Se me dissessem, há 23 anos atrás, que acordar estes anos todos ao lado da mesma pessoa seria motivo de felicidade, eu rir-me-ia. De nervoso. Que nada teria de miudinho, era graúdo, mesmo.

Eu morria de medo de me casar. Sabia, como sempre soube, que o casamento seria para toda a vida, sabendo, como sempre soube, que isso de toda a vida é história. Um casamento não dura toda a vida: dura, quando muito, um dia de cada vez, um momento de cada vez, um minuto de cada vez. Apenas assim, num jogo a quatro mãos - e tendo consciência que nem sempre estão todas as mãos em simultâneo - permanente e constante, é que é possível acordar feliz ao fim de todos estes anos.

Volta e meia ainda nos chamam "casal maravilha". Antes faziam-no mais, e mais às claras, mas eu devia deitar um daqueles meus olhares sempre que isso acontecia até que foi acontecendo cada vez menos. Eu detestava fazer parte do "casal maravilha". Até porque sabia que de maravilha não tinha nada. Amamo-nos muito, identificamo-nos muito um com o outro, renovamos os nossos votos muitas vezes, sem esperarmos datas especiais, olhos nos olhos, sempre que há uma aberta na enorme tempestade que por vezes é a nossa vida. Mas sabemos, contudo - tivemos que o aprender, como qualquer casal - que amar só, por vezes é pouco, que não chega, que há muitos factores, muitas interferências, muitas vontades, muitos desejos, que ora são calados, ora são satisfeitos, ora são adiados por falta de oportunidade. Sabemos, os dois, porque ambos somos assim, que todos os dias batalhamos por nós - e batalhar é, muitas vezes, o termo que exprime exactamente o que acontece - que todos os dias escolhemos não adiar, que todos os dias escolhemos recomeçar, e que temos dias em que um de nós tem que procurar, no outro, com algum afinco, o motivo para amar tanto assim. Ou então, naquela que considero uma das maiores sabedorias do meu casamento, temos dias em que um de nós encontra as forças que faltam ao outro para escolher pelos dois, amparar pelos dois, cuidar pelos dois, mimar pelos dois, amar pelos dois. Por causa das opções que fizemos e continuamos a fazer - quisemos ter os filhos cedo, quisemos mais um a meio do percurso, apenas conhecemos o profundo envolvimento pessoal em tudo o que fazemos - são muitas as vezes em que alternamos na manutenção e no amparo deste nós que a vida por vezes teima em por em causa. São muitas as vezes em que um carrega o outro por amor e, por amor, o outro confia ao ponto de se deixar carregar.

Por isso detesto o "casal maravilha". Porque sinto sempre que esse epíteto não nos pertence, que há outros casais, que conheço, que têm uma maior harmonia mas se calhar menos visibilidade. Detesto o "casal maravilha" porque o nosso casamento é feito, fundamentalmente, de vida, de muita vida, e a vida tem momentos altos e momentos baixos, tem alturas boas e outras más, tem vento em popa e tem a força dos remos. E que tivemos a sorte de, até hoje, aqui e agora, pelo menos um de nós ter sempre encontrado forças para se encarregar do leme.

Se um dia o meu casamento falhar - e esta consciência da possibilidade de falhar é fundamental para que nunca se dê nada por definitivamente adquirido - nunca será por falta de amor. Amamo-nos na nossa diferença, encontramo-nos nela, completamo-nos mutuamente nela. Por causa dela discutimos muito e conversamos mais ainda, afinamos e reafinamos estratégias, temos as mesmas conversas vezes sem conta, e voltamos a tê-las, ainda que saibamos perfeitamente o que cada um vai argumentar, nunca nos permitindo, no entanto, deixar de o fazer. Mas nunca, em momento algum, sentimos que nos amávamos menos que no dia em que, interiormente, tacitamente, sentimos que seríamos sempre um do outro. E nunca, em momento algum, sentimos que qualquer um de nós seria mais feliz sem o outro.

Há 23 anos assustava-me muito a possibilidade de acordar todos os dias ao lado da mesma pessoa. Hoje, passado todo esse tempo, redescubro todos os dias que é o melhor dos motivos para dar Graças a Deus por cada amanhecer.

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