Gostava mais de gente que de pessoas.

Entretinha-se a imaginar a vida daqueles que por ele se cruzavam na rua, a imaginá-los a chegar a casa, a pousar as compras em cima da mesa da cozinha, a esticar os pés no sofá, a deixar a mochila espalhada em pleno corredor. Entretinha-se a imaginar os seus diálogos, os seus silêncios, a mútua ignorância a que mutuamente se devotavam, a confusão à volta da mesa, a reverência atenta em torno das notícias e dos filmes e dos jogos e das novelas com que se imolavam todos os dias no altar da televisão. Entretinha-se a imaginar os sabores que habitariam, fugazmente, em cima das suas mesas, o sal em excesso, a abundância das especiarias, o insosso que vinha agarrado à idade, a carne excessivamente cozida, o peixe a saber a mar... ou a esgoto. Entretinha-se a imaginar o momento de deitar, o chamego dos corpos, o rendimento do cansaço, a indiferença do tempo, a solidão acompanhada que lia todos os dias, ao longe, em tantos dos seus olhares.

Sem dúvida, gostava mais de gente que de pessoas.

Detestava que se aproximassem, os odores, a inquisição no olhar, as tentativas constantes e insidiosas de conversão aos seus ideais, aos seus valores, à sua forma de vida, que apregoavam com a certeza apenas comparável à dúvida que em privado os atormentava. Ainda por cima insistiam, insistiam sempre. Na conversa de chaha, no olhar mortiço, no sorriso postiço, nas dádivas do que lhes sobrava, no consolo privado da alma que aquela insistência lhes trazia. Odiava-lhes a sobranceria do olhar, a piedade do olhar, o desprezo do olhar, a indiferença do olhar. Preferia-os ver longe, ao de longe, sem o confronto do olhar.

Definitivamente gostava muito de gente. Detestava pessoas.

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