Há pessoas que habitam no momentos que nos habitam. Pessoas que a vida mais tarde desmente dentro de nós mas que nunca nos deixamos desabitar. Recordamos conversas e olhares e risos e choros e caminhos calcorreados em comum sem permitir que nada conspurque essa memória. Há nisto uma espécie de inocência, um agarrar ao que é bom dentro de cada um e que, pelo menos naquele momento, se deixou desvelar. Um desvelo que é tão mais significativo quanto mais raro, porque nos concede o privilégio da memória da alma antes de.
Um dos enormes privilégios de trabalhar com miúdos é que os conhecemos (quase) antes de tudo. Mesmo os do Raiz, que nos chegam às mãos muitas vezes já marcados pelos infortúnios que deveriam ser exclusivos dos adultos, estão ainda no seu estado puro de irreverência e rebeldia, com uma doçura que, quando conquistada, é absolutamente desarmante! Depois, como frequentemente acontece, quando nos vêm visitar já depois de muita vida vivida e marcada pela marginalidade, o seu olhar veste-se ainda daquela inocência agora apenas recordada nos breves momentos que estamos juntos. Essa alegria, ainda que meramente momentânea, acende em nós uma centelha de fraco consolo: pelo menos connosco foram felizes em determinada altura. E de esperança: talvez, quando tiverem filhos, lhes queiram proporcionar essas boas memórias reatando assim os laços connosco.
Pouco consigo recordar da minha vida sem esta mútua construção de boas memórias.
Deve ser por isso que sou tão e tão bem habitado.

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