20171230
Não há sentimento mais nobre que o da gratidão. Pura, genuína, imensa gratidão.
Olho para trás e vejo enormes convulsões. Em mim e no que me rodeia, geralmente provocadas por mim.
Foi um ano de batalhas duras e constantes, de procuras incessantes de outros tantos encontros e descobertas. Não foi um ano de rendição, mas de batalhas ganhas e perdidas. Ser-me-ia tão fácil quanto estúpido dizer que, se pudesse, faria tudo da mesma forma. Não faria. Tentaria encontrar mil formas diferentes de tentar conciliar o inconciliável. Formas que poupassem o sofrimento, formas que trouxessem risos em vez de lágrimas, formas cujas marcas não permanecessem no tempo.
Mas isto é a vida. E a morte. E este foi também um ano de morte. Ainda do Mero, cujas ondas de choque desabaram no início deste ano. Da minha avó, que no final de uma vida cheia de vicissitudes se entregou, finalmente, em paz. Foi um ano de perdas, algumas delas irreparáveis, de ausências, de partidas e chegadas. Foi um ano de aprendizagem, de enorme aprendizagem.
Foi um ano de pessoas, como tem sido a minha vida adulta: recheada de constatações. De pessoas. Das que retiram e acrescentam, das que desligam e reforçam, das que confirmam e desmentem. Das que conheço e das que desejaria, por vezes não conhecer tão bem. Das que me desiludem e das que me acrescentam sonho à vida.
Foi um ano de sonho. Sonhos de futuros, sonhos de passados, sonhos de olhos abertos e bem fechados, sonhos de ilusão e realidade, autênticos banhos de imersão que me permitiram escapar e regressar, poisar os pés no chão e deixar fluir, agarrar-me e perder-me, abandonar-me para me reencontrar.
E foi um ano de gratidão! De profunda gratidão! Se tudo o que vivi me permitiu chegar hoje, aqui, como estou hoje, aqui, só posso agradecer. A quem me trouxe até aqui.
Obrigado
20171227
Por vezes acordo. É como se andasse atordoado, distraído, tão distraído que deixasse de ver o essencial. E o essencial, na minha vida, nas minhas permanentes tentativas de viver bem, e em paz comigo próprio e com o imenso que me rodeia e me habita, o essencial é não magoar. E quando acordo, quando descubro que posso ter magoado, por descuido - só magoo por descuido, por falta de atenção e cuidado - cá por dentro cai o Carmo e a Trindade.
20171215
Vi a sua face contraída, tensa, e disse-lhe para sorrir, para se descontrair. Se isto não serve para nos divertirmos, não serve para nada. Estávamos todos a meio de um ensaio para esta noite. Sei bem a responsabilidade de tocar e cantar em cima de um palco. Sei bem como queremos todos que corra bem. Sei bem como no dia seguinte nos cruzaremos com o que estarão lá esta noite, na plateia, naquele lugar assustador para quem olha e, ofuscado pelas luzes, apenas consegue imaginar quem está do outro lado. Mas isto é puro gozo. É apenas um pretexto para estarmos juntos e nos divertirmos enquanto cantamos e tocamos meia dúzia de canções.
Eu lido razoavelmente bem com a pressão. Naquilo que é trabalho. No resto, sou péssimo. Não sei como o fazer. Por isso o truque é não lhe atribuir demasiada importância. É procurar o o gozo pelo gozo. É gostar muito mais do processo que do resultado final. É não permitir que a diversão se transforme em trabalho. E essa inversão é tão fácil de acontecer!
Provavelmente será da idade, mas vou descobrindo cada vez mais que damos excessiva importância a coisas que não são assim tão importantes. Que, para além da fundamental perspetiva pessoal - a procura e o alcance dos momentos de felicidade - importa transformarmos a vida dos doutros, sermos veículos de vida, proporcionarmos boas memórias, suscitarmos as questões para que eles queiram procurar e encontrar respostas. Tudo o mais é passageiro.
No concerto de logo importam os ensaios que fizemos, as asneiras e os risos, o cansaço de tocar e cantar a mesma música n vezes, o ser dirigido pelo meu filho, as bocas e as brincadeiras do outro filho, o empenho colocado pelo meu irmão, a redescoberta das vozes e partilhas das experiências. Será isso que iremos todos recordar, assim como é isso que ficou de mais gratificante do tempo da outra banda. Ainda hoje os meus filhos recordam os ensaios no sótão que os forçavam a adormecer ao som da percussão e das guitarras e não o concerto propriamente dito, do qual talvez guardem uma ténue memória.
Nós não somos máquinas. Quando servimos, quando trabalhamos, quando preparamos algo, devemos ser empenhados e comprometidos e prepararmo-nos para que as coisas corram bem. Sabendo que não somos máquinas. E que o fundamental nem sequer é o destino. Mas a viagem. Que, no caso do concerto, envolve vários dias de trabalho para menos de duas horas de concerto.
20171205
Sinto sempre enorme vontade de me enclausurar. Como se me pudesse manter assim, formatado, seguro, com os pés sempre bem assentes em terra bem firme. De olhos postos no chão, desinteresso-me pelo voar e pelas coisas do alto. Manter é a palavra chave. Sossego é o objetivo a alcançar. E sossego. Efetivamente. O corpo. A alma. O espírito. Seguro-me ao que é seguro. Enraizo-me no que é certo. Indubitavelmente certo. Inquestionavelmente certo.
A intimidade tem muitos nomes. E muitas formas. Variadas. E um tempo que é apenas seu. Que pára. Que é imune ao próprio tempo. E tem sempre, sempre, uma presença. Que poderá ou não estar presente. Mas que é sempre presente. E tempo e presença conluiem-se e tudo tornam diferente. Um momento é tudo quando há presença. Um ano é nada na ausência. Estamos juntos e sempre fomos juntos. Recebo uma foto, enviam-me um poema, leio um abraço distante que me é dirigido e é apenas meu. E o tempo pára. E somos juntos.
Sinto sempre enorme vontade de voar. Como se me pudesse manter assim, livre, meu, com a alma sempre a viajar. De asas bem abertas, de velas bem enfunadas ao vento, deixo-me contagiar pelo que me invade os sentidos. Saborear é a palavra chave. Liberdade, é o meu viver. Sentir, o objetivo a alcançar. Nada mais importa senão saborear o sentir. Sem amarras, sem âncoras, sem raízes.
20171204
No mundo imaginário e fantasioso onde algumas vezes ainda vivo tudo se resolve. Uma boa conversa, um sincero pedido de desculpas, um escancaramento da alma, constituem a mezinha que tudo soluciona e tudo resolve. Um sorriso, ainda que ténue, é garantia que a alegria vai ocupando o lugar da dor provocada e tudo, a partir daí, serão boas memórias. O problema é que o único lugar onde vivo sozinho é nesse mundo imaginário e fantasioso. Na vida real não existo apenas eu e as minhas adolescentes fantasias. E o que eu digo tem consequências. E o que eu faço tem consequências. No mundo mesmo. Que não deixam de existir nem passam com duas de letra. E às tantas esse mundo onde por vezes ainda habito torna-se efetivamente pernicioso. Na pele, nos ossos e na alma justamente daqueles que me são mais próximos. Da pele, dos ossos... da alma.
Esses, justamente esses (porque apenas esses me conhecem a esse ponto), antecipam por vezes a catástrofe apelando a que ponha ambos os pés na terra. Pedem-me que pare de sonhar, não entendem como sou capaz de viver assim, ora num ora noutro mundo, como se fosse habitado por duas distintas realidades. Tentam, em vão, meter algum juízo nesta cabecinha mais sonhadora que pensadora e, tragicamente, raramente saem vencedores. Fatidicamente, de uma forma ou de outra, acabam por ser contagiados por essa fantasia que me transborda por todos os pólos, amando e confiando que desta vez é que é.
Perante a recorrência, não adianta argumentar. E o pueril "não foi por mal" nem de fraco consolo serve mas de arma de arremesso de auto-punição. Talvez o silêncio. Apesar de potenciador de todos os mal-entedidos. Talvez o silêncio seja um bom refúgio. Talvez aí apenas eu habite. E não faça mal a ninguém.
20171125
Nunca consegui perceber a luta obstinada de muitas pessoas que eu conheço e admiro contra as redes sociais. Percebo que para algumas pessoas pode complicar a sua socialização mas creio - acredito, sem dados fidedignos, claro - que essas pessoas teriam sempre problemas de socialização porque sempre houve pessoas com problemas de socialização.
Entre outras coisas, não percebo porque a presença física é mais importante que a a presença distante, particularmente se existe intimidade na partilha mútua de vida e sentimentos. Porventura será até mais fácil essa partilha na distância dos olhares mas na proximidade das almas. Claro que se pode argumentar que essa intimidade é ficcional, mas se a proximidade física fosse garantia de autenticidade apenas agora, com o advento das redes sociais, teríamos problemas nessa área. E não me parece que seja essa a história da humanidade.
Vem tudo isto a propósito da morte do Pedro Rolo Duarte. Claro que não no conhecia o sentido físico do termo, nunca estivemos juntos. Mas quando ouvi uma entrevista do meu filho na Antena 1 e reconheci imediatamente a voz do PRD, ao orgulho natural de pai juntou-se o orgulho de um dos meus filhos ter sido entrevistado por um dos jornalistas que mais admirava e acompanhava desde sempre - e que o meu filho não fazia a mínima ideia de quem era!
Ontem senti o toque ao saber da morte do PRD. E hoje, ao ler os meus habituais jornais e blogues - um dos meus maiores prazeres nas manhãs de fim de semana - não consegui evitar uma sensação de perda. Não quero saber se não o conhecia, se não tínhamos laços familiares - esses sim, a maior parte das vezes artificiais para mim - nem se ele nem sabia da minha existência. Fazia parte das pessoas que eu admirava e lia e contribuía para a construção de mim enquanto pessoa - muito mais do que a maioria dos meus familiares.
Como sempre acontece com as grandes revoluções, estranhamos a mudança de paradigma. Neste campo, parece-me que os laços de sangue são hoje cada vez mais ténues, menos decisivos para a construção do que somos enquanto pessoas, e enquanto sociedade. A desagregação da família dá lugar a uma outra noção de pertença. Hoje podemos ter enriquecedoras trocas de ideias e partilhas mais pessoais com pessoas com quem nunca nos cruzamos fisicamente. Com quem apenas nos cruzamos espiritualmente, "almamente". Há quem tema isso. Eu acho fascinante.
20171122
Gostava mais de gente que de pessoas.
Entretinha-se a imaginar a vida daqueles que por ele se cruzavam na rua, a imaginá-los a chegar a casa, a pousar as compras em cima da mesa da cozinha, a esticar os pés no sofá, a deixar a mochila espalhada em pleno corredor. Entretinha-se a imaginar os seus diálogos, os seus silêncios, a mútua ignorância a que mutuamente se devotavam, a confusão à volta da mesa, a reverência atenta em torno das notícias e dos filmes e dos jogos e das novelas com que se imolavam todos os dias no altar da televisão. Entretinha-se a imaginar os sabores que habitariam, fugazmente, em cima das suas mesas, o sal em excesso, a abundância das especiarias, o insosso que vinha agarrado à idade, a carne excessivamente cozida, o peixe a saber a mar... ou a esgoto. Entretinha-se a imaginar o momento de deitar, o chamego dos corpos, o rendimento do cansaço, a indiferença do tempo, a solidão acompanhada que lia todos os dias, ao longe, em tantos dos seus olhares.
Sem dúvida, gostava mais de gente que de pessoas.
Detestava que se aproximassem, os odores, a inquisição no olhar, as tentativas constantes e insidiosas de conversão aos seus ideais, aos seus valores, à sua forma de vida, que apregoavam com a certeza apenas comparável à dúvida que em privado os atormentava. Ainda por cima insistiam, insistiam sempre. Na conversa de chaha, no olhar mortiço, no sorriso postiço, nas dádivas do que lhes sobrava, no consolo privado da alma que aquela insistência lhes trazia. Odiava-lhes a sobranceria do olhar, a piedade do olhar, o desprezo do olhar, a indiferença do olhar. Preferia-os ver longe, ao de longe, sem o confronto do olhar.
Definitivamente gostava muito de gente. Detestava pessoas.
20171120
Peço desculpa quase compulsivamente. Em princípio, a culpa é minha. Não importa se fiz ou não fiz, se disse ou não disse, se menti ou ocultei, se estive atento ou olhei para o lado. Se alguém está mal, a culpa, em princípio, é minha.
"Estou triste" e imediatamente há uma tempestade mental, uma busca nos arquivos, nos ficheiros, nas imagens e palavras. Revejo conversas e sinais à procura de coisas passíveis de serem mal interpretadas, ou de pés pelas mãos - eu sou ótimo nisso - e não encontro. Não naquela fração de segundo. Não importa que não encontre, tenho a certeza que a culpa é minha, não cuidei, não estive atento, meti água mais uma vez. "não é por tua causa". Meio alívio. Será? A cabeça não pára à procura de motivos. Abundam. Suspiro e preparo-me para escutar. Se for para me dar na cabeça, seja. Mesmo que não seja assim tão culpado desta vez sou-o de alguma forma. Sou sempre culpado, de alguma forma. Se é para me dar na cabeça é porque mereço.
Espero que vá sendo cada vez menos assim, à medida que a idade avança e a velhice vai tomando o seu lugar. Talvez a velhice traga consigo uma maior sabedoria, uma mais profunda serenidade. Espero que seja isso e não um adormecimento mental, ou sensorial. Talvez seja mais uma aceitação. Espero que não haja uma rendição. Espero que a minha intrínseca culpa vá progressivamente sendo substituída por um "o que for será", que não seja um "inevitabilismo" mas uma tranquilidade de quem percebe que a vida tem alturas em que segue um curso próprio e que mais vale gastar as energias naquilo que podemos efetivamente mudar. E que, por muito que se tente, haverá sempre lugar para contentamentos e descontentamentos, felicidades e infelicidades, alegrias e tristezas. E que, com sorte, haverá sempre alguém que goste de mim.
Desde sempre eu e os meus filhos conversamos de tudo. Sem tabus mas com os limites da individualidade e das escolhas de cada um. Minhas e deles. Há aspetos da minha vida sobre os quais eles não opinam ou se opinam respeitam as minhas escolhas. Há aspetos da vida deles que, por muita vontade que tenha de opinar, fazem parte das suas próprias escolhas, e eu tenho mais é que respeitar. E confiar. Na educação que lhes demos, nos valores que lhes tentamos incutir, que se deixem ir guiando pelo olhar atento e amoroso de Deus.
Então no que diz respeito à vocação de cada um, eles têm roda livre. Porventura, se e quando solicitados, poderemos dar a nossa opinião, mas sempre com muito pudor e reservas. A dificuldade ou não de conseguir um bom emprego nunca foi questão para nós, e muito menos o dinheiro que poderão ou não ganhar com a profissão que escolherem. Tentamos que as suas escolhas sejam mais ou menos conscientes mas não definitivas: não há escolha que valha uma vida de infelicidade e é importante para nós que eles saibam que se pode sempre recomeçar, que pior que recomeçar é persistir no erro. e que se recomeçarem, cá estaremos para os apoiar na medida do (im)possível.
Como pai, o fundamental é que os meus filhos sintam necessidade de agradecer o final de cada dia. à vida. Agradecer as coisas boas e más, as oportunidades e os desperdícios, as consumições e alegrias. Que agradeçam a vida, qualquer que seja a sua circunstância.Será, porventura, a chave da felicidade. Se agradecerem de coração franco, aberto e disponível, será sinal que percebem que não são ilhas, que o seu dia depende do trabalho de uma imensidão de pessoas sem as quais a vida seria pura e simplesmente incomesurávelmente mais difícil, se não impossível. Será sinal que entenderam que ninguém é mais ou menos importante que ninguém e o que ocupamos são lugares e cargos numa imensa rede de interajuda e apoio mútuo. E que tudo, absolutamente tudo, tem como origem alguém que nos deu a vida, o palco onde tudo é possível.
20171117
Nesta Igreja que eu amo e na qual vivo mergulhado até ao pescoço, há coisas das quais me orgulho e outras das quais me envergonho. Nada de mais, acontece com a minha própria família e, creio, com todas as famílias: decisões que não subscrevemos, pessoas que não reconhecemos como sendo de bem, companhias e conversas com as quais não nos identificamos minimamente e preferimos que não existissem.
Hoje, no carro a caminho daqui, tive este misto de sensações. Por um lado, orgulho pelo Dia Internacional da Pobreza. Eu, que até tenho saudades de Bento XVI, orgulho-me deste papa que, de certa forma, entende melhor o nosso tempo, particularmente na forma de comunicar em soundbites. Desde sempre que os pobres e os de sinal menos na vida são o motivo de agir da Igreja. Não é novidade para ninguém. Mas ser este Papa a dizê-lo, particularmente alicerçado na forma como viveu a sua vida e o se papado, ganha um outro impacto e uma outra efetividade. Orgulho, portanto.
Mudo de emissora e sinto vergonha. O nosso cardeal diz liminarmente que desaconselha os homossexuais no acesso ao sacerdócio. Coro de vergonha e tento ler a notícia, porque as coisas podiam não ser bem assim. Leio que, com a mesma facilidade e naturalidade com que fala do caso do padre que foi pai - e ainda bem - afirma a sua quase repulsa no acesso ao sacerdócio pelos homossexuais. No primeiro caso recorre até aos casais que, por "acidente", têm um filho fora do casamento. Acontece! Foi um descuido! Um homem - e um padre é um homem - não é de ferro! E sabemos como são as mulheres, não é? No passa nada, sobretudo se houver a firme intenção de reassumir a fidelidade. Agora, um homossexual ser padre, vade retro! Um homossexual, como todos sabemos é um ser perfeitamente incapaz de controlar a sua sexualidade, sempre a viver na sombra da promiscuidade, à procura de uma oportunidade para seduzir incautos. Não é bem um homem (ou mulher), é sobretudo um pecador. Vergonha. Enorme vergonha.
Anseio o dia em que, finalmente, olhemos para as pessoas tal como elas são, na sua circunstância, sem a ânsia de as catalogarmos. Creio que era isto que Jesus fazia.
20171106
Tenho vindo a aprender que um dos grandes segredos de uma vida feliz é o da gratidão.
Acabei agora mesmo de ser chamado à atenção. Amavelmente. Isto é, com e por amor. Por alguém que tem mais idade que a minha mãe. Que me conhece bem, há muitos anos, que contribuiu diretamente que a minha família aumentasse em número e qualidade, e com quem trabalho agora par a par.
Não creio nada ter o rei na barriga (apesar de, com jeitinho, lá caber um). Normalmente escuto todas as pessoas, submetendo as suas opiniões, posteriormente, ao natural crivo da minha reflexão. Não sou propriamente uma esponja mas também não sou mármore. É-me fundamental ir sendo balizado e corrigido nuns momentos e incentivado noutros. Talvez seja assim porque não tenho grandes definições interiores e dependo por isso da sabedoria que gira em torno de mim. Que é imensa!
Não preciso chegar ao final do dia para agradecer. Nem sequer da presença física de alguém específico para lhe agradecer. É comum, nos meus périplos matinais, surpreender-me num sorriso porque às tantas recordei uma conversa ou uma leitura ou um reparo de alguém. E louvo a Deus por esse alguém.
Se há certeza certinha na minha vida é esta noção que quando me armo em impermeável sou sempre pior pessoa. E que me vale de muito esta necessidade do olhar amoroso dos outros na minha vida.
20171025
Assim que se sentou ao meu lado percebi que hoje era dia de conversar. Aninhou-se em mim, como fazia quando pequenina, porque se para os pais os filhos são sempre filhos, para os filhos os pais são sempre pais. E essa verdade suplanta qualquer medida do tempo. Sabia do que iríamos conversar, que era chegado o momento de colocarmos as palavras em consonância com as ações, que isto de brincar às escondidinhas é sempre saboroso mas tem o seu tempo. Escutei, com enorme prazer, como escuto sempre aqueles que amo. Disse apenas que para mim o que importa nos meus filhos é se as suas escolhas são acrescento ou roubo. Se quem eles conhecem, a quem se ligam, a quem se entregam, lhes tiram ou acrescentam. E que a via íntima e profundamente feliz. E que, estando ela feliz com as suas escolhas eu estou feliz com as suas escolhas.
Quando digo que aprendo muito com os meus filhos não é porque fica bem. Aprendo muito com os meus filhos. Quando acabou o recolhimento e ela foi à vida dela fiquei a pensar no que acabara de lhe dizer. É muito comum em mim esta descoberta à medida que as coisas vão saindo de mim, numa espécie de navegação à vista que no meu caso normalmente produz melhores resultados que a reflexão. Porventura, em mim, as coisas sentidas serão mais fiáveis que as coisas pensadas. Menos complicadas são, pelo menos.
Perguntei-me, ontem, como me pergunto muitas vezes, se serei acrescento ou roubo. Para quem serei eu acrescento e para quem serei eu roubo. Durante o dia tivera ambas as manifestações e eu pesava-as devidamente, recordando a conversa com a minha filha.
Eu acrescento?
Eu roubo?
Gostaria de ter ficado mais satisfeito com a minha resposta.
20171018
Num dos meios onde passo uma parte substancial dos meus dias, a sensação mais importante que se pode transmitir é a possibilidade de recomeçar. São pessoas que sentem que nasceram já devidamente carimbadas, marcadas, como o gado destinado ao matadouro, e que muitas vezes desconhecem a possibilidade que (raramente) têm de assumir o seu destino nas suas mãos.
Movo-me todos os dias num contexto educacional. Leio e releio, vejo e revejo, escuto e volto a escutar artigos, filmes e programas sobre o printing que nos é feito logo os primeiros anos de vida que, não sendo absolutamente irreversível, é algo com o que temos que aprender a viver. No entanto, na maioria das vezes, estas marcas são depois desvalorizadas por omissão, numa massificação que teimosa e cegamente quer fazer igual o que à partida é tão diferente.
Não tenho nada a noção dos coitadinhos nem dos privilegiados. Trabalho todos os dias com miúdos que habitam ambas as margens da sociedade. Conheço-os. Converso com os que me permitem entrar, observo atentamente os que me mantêm à porta. À espera de uma fresta. Apercebo-me dos seus medos, das suas defesas, do imenso que, apesar das aparências, os une. Não acredito por isso que a forma de combater o privilégio de uns é privilegiar outros. Faltando-lhes ao respeito. Facilitando-lhes a vida. Tratá-los como coitadinhos é fomentar a preguiça, aprofundar a separação, semear o ressentimento. É por causa disso que abomino a facilitação generalizada e desleixada que grassa nos cursos "profissionais" onde muitos deles são despejados como quem lhes dá um rebuçado para não chatearem ninguém. Porventura pensar-se-à que se ganha tempo e dados estatísticos, quando na verdade adiam-se futuros e adensam-se gravidades.
Acredito na exigência da manutenção dos limites, claros e firmes. Acredito no compromisso e na exigência do compromisso. Acredito na necessidade das regras e dos valores e da convivência. E acredito que tudo isto apenas faz sentido se não fecharmos portas. Se deixarmos claro que cada dia é um dia. Se fizermos perceber que o que castigamos são algumas das atitudes e não as pessoas que as cometem. Acredito no imenso valor da partilha: dos olhares, das conversas, dos toques, do conhecimento mútuo. Acredito, fundamentalmente, que é permitido recomeçar. Sempre. Todos os dias. Sem recriminações. De braços abertos. De coração escancarado!
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20171011
Há pessoas que habitam no momentos que nos habitam. Pessoas que a vida mais tarde desmente dentro de nós mas que nunca nos deixamos desabitar. Recordamos conversas e olhares e risos e choros e caminhos calcorreados em comum sem permitir que nada conspurque essa memória. Há nisto uma espécie de inocência, um agarrar ao que é bom dentro de cada um e que, pelo menos naquele momento, se deixou desvelar. Um desvelo que é tão mais significativo quanto mais raro, porque nos concede o privilégio da memória da alma antes de.
Um dos enormes privilégios de trabalhar com miúdos é que os conhecemos (quase) antes de tudo. Mesmo os do Raiz, que nos chegam às mãos muitas vezes já marcados pelos infortúnios que deveriam ser exclusivos dos adultos, estão ainda no seu estado puro de irreverência e rebeldia, com uma doçura que, quando conquistada, é absolutamente desarmante! Depois, como frequentemente acontece, quando nos vêm visitar já depois de muita vida vivida e marcada pela marginalidade, o seu olhar veste-se ainda daquela inocência agora apenas recordada nos breves momentos que estamos juntos. Essa alegria, ainda que meramente momentânea, acende em nós uma centelha de fraco consolo: pelo menos connosco foram felizes em determinada altura. E de esperança: talvez, quando tiverem filhos, lhes queiram proporcionar essas boas memórias reatando assim os laços connosco.
Pouco consigo recordar da minha vida sem esta mútua construção de boas memórias.
Deve ser por isso que sou tão e tão bem habitado.
20171010
O que de mais importante acontece entre quem se ama não é visível. Nem palpável. Nem discutível ou sequer argumentável. Por isso não raras vezes meto água quando tento apalavrar a imensidão que ora alimenta ou atormenta o meu peito. E quanto mais tento traduzir essa imensidão, maior é a minha pequenez.
Tenho uma tendência inata para a musicalidade, até nas palavras. Há uma cadência, um ritmo, uma sonoridade, que me acompanham permanentemente, nos mais variados momentos, que impede o sossego do pensamento mas me liga à alma. Quase sempre deixo-me invadir por essa musicalidade e permito que ela me conduza, numa espécie de ligação direta que não passa pela razão. Arrependo-me muitas vezes do que digo e resta-me, por vezes orgulhosamente, o único consolo da autenticidade das minhas palavras, que espelham, sem refletir, sem ponderar, o que de verdadeiramente sinto e sou em cada momento. Burro e confuso e incongruente, mas pelo menos autêntico.
No sábado, depois da oração, o maior espanto não vinha do que dissera mas da forma como dissera: quase sem gaguejar. Mergulhado naquela paisagem feita de pessoas e silêncios e cânticos e cumplicidades mútuas em oração, era na realidade escasso o que passava pela cabeça antes de ser proferido. Abandonava-me ao espírito com o mesmo deleite e irresponsabilidade de quem confia cegamente e se deixa conduzir pelo amor. Talvez daí o não gaguejar. Ligação direta. Sem passar na cabeça.
Num processo muito semelhante, quando converso a sério, a dois, intimamente, olhos nos olhos, alma na alma, também tenho tendência a não gaguejar, a deixar que a musicalidade tome conta de mim e a abandonar-me ao momento. Por vezes dizem-me que sorrio parvamente e perguntam.me o que estou a pensar. E raramente acreditam quando respondo que não penso. Limito-me a deixar fluir.
Disse ontem que, se não gaguejasse, seria uma pessoa muito diferente. E não para melhor. Normalmente, o abandono à musicalidade das palavras proferidas é um bom sintoma para mim. Significa que estou mergulhado. Que vivo. Intensamente!
20170928
Têm sido dias extremamente cheios.
Novas ocupações, que exigem novas responsabilidades e, sobretudo, um outro olhar, mais atento, mais decidido, com uma outra ligação ao cérebro por forma a conseguir decidir e agir da melhor maneira possível no melhor tempo possível. Uns dias passados em cima do arame, focado na permanente tentativa de manter todas as bolas no ar, tentando falhar o menos possível e, a falhar, que não seja no fundamental.
Têm sido dias de manhãs.
Com a alma a despertar novamente junto ao mar, com calma, que para correr basta o dia. Rezando a vida como eu mais gosto de a rezar, peripateticamente, tendo o frio da manhã, o mar, as gaivotas e o vento como companhia. Ganho vida e ganho fôlego para o que vem, balanceio a noite que foi e o dia que há de ser, pedindo a consciência de me sentir suficientemente amado e acompanhado para evitar asneiras recentes.
Têm sido dias de noites.
Reentrego-me aos meus, procuro neles refúgio e fôlego e serenidade. Reencontro-me com o que me é mais importante, com quem me é mais importante, redescobrindo neles o meu lugar, confirmando o seu lugar em mim, permitindo-me o alimento que brota das suas raízes que, lenta e progressivamente, voltam a ser confundidas com as minhas raízes, entrelançando-se ao ponto de formarem uma só raiz, uma só árvore.
Têm sido os meus dias
Serenamente, vou-me reconquistando. Não tenho já medo de me olhar ao espelho quando acordo, não tenho já que me esconder de mim, não tenho já que me mascarar. Visto-me de mim. De corpo e alma. Inteiros. E, assim inteiro, apresento-me à vida.
20170927
Por vezes, não temos forma de escapar ao choque. Provavelmente, nem seria bom se o fizéssemos, porque a vida é também choque.
Entrou ontem pela sala dos professores dentro "só para desejar um bom dia e um bom ano". Por acaso eu estava lá. Por acaso estava ainda disponível para lhe sorrir e acolhê-lo. Por acaso conversáramos ambos havia pouco tempo porque de vez em quando nos cruzávamos na rua. "então a reforma?" e "cumprimentos à Dra. Isabel" faziam sempre parte dos nossos breves momentos de conversa. Por acaso, ontem, ainda não estava ainda suficientemente mergulhado no trabalho para emitir um breve grunhido e cumprimentei-o efusivamente. Uma sucessão de meros acasos que, confesso, me serviram de parco consolo quando fui abalroado pela notícia da sua morte. Ontem mesmo. Pouco tempo depois de nos ter desejado bom ano. Efusivamente.
Tenho sempre vontade de escapar ao choque da morte. Seja de uma das imensas pessoas já com alguma vida vivida com quem me cruzo, seja de um dos imensos miúdos ainda com tudo para viver com quem me cruzo. Todos têm um olhar. O seu olhar. Único e irrepetível. Que se cruza com o meu.
Que se cruzava com o meu.
E já não voltará a cruzar.
Não quero escapar ao choque da morte. Ensina-me sempre a efemeridade da vida.
20170922
Foi um grande início de manhã. A foz estava fria, nebulosa, quase deserta, como eu gosto, com o nevoeiro a esconder da vista os navios ao largo e o sol a espreitar a medo. A areia estava pejada de gaivotas, estacionadas, à espera dos primeiros raios que lhes secassem as penas e lhes retornasse a vontade de sair daquela doce modorra e lhes devolvesse a vontade de voar. Eu já tinha começado. A voar. Cá por dentro. Numa doce sintonia com o que se passava fora de mim, diante dos meus olhos. Há já imenso tempo que não amanhecia assim. Tão em sintonia. Talvez seja da semana maluca que tenho tido. Talvez seja da dolorosa cerimónia de ontem, que me abanou até ao tutano. Talvez seja da súbita consciência das enormes graças que devo. A Deus. Aos que amo. Aos que me acompanham. Aos que não gostam de mim.
Vou tendo alguns momentos destes.
Em que podia morrer. Feliz. Cumprido.
Em que em entrego à Vida.
Feliz.
Cumprido.
20170920
A grande novidade das férias deste ano foi ter passado, pela primeira vez, uns tempos em casa da minha filha. Até aqui, sempre que estou com os meus filhos numa casa, estou em minha casa, com todo o peso que "a minha casa" acarreta, e que não é, de todo, semelhante ao estar na casa da minha filha. Adiante.
Em casa dela conheci, finalmente, a Mia. Uma gata lindíssima, sereníssima, de quem tenho saudades. Sim, tenho saudades daquela gata que nos fez companhia durante dez ou doze dias.
Vem isto a propósito de um post de um amigo meu a despedir-se do seu cão, que foi seu companheiro fiel por mais de dez anos. Instintivamente, eu torço o nariz a este tipo de relações. Por muito que eu goste de cães e gatos - à partida, adoro cães, tolero gatos - são bichos, e por isso faz-me sempre muita impressão esta tendência de antropomorfizar os animais. Então os que dizem que preferem os animais às pessoas, põem-me verdadeiramente fora de mim. Uma coisa é estimar os nossos animais de estimação - maltratar qualquer animal é simplesmente inadmissível - outra é tratá-los como se fossem pessoas, com as necessidades físicas e psicológicas das pessoas, como se fossem filhos. cheira-me sempre a projeção de carências afetivas num pobre animal que não tem culpa nenhuma.
Entendo bem a saudade que um animal pode provocar. Nós, que sempre tivemos animais, falamos com imenso carinho e saudade dos nossos cães - já morreram todos - recordando as suas peripécias, as suas personalidades e até a dor que nos provocaram quando morreram - uns nos nossos braços, outro no veterinário.
A verdade é que não tenho que etiquetar o amor. A verdade é que entendo que se possa amar um cão ou um gato que fez parte da nossa vida e que deixa uma tremenda saudade. A verdade é que amar é amar. Assim. Sem etiquetas. Sem comos ou porquês. Sem racionalidades, se quisermos. Sem qualquer outro instinto que não seja fazer feliz.
20170917
Vi um bom filme, ontem, com um casal homossexual no papel principal mas sem ser sobre gays. Love is Strange é um filme sobre amor, sobre envelhecer juntos, sobre o casamento, sobre família e amizade e tantas outras coisas que poderão acontecer a cada um de nós e nas quais a homossexualidade é um factor como outro qualquer.
Quando eu era muito novo fui a várias entrevistas de emprego. Invariavelmente, iniciava a conversa por declarar uma evidência ao meu interlocutor: eu gaguejo. Parecia-me uma boa maneira de ou começar a conversa ou acabar por ali. Fazia-o sempre com as raparigas que ia conhecendo, no que constituía um bom barómetro para perceber em quem valia a pena investir ou não, e aplicava a mesma receita com os meus entrevistadores. Numa dessas entrevistas, obtive uma resposta que nunca mais esqueci: "O dia em que deixares de sentir necessidade de iniciares as conversas dessa forma será o dia em que assumes a tua gaguez como normalidade".
Recordei isso ontem. Pareceu-me que aquele filme ia no sentido certo. Apenas poderemos ver a homossexualidade como algo normal à medida que a formos dispensando de tratamentos especiais. Compreendo que num dado momento teve que ser dessa forma - a primeira vez que me comovi com um filme gay foi com o Filadélfia - mas creio ser chegado o tempo de os próprios homossexuais se verem naturalmente. Talvez dessa forma deixemos todos de nos apontar o dedo, seja por despeito seja por respeito excessivo. Qualquer uma dessas formas apenas serve para os separarmos da normalidade.
20170905
Invariavelmente, fico muito triste e desiludido comigo mesmo quando me apercebo que dou o menos de mim. Então quando isso acontece justamente com aqueles que me são mais queridos e ainda por cima por desleixo, apetece-me insultar-me. E insulto-me.
O menos de mim acontece sempre que eu baixo a guarda. Quando me deixo envolver por uma certa superficialidade, quando crio ou alinho em brincadeiras parvas que me focalizam mais na piada que possa eventualmente ter que em quem tenho diante de mim. Contrariamente ao que por vezes eu e outros pensam, sou um péssimo habitante da superficialidade. Claro que muitas vezes sorrio e aceno, a maior parte das vezes para evitar perguntas incómodas, outras para evitar pessoas incómodas, mas rapidamente me deixo desmontar por quem me conhece e, sobretudo, confio. Mas prefiro, de longe, uma boa conversa profunda e reveladora, de dádiva e descoberta mútuas, de dois sentidos. Crescemos mais, semeamos mais e, sobretudo, cuidamos e curamos melhor. Mutuamente!
20170904
Recomeçar. Uma das minhas palavras preferidas e um dos temas a que volto frequentemente. Tão frequentemente quanto a minha necessidade de recomeçar. Hoje vinha no caro a escutar a oração da manhã da Renascença, depois as notícias da TSF, de seguida a caminhada junto às praias da Foz. Já antes acordara à hora do trabalho, seguiu-se o duche ao som das primeiras notícias, o pequeno almoço, a viagem... tudo devidamente condimentado pelo cheiro da manhã, os bons dias aos filhos que, à vez, vão chegando para pequeno almoço, o até logo aos que estão quando saímos, a viagem a dois, feita de partilhas e silêncios partilhados... as saudades que eu tenho da rotina!
Recomeçar. A sensação que tenho é que este ano recomecei antes do tempo, com um retiro que, vou descobrindo (e acreditando), me permitiu fechar um ciclo e iniciar outro. As viagens interiores permitiram uma outra maneira de viver as férias que, desta feita, foram mesmo férias. Recomeço assim com um outro estado de espírito, cheio de vontade e força e algumas ilusões e expectativas para um ano que se adivinha árduo. Como todos os anteriores, aliás.
Eu preciso de recomeçar. Sempre. Preciso de saber que posso recomeçar. Não como se não tivessem existido antes mas podendo ainda construir por cima desses antes, que constituem fundamentos sempre renovados para o que há de vir, para o que há de ser, para o que hei de conseguir construir.
Bora lá recomeçar.
20170823
Sempre que leio ou oiço falar no diabo sinto as unhas dos pés a torcerem-se todas. De vez em quando há na Igreja algumas tendências que me deixam, mais que estupefacto, profundamente triste. Devo confessar que, no Papa Francisco, esta recorrência ao diabo me confunde. Mais: entre outras coisas - como o simplismo do seu papado (que é coisa bem diferente de simplicidade) - essa referência quase permanente provoca quase que uma reserva interior, como se alguma coisa não batesse certo. Então a falácia "a principal vitória do diabo é não acreditarmos na sua existência" põe-me verdadeiramente fora de mim. É fanfarronice!
Eu acredito no Bem. E no Mal. Não como entidades invisíveis que pairam acima das nossas cabeças mas como possibilidades, como potencialidades, como resultados de escolhas nossas, conscientes ou não. Por isso não gosto quando, por exemplo, se diz que Hitler estava possuído pelo demónio. Hitler, como qualquer um de nós - numa outra escala - tomou decisões, fez escolhas, influenciou milhões de pessoas para destruir milhões de pessoas, em nome da ganância, da sede de poder, de superação de dificuldades interiores e exteriores, de vinganças, de orgulho. Tal como cada um de nós! Era mau, sim, mas porque escolheu o mal, não porque fosse habitado pelo demónio. Num outro pólo, Gandhi ou Luhter King ou tantos outros não estava particularmente habitados pelo Espírito. Tomaram decisões, fizeram escolhas, provavelmente tiveram noites sem dormir e problemas de consciência e incertezas, assim como Hitler ou Estaline ou, repito, qualquer um de nós. Em todos eles, em todos nós, habita a potencialidade do Bem e do Mal. Cabe-nos escolher.
O problema do demónio é que retira da nossa humanidade da equação. A humanidade enquanto capacidade de escolha, enquanto liberdade, enquanto voz ativa na definição do que cada um quer para a sua vida e para a vida dos outros. A recorrência ao diabo desresponsabiliza, potencia o bode expiatório, permite remeter, mais ou menos conscientemente, a culpa para debaixo do tapete.
E eu prefiro uma culpa reconhecida a uma culpa não assumida. Por mais que doa. Ajuda-me a crescer. Sempre!
20170813
Recordo com frequência a lamentação em prantos de um amigo que se divorciara havia pouco tempo: "o que mais me dói é não poder estar todos os dias junto dos meus filhos."
Quando se ama nada dói mais que não estar. Porque não se pode, porque não se deve, porque as situações que criamos não nos permitem fazê-lo, porque a vida faz o seu caminho de acordo com as nossas escolhas. Ou não. Talvez seja também por isso que continue a pairar cá por dentro o o terem-me dito que não sei amar. Porque há uma responsabilidade que outras responsabilidades me impedem de assumir, E não existe amor sem responsabilidade. Não existe fantasia ou desejo ou sonho ou wishful thinking que resista à realidade: sou apenas um. Se não por dentro, pelo menos por fora sou apenas um. E, fisicamente, não consigo estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Quando se ama, escolher não devia fazer parte do campeonato. Amava-se e pronto. Estava-se quando se estava e pronto. Sentia-se e pronto. Mas a escolha é, justamente, uma consequência de amar. Porventura não definitiva, porventura não exclusiva, mas sempre com o paradoxo de, inexoravelmente, conciliar a infinitude do ser com a perene limitação física do estar. Não devia ser assim. Ás vezes é tão difícil ser assim!
Frequentemente sinto enormes dificuldades em corresponder à necessidade de estar. O que significa, em última análise, que frequentemente sinto enormes dificuldades em escolher onde tenho que estar. Esta minha omnipresente tentação de ter sol na eira e chuva no nabal, apesar de por vezes muito saborosa, revela-se inevitavelmente desastrosa à medida que o tempo vai sendo tempo. Acabo por ser pela metade, sempre dividido, sempre a dividir, sempre a repartir aquilo que apenas faz sentido por inteiro.
20170807
"Tu não sabes mesmo amar!"
Não sei já se foi bem assim que eu li. Não interessa. Foi assim que ficou. É assim que permanece. Para ser lido e relido e trelido. Para questionar. Me questionar. "Tu não sabes mesmo amar!"
Naquele quatro onde estava só mas longe de me sentir só, esta questão apresentava-se-me várias vezes. Ao longo de um dia são algumas as vezes em que tenho vontade de dizer a alguém que a amo. A propósito de algo que penso, a pretexto de algo que vejo ou oiço, a despropósito de coisa nenhuma, várias vezes tenho a tentação - umas vezes concretizada, imensas não - de enviar uma sms a dizer "amo-te". Apenas isto. "Amo-te" Por vezes quando o faço recebo algumas respostas curiosas. "O que se passa?" "Estás bem?" " O que aconteceu?" Parece que receber uma declaração de amor - romântico ou não - não é válido se não for devidamente acompanhado de uma tese.
"Tu não sabes mesmo amar!"
Naquele quarto perguntei-me se não sei mesmo amar. Como amo? Amo? Uso? Abuso?
Perguntei-me por quem estou eu disposto a dar a minha vida. Por quem dou o peito às balas. Por quem abdico de mim. Por quem não me importo de me adiar. Por quem me ultrapasso e me relego e me deixo para segundas núpcias. Por quem me anulo ou deixo anular. Enumerei até as pessoas por quem por vezes, nos dias bons, faço isso tudo. Então, se eu o faço, ainda que poucas vezes, não saberei eu amar? Mas será isso o saber amar?
Aguardo.
20170806
Nos meus tempos bons, de alguma serenidade interior, confio. Nos meus tempos maus, de enorme turbulência interior, escolho confiar. Não sem luta, não sem relutância, mas rendido à inevitabilidade da minha crónica insuficiência de ser.
Desta vez teve mesmo que ser. Há já quase dois anos que, confrontado com acontecimentos inesperados e marcantes, uns excelentes outros terríveis, que eu andava às bolandas. À minha maneira. Que é sempre de perda, de cair e levantar, de estender a mão, de "eu resolvo", de oscilação enorme, de perda de referências, de desnorte total. Sobretudo causado pelo "eu resolvo".
Calculo que todos nós gostaríamos de viver sem pressa. De saber saborear o tempo, a vida, o momento. Durante aquele fim de semana, porque não podíamos falar - que bem me dei com o silêncio! - dei comigo a saborear a comida, a mastigar sem pressa, apercebendo-me de cada sabor. Porventura passar-se-ão mais alguns longos tempos até o voltar a fazer, mas apreciei bastante essa coisa aparentemente menor de saborear devidamente cada momento.
20170727
Vou para retiro. Daqui a pouco. É um desejo de há muitos anos, agora confirmado. Há momentos disse a um amigo que estou assustado. Estou assustado. O tipo de encontro que perspetivo tanto pode dar cascas como casqueiros. Tanto posso vir muito bem como ainda pior. Por isso estou assustado. Não tenho nada a certeza que despir-me perante Deus seja bom quer para mim quer para os que me rodeiam. Não tenho nada a certeza se estou preparado para o fazer, para deixar que Ele me despoje das muitas camadas com que laboriosamente me fui cobrindo e tapando e escondendo. Não tenho nada a certeza se eu gostarei do que está por debaixo das camadas. E ainda menos se os outros gostarão. Ou se estaremos preparados para essas realidades. Mas das duas uma: ou confio suficientemente no amor para o fazer ou então o retiro não será retiro. Mais: ou confio suficientemente no amor de Deus para me despir ou então toda a minha vida mais recente não terá sido vida. Mas esta é justamente a maior dúvida que se me instala cá por dentro: o meu desejo profundo de autenticidade é em função de quê? De quem? Da normalidade? Das expectativas? De quem? Minhas? Dos outros? O que é ser normal? Quero ser normal? Alguma vez serei normal?
Vai ser um longo fim de semana -)
20170719
Quando era novo tive, por várias vezes, dores de crescimento. Em boa verdade não fazia ideia do que seriam dores de crescimento, mas sabia que era um bom motivo para a minha avó me esfregar arruda nas pernas (também não faço ideia do que seja) e que isso produzia um efeito de alívio imediato. A esta distância creio que haverá uma boa probabilidade de ter sido apenas mimo, mas uma boa dose de mimo ocasional não faz mal a ninguém.
Nessa e noutras alturas pensava que as dores de crescimento acabariam por acabar. Nessa como em muitas outras alturas estava profundamente enganado. Hoje de manhã, nesse consultório de estados de alma quotidiano que é o meu duche, pensava nas justificações que poderia dar a alguém que me confrontasse com os meus últimos tempos. Essas imaginárias ou antecipadas tentativas de justificação ocupam muito tempo do meu tempo. Procuro sempre um discurso que me permita ler a minha realidade atribuindo-lhe um sentido que à partida não encontro. Isto nos momentos em que me porto bem, por que nos outros faço o contrário: invento uma realidade que se coadune com o meu discurso previamente elaborado. Uma espécie de tentativa ridícula e estúpida - dois adjetivos que tenho como fiéis companheiros de jornada - de salvar a face.
Algures aí no meio, entre discursos próprios e externos e realidades interiores e exteriores, creio que estarei eu. O meu problema é que não consegui ainda estabilizar-me num qualquer desses lados e passo a vida a oscilar, aos saltinhos, de inconstância em inconstância entre o que sinto e sei que sou o o que sinto e sei que devo ser... e desejo ser. A minha esperança mais profunda é que, a determinada altura, nem que seja breves minutos antes de morrer, eu consiga perceber onde pertenço. Ainda que me adiante de pouco, porque se me acontecer apenas nessa altura, estarei a breves minutos de pertencer a uma outra realidade. Enfim... talvez aí possa, enfim, ter descanso!
20170712
Há, no devir, uma sabedoria que me escapa todos os dias.
Desde muito miúdo que, embalado por uma cena de uma banda desenhada de índios e cowboys, quis muito ser chefe índio, com cachimbo e tudo. Na sua aldeia era a ele que todos recorriam em busca da sabedoria. Ele, de cachimbo na boca, pensava longamente nas perguntas e respondia com o mesmo ritmo: vagarosamente, como se até o tempo se curvasse à sua sabedoria.
Ainda hoje me recordo destas férias verdadeiramente grandes. Na cama de rede que pus no meu quintal, embalado pela demanda da sabedoria, li As Mil e Uma Noites de ponta a ponta - que só muito mais tarde percebi - e comecei a ouvir rádios fm e antena 2 - em minha casa apenas se ouvia os parodiantes de lisboa. Foi aí que comecei a tentar acompanhar os ritmos do tempo em que vivia. E foi aí que, mentalmente, comecei a sair do bairro.
Hoje de manhã, debaixo do duche, pensava neste e noutros percursos meus. Recordava aquela meia dúzia (na realidade foram sete) de decisões que se revelaram absolutamente decisivas. Recordava particularmente aquelas que me levaram aos buracos em que me fui metendo. Tentei refazer os meus percursos posteriores, se a minha decisão tivesse sido a correta. E cheguei à conclusão a que muitas vezes chego quando estou verdadeiramente bem: se as minhas asneiras me permitiram chegar como estou onde estou hoje, aqui e agora, então benditas asneiras. Claro que noutras alturas amaldiçoo essas mesmas asneiras, particularmente quando causaram dor, sofrimento e desilusão.
Hoje estive fugazmente com uma amiga que já não via há muito tempo. A primeira coisa que me disse foi que os meus olhos estavam diferentes: mais repousados, confiantes e alegres. Sorri. E pensei imediatamente que há, no devir, uma sabedoria que apenas o tempo me permite ver. Quando está bom tempo.
20170711
Quando estou bem, acredito que as pessoas que nos habitam são definidoras da forma como vivo a minha vida. Que tipo de memórias tenho? Com que pessoas? Em que momentos? Que tipo de sentimentos essas memórias reacendem em mim? Qual a saudade que me impregnam? Quando estou mal não consigo sequer aperceber-me desta presença que é quase tão real como a realidade. No entanto, é a estas presenças que instintivamente recorro para sair dos buracos escuros em que por vezes me meto.
Há uma marca ainda mais duradoira, única, pessoal e intransmissível que uma impressão digital que os que me habitam deixam em mim. Estranhamente, algumas dessas marcas nem foram por mim devidamente reconhecidas na altura em que aconteceram. Creio que me terão parecido momentos insignificantes, despercebidos, submersos entre outros aos quais, na altura, me pareceram bem mais importantes. No entanto, em determinada altura essas aparentes insignificâncias ganham um relevo quase desmesurado e tornam-se em tábuas de salvação, em caminhos de luz. Não raras vezes volto a escutar conversas e lugares e olhares e partilhas que me dão um sentido que eu buscava há tanto tempo e demorava a encontrar.
Confesso que adoro esta presença cá por dentro. Adoro sentir-me habitado por memórias e encantamentos ligados a pessoas concretas em momentos concretos da minha vida. A minha questão é quando viro esta coisa ao contrário: quem habitarei eu? E, sobretudo, como habitarei eu?
20170710
O meu fim de semana andou à volta do Espírito Santo. Curioso, não é? Como é que alguém que nem sei bem quem é, ou como é, pode pautar assim um fim de semana.
No sábado fui padrinho de crisma de uma miúda fabulosa. Pediu-me para ser seu padrinho e eu, surpreso, orgulhoso e embevecido, aceitei. É sempre uma responsabilidade que me pesa sobre os ombros. Uma responsabilidade extra à que naturalmente tenho e que por vezes pesa toneladas. Eu sei como sou, conheço a minha dificuldade em manter-me constante nos valores e a minha luta quotidiana em me manter uma pessoa minimamente decente. Quando alguém me escolhe e ainda por cima apresenta como motivação para essa escolha o meu testemunho de vida, a sensação que tenho é sempre de profunda estranheza. E por vezes, de mentira. Acabo sempre por me colocar em causa, por pesar até que ponto a minha vida interior, com todas as dúvidas, com todos os medos, com todas as infidelidades a mim mesmo, se reflete no concreto do meu dia a dia. E pergunto-me até que ponto visto uma roupa que não me pertence e induzo os que me rodeiam em erro.
Ontem, ao pequeno almoço, o Espírito Santo e a Igreja voltaram à baila. É um assunto mais ou menos comum lá em casa, às refeições, onde volta e meia todos discutimos o que nos é importante. E a Igreja e a forma como ela vive e a forma como nós a vivemos, é importante. Às tantas a minha sogra, que naquela altura estava presente, apresentou as suas teorias vindas das catequeses antigas e que a mim e aos meus filhos dizem muito pouco. Já a conversa tinha passado e ela regressou para me confrontar com algo que eu tinha dito acerca do Espírito Santo. E eu tentei esclarecê-la afirmando a minha fé no Espírito, que acredito nos move a todos. Mas sem escolher alguém de uma forma particular: não acredito que incida no Papa de uma forma mais especial que a mim, por exemplo. Provavelmente, a forma como o Papa O acolhe é que será bem diferente da minha. A medida é ditada por nós, pelo nosso acolhimento, pela nossa recetividade, não pelo Espírito, que ama a todos da mesma maneira individual, intensa e total.
Mais tarde, comparei os meus estados de espírito dos dois dias. Num, cheio de culpas e de dúvidas; no seguinte, tentado apresentar as minhas razões de fé. E percebi que sou ambos, entre muitas outras coisas, dependendo das alturas, das solicitações, das circunstâncias. Depois comparei-os com as leituras, precisamente de ontem.
E desejei sentir-me sempre pequeno.
20170630
Hoje sentamos e conversamos com um dos miúdos do ER em quem mais confiamos. Estávamos todos convencidos que este ano ele tinha feito um excelente percurso: finalmente estava bem encaminhado num curso profissional que ele tinha escolhido, muito ativo, competente e responsável como monitor, ao ponto de lhe confiarmos ocasionalmente uma das salas e, o melhor de tudo, já começava a participar e a dizer o que pensa quando a isso era solicitado. Um caso de sucesso, quase um oásis no meio do deserto. Esta semana descobrimos, no entanto, por portas travessas, que ele nos estava a mentir desde fevereiro. Tinha desistido do curso e não nos disse nada, apesar de todas as semanas lhe perguntarmos como estava a correr e ele responder que estava tudo muito bem. Perguntamos-lhe porque nos tinha escondido a verdade por tanto tempo e a resposta foi óbvia: vergonha da desilusão que sabia que nos ia provocar. Hoje, sentados, olhos nos olhos, dissemos-lhe que a desilusão não diminuiu em nada a importância que ele tem para nós e para os miúdos com quem trabalha e propusemos-lhe uma penalização. Que ele aceitou com os olhos a brilhar. De alívio. E alegria.
Quando, no princípio desta semana, soube do que ele fizera, entendi logo porque o tinha feito. Revi-me logo no que ele tinha feito. Não sei o que nos leva a inventar realidades fantasiosas e a viver nelas como se fossem verdadeiras. Talvez porque não consigamos suportar a desilusão provocada nos que confiam e apostam em nós, tentamos tapar o sol com a peneira e adequamos a realidade ao nosso discurso, esquecendo que a realidade é real, e que acaba por nos cair em cima da cabeça. E, quando nos cai, quando somos descobertos, quando somos confrontados justamente por aqueles a quem desiludimos, a nossa maior preocupação é que a "pena", o castigo, nos permita voltar a reatar aquele elo de confiança que deitamos a perder. Naqueles olhos a brilhar eu revi os meus olhos de cada vez que, penitente, me permitem recomeçar. E foram tantas!
Hoje, depois da conversa com todos, quando estávamos apenas os dois, eu disse-lhe para aprender a confiar em nós. Que ele não inventava nada. Que não havia nada que ele fizesse que eu não tivesse já feito. Inclusivamente, que o que ele tinha acabado de fazer eu próprio já o fizera várias vezes. Por isso, não precisava de se esconder. Mas de assumir. E recomeçar. Connosco, que estamos aqui para o ajudar. Sempre.
Há alguns dias, raros, que me ajudam a perceber o que faço aqui no ER.
Paradoxalmente, à medida que tenho que ir vivendo mais rapidamente, vou escolhendo viver mais devagar. Uma coisa é o que tem que ser: as reuniões, as programações, as realizações do que se programou, tudo isso acontece normalmente no fio da navalha. Tudo para ontem - quando não para anteontem - num frenesim constante que, para mim, tem tanto de desgastante como de sensacional. Quem me conhece sabe que eu não percebo nada de queijinhos verdes - só entende isto quem joga Trivial - e por isso não faço ideia de aciona adrenalina ou o que quer que seja cá para dentro, mas o que é facto é que tenho alturas em que quase fico bêbado de trabalho, de tal forma mergulho e me sinto imerso e feliz com o que faço. Mas isso é o que tem que ser. Que, em parte, escolho ser enquanto profissional. Depois há a lei da compensação. O que eu escolho viver quando não estou em modo trabalho. E aí vou-me apercebendo que vou escolhendo o lado mais calmo da vida. Uma boa caminhada, uma boa conversa, uma boa partilha, até uma boa música calma.
Hoje "revi" duas pessoas importantes na minha vida. Com uma delas conversei com calma, olhos nos olhos, saboreando as palavras, apreciando o olhar. Com outra foi por email, reafirmando promessas de almoços para retomarmos conversas e partilhas há demasiado tempo suspensas. Quando me despedi da primeira, como a conversa foi de qualidade mas escassa, pedi-lhe para caminharmos juntos um dia destes enquanto poríamos verdadeiramente a conversa em dia. Respondeu-me que ando sempre ocupado, sempre a correr e que lhe custava pedir-me para fazer algo do género. Vim a pensar - com tristeza, confesso - que esta é uma constatação idêntica a outras constatações de pessoas que me são importantes. E para quem, de alguma forma, sou importante. Vou percebendo, com elas, que a forma como escolho viver mais devagar faz ainda mais sentido se algures nessa forma de vida conseguir incluir pessoas.
De alguma maneira, tenho que conseguir sobreviver à voracidade do tempo para ter este tempo.
Fica como ponto da agenda permanente do próximo ano.
20170629
Pergunto-me - pergunto-Te - muitas vezes porquê eu? Se não te terias enganado, se não estarias demasiado ocupado para olhares com atenção, se foi um descuido da Tua parte, se tinhas outras preocupações naquele dia - uma guerra, um conflito qualquer, alguém esfomeado - e estivesses a olhar para outro lado qualquer quando me senti chamado. Algumas vezes gostaria mesmo que me tivesses olhado atentamente. Que tivesses concluído que não valia a pena, que Te daria muito trabalho - que me darias muito trabalho - e que seria bem mais simples e eficaz escolheres outros. E olha que eu conheço tantos que seriam tão melhores! Algumas vezes gostaria de poder dar essa desculpa sem sentir a culpa de me e Te estar a tentar enganar: não conheço, conheço mas não ligo, não quero saber. Algumas vezes gostaria de me poder refugiar na minha pequenez, no meu nada, conseguir barrar de alguma forma essa Tua mania de me encher o peito e acelerar o sangue e sentir uma vontade incontrolável e inconsciente de ser, de participar e de tentar fazer. Evitar-me-ia a ressaca do saber que não sou capaz, da certeza que não vou conseguir e sobretudo o medo, o terrível e desolador medo, do que vão pensar quando perceberem que não sou capaz nem consigo, quando perceberem que, afinal, não valia mesmo a pena! Um olhar mais atento da Tua parte ter-nos-ia evitado tudo isto. Porquê eu?
Creio que apenas encontrarei a resposta quando Te encontrar (encontrarei?) e, olhos nos olhos, tiver (terei?) a ousadia de Te perguntar (perguntarei?) porquê eu?
20170626
Não me recordo de um único dia de aniversário feliz até me casar. Dado o meu espírito reservado, sonhador e solitário - que ainda hoje se mantém, para surpresa dos que me conhecem da superfície - os meus pais sempre pensaram que eu não ligava nenhuma a isso, que era feliz com e no meu mundo e que por isso não precisava de festa de aniversário para nada. Daí até se esquecerem que eu faço anos foi um pulo - o que se mantém até hoje, a não ser que sejam convidados para a minha festa - e eu habituei-me a passar exteriormente o meu aniversário como se fosse um outro dia qualquer. Interiormente, ficava felicíssimo quando alguém se lembrava que aquele era o meu dia.
Quando me casei, a Isabel fez de tudo para alterar a situação. Com alguma resistência da minha parte, confesso. Quando nasceram os filhos,a coisa ganhou um outro cariz, muito mais agradável, e agora é verdadeiramente um dia especial. E a Isabel empenha-se fortemente para que assim aconteça!
Quando vim trabalhar para o CNSR, o paradigma alterou-se ainda mais. No meu aniversário recebo sempre imensas mensagens nas redes sociais, no telemóvel, e até telefonemas atendo - eu que nunca atendo telefonemas! Recordo amigos e conversas e momentos e terraços e caminhadas e fico mesmo feliz pela oportunidade de os poder recordar. O meu dia de aniversário ganha assim uma espécie de balanço de vida, recheado de memórias de pessoas fabulosas, de vidas fabulosas que, malgré tout, me fazem estar aqui, hoje, como estou aqui, hoje. E isso é uma enorme constatação de felicidade. E gratidão.
Provavelmente esperaria que aos 51 estas coisas me fossem um bocadinho mais indiferentes, ou menos importantes. Não são. Conservo ainda a alegria de pensar que alguém, pelo menos neste dia, me dedica um bocadinho do seu dia para me enviar os parabéns. E que, pelo menos nos instantes em que o faz, recorda um pedacinho das nossas vidas em comum. Que, de alguma forma. justifica o trabalho de querer viver esse dia comigo. E isso é, verdadeiramente, uma Graça!
Quando me casei, a Isabel fez de tudo para alterar a situação. Com alguma resistência da minha parte, confesso. Quando nasceram os filhos,a coisa ganhou um outro cariz, muito mais agradável, e agora é verdadeiramente um dia especial. E a Isabel empenha-se fortemente para que assim aconteça!
Quando vim trabalhar para o CNSR, o paradigma alterou-se ainda mais. No meu aniversário recebo sempre imensas mensagens nas redes sociais, no telemóvel, e até telefonemas atendo - eu que nunca atendo telefonemas! Recordo amigos e conversas e momentos e terraços e caminhadas e fico mesmo feliz pela oportunidade de os poder recordar. O meu dia de aniversário ganha assim uma espécie de balanço de vida, recheado de memórias de pessoas fabulosas, de vidas fabulosas que, malgré tout, me fazem estar aqui, hoje, como estou aqui, hoje. E isso é uma enorme constatação de felicidade. E gratidão.
Provavelmente esperaria que aos 51 estas coisas me fossem um bocadinho mais indiferentes, ou menos importantes. Não são. Conservo ainda a alegria de pensar que alguém, pelo menos neste dia, me dedica um bocadinho do seu dia para me enviar os parabéns. E que, pelo menos nos instantes em que o faz, recorda um pedacinho das nossas vidas em comum. Que, de alguma forma. justifica o trabalho de querer viver esse dia comigo. E isso é, verdadeiramente, uma Graça!
20170619
A dor, particularmente a dor alheia, deixa-me sempre sem palavras. Em silêncio profundo. Nada há que eu possa dizer que consiga, ainda que brevemente suavizar a dor. Esse silêncio, nessas alturas, é sempre orante. Pode ser composto de interrogações, de incredulidade, porventura até de alguma revolta, mas é sempre dialogante com o meu Deus. que é o único interlocutor que me poderá ajudar a descobrir, eventualmente, algum sentido para o que, aos meus olhos, é completamente desprovido de sentido.
20170608
Ainda ontem comentava, a propósito do que dissera um amigo, que me vou apercebendo da tendência de falarmos sobre aquilo que nos é mais importante. A pessoa em causa é um tanto ou quanto intempestiva na sua abordagem aos outros. Como tenho tido o privilégio de trabalhar com ele mais intensivamente em vários projetos, tenho-me vindo a aperceber da sua necessidade de, nos seus momentos formativos, apelar ao cuidado que devemos ter na forma como lidamos com as pessoas que fazem parte do nosso quotidiano. Não o conhecesse como conheço e pensaria que ele faria um exercício de hipocrisia ao aconselhar aquilo de que ele próprio mais necessita. Mas na realidade eu sei que ele refere justamente aquilo que é mais importante para si próprio, e que ele sabe que não consegue alcançar com facilidade.
Ainda esta semana, enquanto o escutava, constatava que eu próprio faço isso com muita facilidade. Alguns dos conselhos que vou dando ser-me-iam muito úteis se eu me escutasse devidamente quando os deito da boca para fora. A história do sol na eira e chuva no nabal, da importância de nos conhecermos bem para podermos discernir os nossos dons e os colocar ao serviço dos outros, o valor do silêncio e da serenidade interior, tudo isso são coisas que eu digo com alguma frequência, mesmo precisando delas com a máxima urgência. Por outro lado, talvez os refira justamente porque tenho consciência de como me fazem falta, de como são importantes e difíceis de alcançar, numa forma atabalhoada de lhes dizer "não façam como eu senão ficam assim como sou".
20170607
Disseram-me, recentemente, que não sei ser amado. Provavelmente, será uma das minhas maiores verdades. O normal em mim é sentir-me mais vezes resgatado que amado. Mesmo nas maiores de amor que as pessoas na minha vida me vão proporcionando, o que fica, quase sempre, é gratidão. Por me irem buscar ao fundo do poço, por me fazerem voltar a ver a luz, por impedirem de permanecer na escuridão.
Ontem, numa das minhas bocas de mim próprio mais comummente utilizadas, disse que era um rafeiro. De imediato me assaltaram memórias de conversas de cães e de personalidades e de desmontagens e desmistificações que me acompanharam quase a vida toda. Não sei se alguma vez conseguirei resolver essa amálgama de memórias, de convicções, de fantasias, de discursos interiores que eu constantemente invento para conseguir encaixar em qualquer coisa. Mesmo nos meus momentos de serenidade interior, esse discurso dificilmente dura mais que quinze dias e lá tenho eu que voltar ao princípio, aos questionamentos, aos espelhos, ao desvio do olhar e à construção de um outro olhar que me seja mais suportável.
Não sei se, na verdade, alguma vez saberei ser amado. Se calhar isso acontecerá quando eu conseguir ter um outro olhar, mais claro, mais límpido, sobre mim. Numa outra vida!
20170605
Ainda acho incrível quando descubro - e carrego comigo esta ifantilidade de descobrir a mesma coisa como se fosse sempre a primeira vez - que algumas das pseudosabedorias que deito pela boca fora me seriam preciosas se tivesse a clarividência de as aplicar em mim próprio. É como se eu primasse por dar aos outros os conselhos de que mais preciso... e aos quais permaneço surdo.
Aquela gasta máxima de olha para o que eu digo não olhes para o que eu faço aplica-se a mim como uma luva. Como se o que sai de mim, dito ou escrito, saísse verdadeiramente de outra pessoa que não eu. Um alter ego, ou um grilinho falante que me soprasse as coisas ao ouvido.
Não me orgulho nada desta permanente incongruência, que me trouxe desde sempre mais problemas que soluções. A autenticidade do que vou sendo em cada um desses contraditórios momentos serve-me de fraco consolo, na realidade. O que sou, apenas me serve se o for também para os outros, e isso quase sempre é uma tarefa que não consigo desempenhar tão bem quanto necessitaria... e muito menos do que gostaria.
Esta é uma guerra antiga, com batalhas ganhas e perdidas, mas que sobretudo acarreta algum sofrimento e muito cansaço. Volta e meia desisto dela. Rendo-me a mim próprio, ao cansaço e ao desgosto, entrego as armas, e o que mais me apetece é ir para uma ilha deserta onde apenas eu e os meus eus contem, numa tentativa de vivermos em paz. Depois, algo ou alguém me acorda. E tudo recomeça. Do princípio. Ou como se fosse do princípio, porque a vida tem apenas um princípio, tudo o mais são recomeços. Com história(s). Com mágoa(s). Com esperança(s).
20170604
Eu sou católico. Não quero nem saber se sou um bom ou mau católico, na medida em que essas são formas de avaliar quem é mais ou menos, e eu acredito que na Igreja em que vivo e acredito esse tipo de avaliação ou julgamento não deve ter lugar. Eu sou católico. Não nasci uma família católica mas a vida encarregou-se de me dar a Igreja a descobrir e a possibilidade de a escolher. Poderia ter escolhido apenas Jesus - e não seria em nada menos por isso - poderia ter escolhido qualquer forma de protestantismo mas, depois de estudar as várias opções, escolhi a Igreja Católica como família à qual gostaria de pertencer. E pertenço!
Não sei se sou um bom católico. Como referi, não me interessa grande coisa. Assim como não me interessa se qualquer pessoa é ou não boa católica. Ou boa cristã. Ou boa muçulmana. Ou boa ateia. Quanto muito, interessa-me se é boa pessoa. Nunca esquecendo no entanto que todos nós temos os nossos momentos, bons e maus, e as nossas fases, boas e más, e a nossa vida interior, que normalmente permanece escondida aos olhares alheios e apenas a nós e a Deus diz respeito. Vou conhecendo o que diz a Igreja, o que escreve, diz e faz o Papa e os bispos e os padres a quem reconheço alguma sapiência, concorde ou não com ela. Vou lendo as escrituras e os documentos emanados pela Igreja, central ou local. Vou lendo o que escrevem os teólogos, encartados ou não, e, sobretudo, vou bebendo da imensidão de sabedoria que tenho o privilégio de partilhar daqueles com quem trabalho todos os dias. De todos eles recolho, analiso, guardo o que é de guardar, e tento deixar que impregnem a minha vida, o meu quotidiano, enriquecendo-o.
Nunca tive por hábito endeusar pessoas. Alguns dizem-me que será por desencanto mas eu acredito que será o oposto: são tantas as pessoas cujos gestos simples me encantam todos os dias que tenho dificuldade em enaltecer alguém apenas porque é mais conhecido por todos. É que eu não acredito nada em dons especiais, especialmente distribuídos pelo Espírito Santo sobre meia dúzia de eleitos, justamente porque para o Pai todos somos especiais e nenhum de nós está acima de qualquer outro de nós. Ou abaixo. E todos somos capazes de boas e más respostas ao Seu chamamento, consoante a nossa vontade e disponibilidade, devidamente condimentadas pelas nossas circunstâncias, e todos nós somos capazes de boas e más coisas, de boas e más palavras, de boas e más atitudes. Somos filhos, não somos deuses.
Naturalmente, não concordo nem gosto de tudo o que a Igreja diz ou defende. A Igreja que amo e na qual vivo permite-me que eu seja eu, exige que eu seja eu, ainda que isso dê a ambos mais trabalho, mais dúvidas, mais luta e, eventualmente, mais desgostos. É a mesma liberdade interior que eu transmiti aos meus filhos. Sabe Deus que seria mais fácil que eles fizessem o que eu quero quando eu quero mas sabemos todos que todos seríamos infinitamente menos se isso acontecesse. E quem ama quer sempre o mais, nunca o menos. Ainda que doa.
Eu sou católico. Ainda que seja frequente encontrar mais Igreja fora das igrejas que dentro delas. Ainda que sinta demasiadas vezes que complicamos as coisas ao ponto de quase escorraçarmos as pessoas. Ainda que no seu seio testemunhe, longe e perto de mim, lutas pelo poder que nada têm a ver com a Igreja de Jesus.
Mas tudo isso é largamente compensado quando estamos, à volta de uma mesa, a comer do mesmo pão e a beber do mesmo vinho. Aí, no meio de gargalhadas e conversas e discussões, onde todas as diferenças dão lugar à comunhão. Por vezes caio na tentação de acreditar que a vida de todos os dias deveria beber da Igreja. A Mesa, na partilha do pão e do vinho, recorda-me que a Igreja de Jesus partiu das coisas simples da vida de todos os dias! Foi aí que Deus escolheu habitar. Todos os dias. Em e com cada um de nós.
20170601
É antiguinha, a foto. Mas podia não ser. Seria exatamente a mesma coisa. Até poderia ser uma foto de bebés, que não mudaria nada. Ainda há pouco tempo disse à minha mais velha, que é já autónoma, já vive fora de casa - mas nunca fora de nós - que, ainda que tenha 90 anos, será sempre minha filha.
No entanto, não são bebés, os filhos que tenho. São pessoas. De corpo inteiro. Adultos. Com uma extraordinária capacidade de pensar e decidir e fazer escolhas e partilhar e defender as escolhas que fizeram. Não sei se será por terem sido habituados, desde pequenos, a pensar e a escolher. Não sei se será por termos privilegiado o que privilegiamos na sua formação: a educação, a consciência, a pertença, a abertura aos outros, o transcendente. Naturalmente, não gostamos de todas as suas decisões, de todas as suas escolhas, de todas as suas atitudes. Naturalmente, continuamos a discutir, abertamente, o que somos e o que fazemos. E a dizer quando não gostamos. E a aceitar quando não gostamos. E a apoiar, apesar de não gostarmos.
Não é raro descobrir nos meus filhos uma maturidade que por vezes me falta. Sempre que isso acontece, sinto o maior dos orgulhos no imenso que eles são. Apesar de mim.
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Bambora
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