão desenfreada que nos tolhe os movimentos e o pensamento por alguns, breves, momentos - o que é um momento no espaço de uma vida? - e depois passa, eclipsa-se, acaba, como acaba o sol no final de cada dia, por muito quente que esse dia tenha sido. Mas não volta. Não permanece. Não fica, apesar de tudo, apesar de toda a racionalidade, apesar de todo o bom senso, ou mau senso, ou qualquer senso. O amor ultrapassa. Todo o senso. Mesmo o contrassenso. Aliás, estou convencido que todo o amor é contrassenso. Não faz sentido. Faz sentir, o que é absolutamente diferente. Para melhor! No amor não pesamos os prós e contras, como numa tabela de cálculo. Porque não há cálculo. Ou então, é um amor calculista. E já não é amor. Não sendo cálculo, terá que ser, assumidamente, risco. Não de engenheiro - não é cálculo - ou de arquiteto - nem sempre é bonito
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"Está uma manhã fria e feia", escrevi. "Como eu", pensei sem o escrever. Estava, de facto. estávamos, ambos, eu e a manhã, frios e feios, sem qualquer réstia de sol que aquecesse. E o fim de semana até foi bom, tive o Juramento de Hipócrates da minha filha - que estava felicíssima! - deu para descansar e recuperar forças, deu para escrever algumas coisas, preparar outras, mas... Há uma cena no "vamos dançar" em que o protagonista confessa a sua vergonha por sentir que lhe falta algo, apesar de ter tudo o que sempre sonhou. Como eu o percebo! Tenho dias em que o sol não me aquenta, em que me deixo ir abaixo, em que a acutilância desta sensação de perda me incomoda verdadeiramente. A ponto de moldar o meu dia. São dias em que me sinto uma sombra, em que pareço uma sombra, em que procuro a sombra, em que quero caminhar na sombra do corredor, e onde cada "biba" ou "bom dia" me soa a descabido. Em que o que mais me apetece - e já o fi
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"Eu quero viver, sabes? Finalmente viver. Ir a um teatro, a um cinema, a uma exposição de arte, passear a sábado de manhã, escolher não passear ao sábado de manhã e ficar em casa, simplesmente ficando em casa. sem nada para fazer, saboreando o sem nada para fazer. Quero apanhar um comboio ou um avião no final de sexta e ir para um outro lugar e conhecer e viajar, quero estar de volta no domingo, a tempo de descansar e me preparar para a semana que se segue. Quero deixar de ter compromissos de fim de semana e de ter que estar sempre ocupado para os outros e pelos outros. Quero a minha carta de alforria, o meu grito do ipiranga. Adio-me há mais de trinta anos,tenho dez ou quinze para viver com qualidade, para sentir a vida a acelerar o pulsar do sangue e não os quero desperdiçar." Escutei o que dissera, passei-o em revista, e suspirei fundo, concordando novamente. Em nada do que dissera escutara qualquer novidade. Mas vai ser uma surpresa do caraças. Para toda a gente.
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A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando acinzentado, mais nublado, mais turvado, e eu com ele. Eu gosto de olhar. A fundo. Consigo esquecer os nomes e os lugares onde os nomes se tornaram nomes e as pessoas se tornaram pessoas, mas dificilmente esqueço um olhar. Disseram-me, em Quelimane, numa outra vida - já tive tantas vidas! - que por vezes o meu olhar é demasiado. Intenso, provocador, invasivo, contundente, incómodo, revelador... é vir o diabo e escolher. Não tinha essa ideia. Para mim, olhar sempre fora olhar. Apenas isso. Só depois me apercebi que para mim, olhar é muito mais que apenas olhar. Que serve para ver. Que serve para conhecer. Que serve para valorizar. Ou não. Não estou, no entanto, habituado a ser olhado. Perscrutado. Analisado. Revelado. Amado, até. Pelo olhar de alguém que não o meu. Incrivelmente, há novidad
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Aperto o casaco de Taizé até cima e ainda assim o vento gelado entra-me pelo pescoço dentro. Meto as mãos nos bolsos, na vã tentativa de manter as mãos quentes - logo as mãos, que neste tempo estão sempre geladas! - e acelero o passo. Hoje não vi ainda ninguém. Não admira. Lá para abril ou maio é que isto começa a ficar pejado de gente a correr, a passear, a estenderem-se como bacalhaus a secar. Por agora o frio ou a expectativa de chuva afasta a maioria das pessoas. Ainda bem! Lá para abril ou maio, à medida que os outros vão chegando, eu vou saindo. Não que tenha a mania, mas porque é sossego, o que procuro, e sossego é pouco compatível com algum tipo de pessoas. Viro a esquina para subir as escadas e deparo-me como senhor de calções. Já vi alguém. Arrepio-me ao pensar como pode alguém andar de calções com aquele vento gelado e sigo caminho. Ao fundo vejo, finalmente, o senhor idoso com o cão idoso e, como sempre quando me cruzo com eles, não consigo concluir qual deles tem mais