20181227






Recentemente, em resultado de uma proposta que me fizeram à qual acedi mais curioso que convicto, fiz uma série de regressões a alguns acontecimentos importantes da minha vida. Na verdade, a única coisa nova para mim nesse processo foi a condução exterior, porque revisitar-me, procurar-me, desmistificar-me, é algo que faço com alguma frequência e nem sempre com bons resultados. Talvez tenha sido por causa disso que tudo aquilo deu em nada. Talvez porque não visitasse nada de novo, talvez porque, nesta fase da minha vida, nada haja no meu passado que considere assim tão importante mudar, talvez porque pretenda continuar neste processo de aceitação do que sou tal como sou, porque é assim que me apresentarei ao meu Deus.

Tudo isto tinha como pano de fundo a minha gaguez e a minha vontade de a "curar". Acontece que nem acreditava numa possível cura nem sentia grande necessidade de ela acontecer na minha vida. Gaguejar faz parte do que sou e, se pudesse alterar alguma coisa de essencial em mim, gaguejar dificilmente estaria no top ten. Ao formular isto em voz alta não sei quem ficou mais surpreendido, se eu se o psicoterapeuta. Mas é verdade. Se eu pudesse alterar algo em mim talvez escolhesse a permanente dependência afetiva, ou as explosões de mau feitio, ou me consederia uma maior proactividade, maior clareza de espírito, substituir algumas perguntas por respostas mais consolidadas, maior serenidade, muito maior sabedoria... tanta coisa!

Contudo, parece-me interessante a possibilidade de revisitar pessoas e momentos e palavras e atitudes. Sobretudo aquelas que provocaram alguma dor. Sobretudo em alguém que não a mim. Claro que o passado já passou e nada há a fazer para remediar a situação. Mas se essa revisita me permitir acautelar futuras dores, sobretudo alheias, creio que terá valido a pena.

20181126



Acho sempre extraordinário quando consigo desmontar algumas das minhas ideias feitas. Tenho uma larga tendência para deitar pela boca fora algumas - para mim - verdades absolutas que a vida se encarrega de desmoronar. Uma delas é que a idade não é um fator importante para mim. E depois olho para o que escrevo e percebo que este tema anda perto da obsessão.

No entanto, há verdades que ainda o são e sempre o foram. A procura de mim próprio, por entre o imenso emaranhado do que eu sou, será, porventura, a minha maior verdade. Agora com uma nova roupagem, fruto de uma certa pacificação que a idade me foi trazendo, mas ainda assim, verdade.

Ontem, na homilia, o Padre Rosas falava acerca disto, da verdade, da verdade de cada um, da conveniente verdade de cada um que para tudo encontra a mais conveniente justificação. E de como isso nos afasta de nós próprios. Acontece-me muitas vezes nas suas homilias escutar apenas uma infinitésima parte delas, porque me remetem para esse tal emaranhado de mim. E ontem vagueei logo pelas minhas verdades, aquelas que conheço bem e assumo, mas também aquelas que, convenientemente, manipulo, para conseguir viver comigo. Não são muitas, já. Mas para o fim fica sempre aquilo que mais nos custa deixar, a perda mais profunda, a dor mais firme e duradoura.

Creio que isso acontecerá com todos, que todos têm lixo que preferem varrer para debaixo do tapete e esconder aos olhares alheios, mantendo aparentemente limpa a casa. Porventura alguns viverão melhor com isso que outros. Eu sei que já vivi. Mas agora, que ando em processo de limpeza da vida e da alma há já alguns anos - pela primeira vez com sucesso - sei bem o que tenho ainda de varrer, sei bem onde está cada pedacinho que precisa ser removido, resolvido, pacificado. E tenho-o feito. Com a arte, a paciência e a sabedoria profunda do Pateta. Nunca sem alguma dor. Que, no entanto, é largamente compensada pela noite com a cabeça em cima da almofada. Em paz.

20181122


Ali estava eu, diante das 4 pessoas que tinha diante de mim para cantar, a pensar na mais de dúzia que devia lá estar e não estava. E dei comigo a pensar coo dirigir é um trabalho muito solitário. Qualquer que seja a atividade. Qualquer que seja a equipa. Vesti o sorriso, levantei os braços, e começamos a cantar.

Houve fases na minha vida em que não dirigia nada. Era um excelente nº dois mas um péssimo nº 1. Talvez porque nessa altura a minha preocupação em ser gostado se sobrepunha a tudo o mais. A eficácia, a responsabilidade, o trabalho, eram levados a sério mas sempre sob aquele olhar inquisidor: espero que gostem de mim". Á medida que o tempo passa isso vai deixando de ser tão importante. Importa mesmo é que os meus gostem de mim. Sobretudo a longo prazo porque, como pai, também não posso ficar à espera que eles fiquem contentes quando os impeço de fazer algumas coisas. Os outros também são importantes. Muito importantes. Mas já não são decisivos.

Á medida que vou dirigindo - seja o coro, seja as formações, seja as equipas que vou dirigindo - vou percebendo que o respeito é mais importante. Podem não gostar das minhas decisões mas, se forem escutados, se estiverem a par de todas as razões, sobretudo se forem envolvidos nas tomadas de decisões, conseguem respeitá-las, apesar de não gostarem delas. Não gostarão tanto de mim, não o espero, pelo menos, mas espero a lealdade que o respeito pelo trabalho comum merece a todos nós.

Mas dirigir pessoas é uma tarefa que, em determinada altura, implica sempre a solidão da decisão. Posso escutar todas as pessoas, levar em consideração a sua opinião, a sua visão sobre as coisas, mas, na altura da decisão, estou sempre só. Porque apenas assim poderei assumir a responsabilidade.

Talvez tenha sido por causa disso que Jesus se recolhia sempre que tinha que tomar uma decisão importante. Fugia da multidão para pensar, pra escolher, para decidir e entregar a Sua decisão nas mãos do Pai. Ainda me falta isso. Já fujo da multidão, já penso, já decido, mas esqueço-me ainda muitas vezes de confiar a minha decisão ao Pai.

Espero que seja o próximo passo.

20181112





Eu gosto dos últimos. Sempre gostei. Talvez porque sejam os meus, o meu meio, aquele onde me situo com maior facilidade, aquele onde eu posso ser eu de peito aberto. Nos últimos existe apenas a realidade, quase sempre de forma bruta, pouco trabalhada, primária, e isso confere alguma tranquilidade. Com os últimos tanto posso receber um abraço como um banano, vindos do nada. Há ali autenticidade. Nos gestos, nas palavraa, nas ações. Gostas, gostas; não gostas, adiante que atrás vem gente. Não é uma questão de gosto, portanto. Talvez de inquietação. Talvez porque quando a balança pende demasiado para um lado eu tenda a olhar para o outro lado. Talvez porque muitas vezes prefiro olhar o olhar das pessoas quando olham um acontecimento que olhar o acontecimento em si. A verdade é que ao longo do fim de semana me dei a perguntar quem são, hoje, os últimos. Sobretudo para nós, cristãos, católicos. Quem são hoje os últimos? Pensamos imediatamente nos que atravessam o mediterrâneo tendo a vida por um fio, pensamos naqueles com que nos cruzamos a dormir nas soleiras das portas, eu penso logo nos miúdos, nos meus miúdos do RAIZ. Esses são os que me vêm à cabeça. Mas, armado em advogado do diabo, dei comigo a pensar nos outros, naqueles em quem normalmente eu não penso quando penso nos últimos. Nos trumps desta vida que fecham fronteiras, que vivem à custa dos outros, que exploram os outros, que conhecem as aparências e nelas chafurdam. Nos Patinhas desta vida para quem a felicidade se encontra nas notas e cotações da bolsa. E dei comigo a perguntar-me se aí habita Deus. E dei comigo a constatar que, claro, aí também habita Deus. E dei comigo a perceber que ser-me-ia infinitamente mais difícil ajudá-los a descobrir Deus que àqueles que de tudo necessitam. E concluí que também esses fazem parte, com certeza, dos últimos. Que merecem o nosso olhar. Apesar de tudo.

20181019







Hoje, enquanto caminhávamos numa das mais belas manhãs deste dia (um dia cheio pode ter muitas manhãs) dei comigo a pensar e a partilhar esta sensação que tenho nos últimos tempos que tudo na minha vida confluiu para que tudo seja exatamente como é. É uma lapalissada, certamente, mas eu esqueço-me desta verdade demasiadas vezes. Quando restropetivo tendo a desvalorizar alguns acontecimentos - normalmente os dolorosos ou, pior que isso, os vergonhosos - como se a minha vida pudesse ser o que é em cada momento sem a aprendizagem que a dor e a vergonha me ensinam.
Hoje de manhã - ultimamente, na verdade -sentia-me completo, inteiro, entrado nos eixos, dando a cada coisa o seu devido valor, dando a cada momento o seu tempo, dando à vida o seu espaço próprio, natural, permitindo-me usufruir por inteiro de cada pedacinho seu. Como se estivesse a sugar a vida até ao tutano, utilizando uma das minhas referências cinematográficas.
Talvez envelhecer seja isto. Espero que envelhecer seja isto. Sentir-me sereno. Ajustado. Inteiro. Se assim for, nada há a temer.

20181015



Sempre que leio a notícia da morte de alguém famoso sinto a mesma inquietação: como terá morrido? Como que vida interior terá morrido? Com que sensação terá morrido? Que medos, receios, dúvidas ou certezas o assaltaram no exato momento em que soube que morria?
Poderá parecer, mas esta inevitável inquietação nada tem de mórbido. De há uns anos para cá que a morte tem sido uma companhia tão natural e quotidiana como a própria vida. E isso não me impede de viver e aproveitar a vida, pelo contrário: põe todas as coisas sob um novo olhar, sob uma nova perspetiva. Depois, a escolha é minha, de permitir ou não que a morte interfira na vida ou, sendo inevitável que isso aconteça, em que medida permito que a morte se intrometa na vida.
Saber-me finito e preocupar-me memória tem, efetivamente, um determinado peso no que sou, digo e faço. Se àquela finitude juntar então a infinitude de Filho - que acredito que sou - percebo que tudo ganha uma matiz diferente, um outro peso, uma outra importância. Percebo que há preocupações que são vãs, que há alegrias que são vãs, e que todas as vitórias e derrotas são ocasionais, momentâneas, irrisórias no imenso que somos, ainda que potencialmente devastadoras na pequenez que julgamos ser.
A extraordinária facilidade e efetividade com que penso no Américo, no Lino, na Carmen, no meu sogro, na Teta, em tantos outros que me morreram mas ainda assim em tantos momentos permanecem vivos em mim, permite-me acalentar a esperança que o mesmo aconteça comigo nos meus. E quando acontecer, as coisas pequeninas da vida que tanto me envergonham serão isso mesmo, coisas pequeninas, esquecidas ou recordadas em tom jocoso, porque as memórias grandes e importantes ficam agarradas ao que é verdadeiramente grande e importante, significativo, determinante no que foi uma vida.

20180926


Nós temos uma expressão: ir de fátima a nazaré. Estávamos nos primórdios da nossa vida, em fátima, num dia de calor sufocante, e eu tive que lhe pegar literalmente ao colo, enfiá-la quase à força no carro e levar-nos à nazaré, onde pudemos respirar um outro ar. Acontece-nos isso, por vezes. Estamos mal, tão mal que nem nos apercebemos que estamos mal, tão mal que nos incomoda sequer a perspetiva de nos mexermos, tão mal que precisamos que nos peguem ao colo, tão mal que a última coisa que nos ocorre é deixarmo-nos amar. Aconteceram-nos imensas vezes, pegamo-nos mutuamente, cuidamo-nos mutuamente, amamo-nos mutuamente. Nem sempre de mútuo acordo. Sempre com o mesmo resultado: sentirmo-nos amados e cuidados. E nada há na vida melhor que sentirmo-nos amados e cuidados.
Ontem, no final de um longo e algo penoso dia de trabalho, olhei-a e vi o seu olhar cansado. "Vamos namorar". Descemos alguns metros até ao mar, o nosso mar, um dos lugares que testemunham a nossa vida de muitas vidas, o nosso caminho de muitas caminhadas, as nossas lágrimas de ainda maiores sorrisos. E eu sabia que iria acontecer o que aconteceu: voltei a ver o seu olhar de gaiata, feliz, apaixonada, a louvar a Deus e à vida, por termos ido de novo de fátima a nazaré. Eu conhecia o desfecho, antecipara-o e, deliciado, confirmava-o agora no seu olhar, sentia-o no seu abraço forte, no beijo prolongado.
Há, no caminho feito, milhares de histórias feitas de contrastes, de estados de espírito diferentes, alternados, repentinos ou repetidos, intempestivos ou antecipados, programados, mas sempre, sempre, tidos como novos, sentidos como novos, vividos como novos, num renovar constante que faz determinadas coisas sempre novas. Como a sua alegria belíssima, genuína, infantil, à medida que caminha sofregamente sobre os seixos da praia para molhar os pés na água gelada. Haveremos de ter 90 anos e, para mim, nessa cena, ver-te-ei sempre menina a caminhar, feliz,  em direção ao mar!

20180912


Quem me conhece mais de perto ouviu já uma expressão que uso algumas vezes: sou um barco com motor fora de bordo. Não fora isso e, quando muito, seria um daqueles barcos a remos, de madeira gasta e envelhecida, repintados inúmeras vezes para turista ver, mas a que nem a brutal força braçal os faz sair da cepa torta. Ou então, o que é ainda mais provável, um daqueles barcos cuja existência se confina às margens, se resume ao casco meio desfeito, quase irreconhecível, sem pintura que lhe valha, de tanto levar, sem apelo nem agravo, com o efeito das marés desta e de outras vidas.
Várias vezes na vida julguei ser veleiro ágil e esguio, e cometi a loucura de enfrentar ventos e marés, orgulhosa e vaidosamente ostentando as minhas velas enfunadas ao vento. A vertigem da velocidade provocada pelo vento a favor inebriou-me sempre e sempre teve o mesmo destino: esse mesmo vento a favor, que antes me provocara a ilusão do voo, é o mesmo que me rasga as velas, me impede de avançar e, afundando-me no mar, me torna âncora de mim mesmo. E fico lá, parado, em eterna maresia, impotentemente indiferente, indiferentemente impotente, alheio à vida que vai passando ao largo.
Nessas alturas, invariavelmente, chega o meu motor de fora de bordo. Desprezando ventos e marés, olha amorosamente para o que, ignorando as evidências, acredita que sou, e me leva de volta ao cais onde, no lado oculto dos holofotes, me restaura cuidadosamente, por vezes penosamente, mas sem nunca deixar de acreditar no que posso ser, no que sou chamado a ser, fazendo-me acreditar voltar a ser. Ainda que seja para, de novo, ostentar vaidosamente as minhas velas ao vento.
O melhor de mim chegou-me por seu intermédio. A consolidação da fé, a descoberta da família, a alegria do (des)empenho, a necessidade de ser fazendo, tudo me foi apresentado, tudo me foi introduzido, tudo me foi acalentado em doca seca, pedaço a pedaço, colando aqui e aparafusando acolá, fazendo e refazendo, pintando e repintando, por e com amor, imenso, incontável, inacreditável amor, no cais da nossa vida comum. Companheira de toda a minha vida que valeu a pena ser vivida, é ela o meu motor, o meu grilo falante, a minha consciência. É ela quem me cuida, quem me transforma, quem me leva a acreditar que posso ser ser quem jamais sonhei ser.
Vê-la, ontem, num belíssimo final de tarde, num dos nossos lugares de eleição, a enfrentar o mar que tanto ama, fez-me louvar a Deus por ser tão e tão verdadeiramente amado por alguém assim.

20180905



Esta data, 5 de setembro, é, hoje, muito especial para mim. E para todos os que me amam.

Na minha vida, como acredito que em todas as vidas, há momentos de viragem, momentos decisivos, que decorrem de decisões tomadas, no meu caso quase sempre por impulso, por arder de coração. Há treze anos foi isso que aconteceu, começava, efetivamente, uma nova vida: fui para o Colégio.
Vinha de uma profissão que me devastara a todos os níveis. Em poucos anos passara do sonho ao pesadelo, com repercussões muito sérias, que ainda hoje se vão revelando, como a lava que nunca descansa sob a crosta. Naquelas que são as mais importantes dimensões da minha vida: a minha família, a minha fé e, naturalmente, eu próprio, nada ficou por revolver, nada ficou incólume, nada permaneceu como era antes. Por minha causa, por minha culpa, todos conhecemos a dor do fracasso. Sei o que é acordar, depois de um pesadelo, e desejar voltar a adormecer para não ter que viver o pesadelo da realidade. E sei o que é desejar nunca mais ter que acordar.
Foi naquele estado de profunda devastação que fui acolhido, mais que na minha nova profissão, no meu novo lugar. Aí, paulatinamente, com a ajuda de imensos, fui recuperando o que perdera, fui serenando, fui descobrindo o que nunca soubera meu. Passei do pesadelo ao sonho, do detestar as tardes de domingo ao acordar feliz da segunda feira, voltei a cantar de manhã, a sair feliz de casa, a regressar ainda mais feliz a casa. Renasci. Como pessoa, como homem, como pai, como marido, como profissional, como amigo... como cristão.
Não acredito que sejamos apenas aquilo que fazemos. Não é a profissão que nos define. Quando calha bem e temos muita sorte, se calhar somos nós que definimos um bocadinho a profissão. Mas para que isso aconteça temos necessariamente que estar de bem com Deus, com os que nos amam, com os que nos rodeiam...  connosco próprios, que, no meu caso, é sempre a última e a mais difícil das batalhas. Que jamais, teria sequer a capacidade ou a coragem de travar sozinho.
O Colégio, o Instituto, as pessoas que aí dedicam os seus dias, são, também por isso, parte da família. Sabemos todos, cá em casa, como nos é importante, como nos serviu de impulsionador, como nos serve de plataforma para que, hoje, possamos com verdade dizer que somos felizes. Não é a base sobre a qual assenta a nossa felicidade, que essa tem outros nomes: partilha, cumplicidade, reconhecimento, caminho, fé, família; mas foi, é, e acredito que será, impulsionadora de vida, da nossa vida, do nosso presente e futuro, uma bênção que Deus colocou no nosso caminho.
Hoje é um dia importante para mim. E para todos nós, cá de casa. 

20180814


Sinto muitas vezes que o meu caminho é mais feito de dessincronias que de encontros. Apesar de serem imensos os encontros. Talvez seja como se procurasse sempre e raramente encontrasse, pelo menos de forma definitiva, ou que então o definitivo acabasse inevitavelmente por se transformar em efémero, permanecendo no entanto a vastidão da memória.

Há momentos, mais que fases, momentos, em que a sintonia me invade a alma. Como se estivesse tudo no seu lugar, como se o universo conspirasse para que as coisas, todas as coisas, ocupassem o lugar que lhes estava destinado dentro de mim. As dores são lidas como aprendizagens, as saudades como boas memórias, os medos como desafios, os trabalhos como projetos de felicidade. Tudo flui, tudo conflui assente na argamassa do amor profundo.

Nestas alturas apetece-me gravar a tranquilidade, a pacificação, a serenidade, a sabedoria do viver para que a possa usar quando lhe sentir a falta. Alimento em mim, permanentemente, a ilusão que agora é que é, que o equilíbrio que me habita veio de Toyota, para ficar. Talvez permaneça. Talvez não. Para já, permanece o agradecimento a Deus, à Vida, e aos que me habitam, esta íntima serenidade que julgava arredada de mim.

20180808



Junto de mim, ao meu lado, permanecem aqueles que, apesar de mim ou por mim, escolhem ficar, em cada um de todos os dias, pacientemente, por vezes até ao limite do desespero, como é próprio do amor enraizado nas entranhas. É desse amor que tudo brota. É a consciência da permanência desse amor que tudo permite.  Vivesse eu constantemente preocupado com o chão e jamais me permitiria voar. E como me é fundamental poder voar!
Há uns anos disseram-me que eu apenas sinto vontade de partir para poder voltar. E eu sei que mais importante que partir é este desejo constante de regressar, de me saber esperado, de me saber saudade, de me saber desejo, e de, em cada regresso, me sentir reacolhido de braços e coração escancarados. É certo que nunca sem uma boa luta, nunca na facilidade da indiferença, mas na exigência, na dura prova de quem quer sempre saber quem se ama, porque se ama, contrariando a dor de amar, mas se calhar preciso disso mas me saber imensamente amado
É nesta permanentemente periclitante certeza de amar e, sobretudo, de me sentir amado, que me encontro e à minha vida. É nesta ternura feita de pequenos almoços no silêncio de uma paisagem edénica, nesta pacatez das caminhadas onde tudo em nós conflui, neste testemunhar da vida que germina naqueles que são a nossa vida, é nesse imenso infinito, que eu sou.

E no fim de contas, no fim de cada um de todos os dias, com sorte no fim da vida, é este imenso que apenas importa. Porque é apenas este o imenso que me faz verdadeiramente feliz.


20180712



É uma treta dizer que o amor não precisa de recompensa. Claro que precisa. Quanto mais não seja da recompensa da imensidão de amar. Ou da preservação do amor próprio, que é a fronteira que define a bondade ou não de um amor. Porque amar também não é sempre bom. Nem ser amado é sempre bom. Se amar e ser amado fosse sempre bom, se fosse tudo cor de rosa, amar jamais implicaria arriscar, e se há risco nesta vida, ele encontra-se exacerbado quando se ama e se é amado.

No amor, nada é pele, tudo o que de importante acontece, é subcutâneo. Mesmo quando a pele inebria, ou sobretudo quando a pele inebria, é sob a pele que o turbilhão acontece. Porque se a pele sacia momentaneamente, esfomeia logo a seguir. Logo que o sangue esquenta, logo que o cérebro é irrigado e com ele a alma, e desperta em nós esta indómita vontade de estar com quem se ama. De viver com este amor. De viver para este amor. De respirar este amor, acordar com este amor, dormir com este amor, caminhar e trabalhar e sorrir e chorar como se apenas existisse este amor. Porque, quando se ama, este tudo é tudo. E o outro tudo é nada.

É uma treta dizer que o amor não precisa de recompensa. Claro que precisa. Precisa da imensidão de amar. 

20180701






Estava eu alguns metros acima do solo e, como de costume, comecei mentalmente a chamar-me de tudo. A subida já tinha sido penosa, demasiado penosa, e à vista de todos ainda por cima, e era agora tempo de tentar parar as tremeliquices no corpo todo, esquecer o medo, e avançar. Arvorismo, como outros ismos, não são mesmo para mim. nem sequer é o fator idade, mas o fator medo, mesmo: alturas e atividades radicais nunca foram a minha praia.

Mas isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é permitir que o medo me impeça de fazer. Já basta quando me impede de ser, o que acontece mais vezes que as que gostaria, mas tento sempre que o medo não me tolha. Era mesmo nisto que eu pensava enquanto subia, e era mesmo isto que lhes ouvia: eles, que momentos antes tinham dito que tinham medo, vieram a seguir a mim.

Há sempre uma enorme dose de loucura ao enfrentarmos os nossos medos. Não basta o medo em si , o termos que ultrapassar os nossos instintos de conservação e de proteção, e ainda temos a dúvida - nossa e dos outros - a fazer mossa. Passada a pica que leva à decisão de enfrentar, tudo o resto são dúvidas, que minam, que perturbam, que roubam a confiança. Arriscamos e as vozes dos outros não nos saem da cabeça. E como sabemos que essas vozes vêm sempre de quem nos ama, adquirem uma repercussão ainda maior. E, no entanto, ainda assim, por vezes avanço. Com vozes e tudo.

Eu arrisco muitas vezes. Imensas! Não tanto fisicamente, mas mentalmente. Saio muitas vezes da minha zona de conforto - que quase sempre em sei bem qual é - procuro outras, tentando fundamentalmente ir sendo mais. Já perdi imensas vezes, e coisas não pouco importantes, que me forçaram a refazer-me. Se de menino e de louco todos temos um pouco, eu tenho imenso. De ambos!

20180625


Mais a sério, mais a fundo, faço dois balanços por ano: um no final e outro a meio, por altura do meu aniversário. Eu gosto muito de balanços, de os fazer, de os avaliar, de analisar a minha situação, o caminho percorrido, o caminho perdido, o caminho escolhido percorrer, o que fui perdendo e ganhando, o que foi ficando para trás, para segundas núpcias, para uma outra vida!
Este é, inegavelmente, um exercício de memória. Não tanto do que foi feito, exatamente, mas do que fica do que foi feito, do que fica do que foi dito, do que fica daqueles com quem foi feito. E este foi um ano de muitas coisas, muitos acontecimentos completamente novos e renovados, de erros e recomeços, de renascimentos, de novas maneiras de fazer o que antes tinha sido feito de uma outra maneira. Este foi também ano de projetos, novos e renovados projetos, novos e renovados sonhos, novas e renovadas maneiras de sonhar o que sempre foi sonhado.
Chego à meia idade com essa sensação: que esta é, mesmo, uma meia idade. Já não sou novo e ainda não sou velho, tenho menos gente em casa e ainda não tenho mais gente em casa, já não tenho o pedal que tinha mas ainda não reduzi a azáfama. Esta é a altura do já mas ainda não. Por isso este refazer tão presente, tão constante.
No entanto, fazer o balanço não pode ser um exercício frívolo. Tem que servir para redefinir objetivos e sonhos e desejos e projetos. Por muito boas que as memórias sejam, são apenas isso, memórias, e vivi já o suficiente para perceber - por vezes a tremendo custo - que há caminhos que não voltarão a ser percorridos. Pelo menos, não da mesma maneira. Por isso, é arriscar avançar, passar a ponte, por muito que esta se nos afigure frágil, por muito que não consigamos descortinar o que estará do outro lado.
Viver é arriscar. Sempre foi arriscar. Um risco calculado. Que se transforma miraculosamente em meio risco quando sabemos, sobretudo, com quem vivemos. Sobretudo quando sabemos com quem caminhamos. Sobretudo quando nos apercebemos que quem nos acompanha, apesar de tudo, permanece, está, fica, não vai a lado nenhum, não quer ir a lado nenhum. O que torna a viagem uma outra viagem. Sempre sonhada. O que torna o sonho um outro sonho. Feito de recomeços. Constantes recomeços.  Feito de projetos. Novos e redesenhados projetos. Feito de futuros. Novos e apostados futuros. Porque tudo o que está para vir é futuro. Porque tudo o que está para vir é muito desejado e sonhado e amado. Antes ainda de ser.

20180621


Eu mesmo, por mim mesmo, para mim mesmo. Esta foi a conclusão do estudo de hoje. Simples. Eu, quando começo, continuo e acabo em mim. Só. Eu e Eu & Cª Lda. como se dizia antes.

Penso muitas vezes em mim, não como o diabo - não acredito no diabo mas na existência do mal - mas como alguém em quem o mal está sempre à espreita.

Eu vivo num limbo. Permanente. Provavelmente é o que acontecerá com a maioria das pessoas, eu não sou especial de corrida em coisa nenhuma e por isso não serei nesta, mas o que é facto é que eu vivo num limbo. Permanente. por isso deveria pensar cada passo, cuidadosamente, laboriosamente, dando tempo e espaço ao juízo que, embora vaga e preguiçosamente, ainda vou tendo. Não acontece. As decisões mais importantes, porventura mais decisivas, são sempre as menos fundamentadas. Tipo Lucky Luke: disparo primeiro e depois vê-se. Vivo, deixo-me viver, sigo um impulso, e depois, por vezes, muitas vezes, deito as mãos à cabeça. É, por isso, frequente, ver o diabo quando olho ao espelho. E o anjo, na verdade. Não só quando olho ao espelho, na verdade. Quando olho os outros também. Por vezes até no mesmo dia. Ora me parecem o diabo, ora me comovem até à medula com gestos de bondade que desmentem tudo o que lhes vira até então.

Creio que a questão é todos nós somos anjos e demónios. Todos nós, em determinada altura, sob determinadas condições, escolhemos, umas vezes bem, outras nem tanto, com consequências para nós e para os outros. Parece-me que isto é evidente e normal, ainda que fosse bem melhor se assim não fosse.

Por vezes posso dar a sensação que endeuso pessoas. Noutras, não que as desprezo, mas que me são indiferentes. Esta é, aliás, uma acusação que me é regularmente feita. Nenhuma delas corresponde à verdade. Ou talvez ambas correspondam à verdade. Porque a verdade é que dificilmente me agarro à imagem de alguém. Porque a verdade é que, sobretudo, acontece que essa imagem perdure no tempo. O tempo que, em mim, suaviza sempre o diabo dentro de nós e deixa que o anjo lhe tome o lugar. Eu, que muito dificilmente esqueço palavras, gestos e atitudes, tenho como que uma memória seletiva: de fora para dentro prevalecem os anjos; de dentro para fora, os demónios. Recordo sempre o bom que me foi feito e o mal que fiz. Sempre.
Talvez seja esta uma das raízes de eu viver a vida com permanente espanto. E maior gratidão.

20180619


Gosto muito de elefantes. Do seu porte, do seu olhar doce apesar do porte, da forma como se mexem, como escolhem morrer, da memória, que tradicionalmente se diz que têm. Se eu fosse apenas animal, gostaria de ser elefante. Já estaria a meio caminho. Talvez goste tanto deles porque gostaria de ser um deles.
Não sou de esquecer. Nunca fui. Muito menos de querer esquecer - quando caio nessa asneira mais não consigo que recordar constantemente o que tão forçosamente quero esquecer. Recordo gestos e atitudes e conversas que tive ou escutei desde que era menino. Quase de colo. Por vezes dizem-me que nós só conseguimos reter coisas na memória a partir de determinada idade, mas naquelas idas ao baú com os com os meus pais e irmãos eu recordo discussões ou acontecimentos que tiveram lugar quando eu era mesmo pequenito e eles ficam a olhar para mim. Recordo muito, e com muito quero dizer muitas coisas, muito presentes, muito vivas, como se tivessem sido ontem. Recordo coisas que não servem para nada, não têm utilidade nenhuma... a não ser serem um parte importante do que eu sou.
Então pessoas!
Há não muito tempo pensei no que gostaria de fazer se soubesse que iria morrer dentro de um prazo curto. Uma das coisas que faria, com toda a certeza, seria retomar conversas inacabadas ou mal entendidas ou pouco esclarecidas, conversas que ficaram a meio e deixando algum nível de ressentimento. Porque nestas coisas o tempo tem a mania de limar as arestas, fica como lastro o que eu disse que não deveria ter dito, o que eu fiz que não deveria ter feito, o que eu deixei por resolver e deveria ter ficado bem resolvido, independentemente das circunstâncias. Eu deveria ter visto, deveria ter pressentido, deveria ter sido mais comedido, deveria ter sido mais sábio. Sempre!
Naturalmente, muita gente me passou pela vida. Muitas conversas, muitas partilhas, muitos caminhos. Algumas dessa gente permanece, outra nem tanto. Vou vendo pelas redes sociais, vou sabendo por interpostas pessoas, vou-me alegrando e sofrendo em segunda mão. Nenhuma delas está esquecida. Nenhuma delas está nos escombros da memória. Todas elas, volta e meia, a pretexto de tudo e de coisa nenhuma, regressam.
Claro que nem todas são iguais, nem todas têm o mesmo peso, há graus diferentes de profundidade, há níveis diversos de intimidade, quase sempre ligados à densidade da alma, à intensidade de uma boa conversa aliada às circunstâncias em que aconteceu. Há céus especiais e paisagens especiais e momentos especiais e caminhos especiais e lugares especiais que me povoam ininterruptamente de forma silenciosa e silenciada. Céus e paisagens e caminhos e momentos que são o que são porque têm dentro deles a doce memória da vida bem vivida.
Ainda nestes dias conversávamos que, excetuando com os meus - e os meus são muito poucos - sou de fogachos com os outros. Como a minha alma não é um disco de computador, que posso varrer e arrumar tudo encastradinho, há espaços nunca preenchidos, há saltos na continuidade, feitos das tais conversas incabadas. O que nem é mau, na verdade. Mau seria se eu desse as pessoas por terminadas na minha vida. E isso nunca aconteceu. E espero que nunca aconteça! Porque se acontecer, terei deixado, com toda a certeza, de ser eu.

20180615






A saudade dói. Sempre. Com dores diferentes, umas despertam sorrisos, outras provocam esgares de dor, silenciosa ou manifestada, mas dói sempre. Saudade do que já fiz, daqueles com quem já fiz, das circunstâncias em que foi feito. Mesmo que na altura disséssemos mal dessas circunstâncias, releio-as e recordo-as agora com um outro peso, uma outra essencialidade, que o tempo se encarrega de limar arestas: se não tivesse sido exatamente assim, não seriam estas as memórias, mas outras, completamente diferentes, e certamente menos saborosas.

Conversávamos um dia destes daquilo que já não farei. Do imenso que já não farei. Da enorme quantidade de projetos e sonhos para os quais já não tenho idade... ou a idade me tira a vontade. De alguns deles eu poderia descrever com enorme exatidão cada passo, cada momento, cada sensação, tantas foram as vezes que os sonhei. É como se os tivesse realizado, efetivamente, de tal forma que as memórias que permanecem desses apenas sonhados e projetados episódios da minha vida se revestem de uma realidade tão real que se confundem com aqueles que efetivamente vivi. Não me espantaria se, daqui por trinta anos, contasse aos meus netos as minhas aventuras num Defender por terras de África, ou de viagens de balão nos céus alentejanos, enquanto os meus filhos, nas minhas costas, fazem carinhosos gestos circulares com o indicador a volta da fronte direita. Nada que não aconteça já, na verdade!
Não são das que doem menos, estas saudades do apenas sonhado. Alicerçadas na realidade, amarram-me às minhas circunstâncias e impedem-me o voo. E como o sonho do voo é fundamental, sobretudo para quem se alimentou tantas vezes do sonho para fugir à realidade circundante! É extraordinário como hoje consigo ver, in loco, a necessidade que as pessoas do bairro têm de jogar nas raspadinhas, euromilhões e apostas desportivas. Que outra forma terão de escapar ao seu quotidiano?
A parte boa é quando redescubro, todos os dias, de forma renovada, que a minha realidade é, justamente, precisamente, o sonho mais vezes sonhado, mais intensamente desejado, e ainda assim, superiormente ultrapassado. E que a saudade, aquela que dói sempre, do vivido e do apenas sonhado, não deixa de doer sempre, mas é ultrapassada pela realidade. E que essa saudade, feita de pessoas e conversas e experiências e vidas sonhadas mas nunca concretizadas, é motivo para agradecer, todos os dias, o dom da minha vida.
E louvar a Deus pelo imenso que alcançamos.
Juntos.

20180614


Tenho o meu dia ganho quando me emociono. Com a bondade natural, com o belo (para o qual me encontro cada vez mais desperto), com o mimo e o cuidado, com o desconhecimento da mão esquerda daquilo que faz a direita.
Ontem emocionei-me. Várias vezes. Com uma conversa, com uma disponibilidade para acolher quem tanto precisa de acolhimento, com uma entrega, com uma belíssima dança numa eucaristia cheia de vida, com a serenidade de uma outra eucaristia, com uma conversa matinal, com um encontro depois de um desencontro. Ontem foi um dia cheio. De trabalho, de sol, de vida, de partilha, de momentos que me fazem sentir que a vida vale a pena.
Há dias assim. Em que apenas tenho motivo para dar Graças pelos que me rodeiam!

20180613

Há partes de nós que não são de ninguém. Nem sequer nossas. Partes feitas de pedaços mal contados e ainda pior resolvidos, palavras que não dissemos por falta de coragem, sentimentos afogados, que escondemos e dos quais nos escondemos, por medo ou vergonha, porventura à espera de uma outra vida que possa ser vivida de forma diferente. São partes de nós que não são nossas porque não as queremos nossas, porque teimamos que não são nossas, e teimamos tanto que as temos por indesejada e permanente companhia. São partes tão não nossas que se nos entranham na alma e no peito e na vida. São partes tão não nossas que, somadas às partes orgulhosamente nossas, constituem a amálgama do nós que nos habita.

20180609


Ontem, naquele final de tarde delicioso junto ao mar, notava-se que, a poucos metros, se iniciava um concerto. Era ainda maior o número de estrangeiros(?) na casa dos trintas que aproveitavam a beleza, o sol e o cheiro do mar, que metiam os pés na água ainda gelada da foz, devidamente acompanhados daquela coisa a que chamam jantar: fruta e vinho verde. Há de sempre fazer-me alguma confusão a sua dificuldade em sentar á mesa nas horas em que o deviam fazer! Quando vinha para cima, vi junto a tabela de basquete dois espanhóis a fazerem umas jogadas, despreocupadamente. Passados alguns minutos chegaram dois rapazes britânicos e ficaram a olhar. Juntou-se-lhes pouco depois um casal que devia ser oriundo de um dos países nórdicos. Alguns minutos mais tarde, estavam todos a jogar juntos, entendendo-se naquele inglês macarrónico que é agora a primeira língua de muitos jovens europeus.
Olhava-os, admirando-os e ao mundo que habito. Esta é daquelas raras alturas em que eu gostaria de ter menos duas décadas. A facilidade com que viajam, a forma como sentem a europa como sendo a sua casa, a normalidade com que comunicam, tudo isso é, para mim, motivo para encarar o século XXI com um sorriso, como diz um sábio amigo. Nada - a não ser o pudor que o bom senso ainda me fornece - me impediria de participar naquela improvisada partida de basquete. O pudor e a consciência que, no entanto, é um outro mundo, a kms do meu, aquele que eles protagonizam. Um mundo que respira uma outra forma e facilidade de comunicar, de viajar, de conhecer, de interpretar o mundo à volta, uma outra cultura de vida. Um mundo porventura com menores raízes e maiores aberturas, menos bafiento, maior permeabilidade. Não necessariamente melhor, mas indiscutivelmente diferente, ao ponto de nos ser tremendamente difícil avaliar. O seu paradigma é outro, o que nos levanta muitas questões, enquanto pais, por exemplo, quando queremos perceber algumas das escolhas dos nossos filhos. Vemos essas escolhas com os olhos do séc. XX quando eles têm que as viver numa era completamente diferente da nossa!
Orgulho-me que tenha sido precisamente a minha geração, com todas as contradições, erros e hesitações, a possibilitar que eles vivam nesse mundo. Que é o mundo dos meus filhos, dos miúdos cujo crescimento acompanhamos atentamente ao longo dos últimos anos.
É um mundo fabuloso, este, que eu tenho o verdadeiro privilégio de ver sedimentar.

20180608


Lembrei-me logo de alguns amigos meus, a quem o mesmo acabou por acontecer.

Enquanto novos, tudo gira. E tudo é muito giro. De noite em noite, de borga em borga, de experiência em experiência, vivem numa rede de amigos flutuantes, de acordo com as mútuas conveniências. Na superficialidade dos encontros e fins de semana radicais, são de todos e de ninguém. Vivem, mais que uma felicidade, um gozo permanente, ajudado pelos rendimentos que vão esbanjando alegremente, sobretudo quando o investimento é feito no hoje, aqui e agora. O que importa é viver!

Com os entas chegam algumas dificuldades até então desconhecidas. As articulações, as noites mal dormidas, o estômago, o peso, mesmo o próprio gozo com o que se fazia e com quem se fazia, tudo isso se começa a ressentir das escolhas que se fizeram antes, noutros tempos. Chega-se a casa mais cedo, apetece sair cada vez menos, demora-se mais a recuperar, e às tantas começa-se a apensar - e a sentir - que uma noite bem dormida é um requisito fundamental para uma boa semana. Olha-se para o lado com maior profundidade, em busca dessa mesma profundidade, de uma maior sintonia. As coisas ganham um outro sentido. Uma outra leitura. Anseia-se um outro presente que prepare um futuro. Já não é tanto o hoje, aqui e agora, mas também o amanhã, que adquire uma outra importância.

Descobre-se a solidão. Redescobre-se a solidão. Uma nova solidão. Porque agora é mais difícil adiar, porque agora o futuro é mais curto, porque agora tudo ganha um outro peso na vida. Uma solidão sempre feita de ninguém ao nosso lado. Podemos até ter a casa cheia de amigos, podemos até ter um casamento de muitos anos, podemos até ter os miúdos aos saltos pela casa toda. A solidão é sempre feita de ninguém.

À medida que os entas se vão sucedendo, vai ganhando importância a escolha criteriosa daqueles com quem partilhamos a nossa vida. Importa ter companheiros de jornada, qualquer que seja o laço que nos une. A família, o casamento, a amizade, os filhos, são ecossistemas, formas de viver o amor, de partilhar o amor, de intensificar o amor, de nos sabermos amados e amantes, de termos e sermos testemunhas de vidas vividas, de sermos e termos contadores da história pessoal de cada um. Não são garantias de coisa nenhuma, muito menos de facilidades e simplificações inócuas.

Ouvi o seu desabafo, agora que convalescia, sozinho em casa, de uma intervenção cirúrgica, e lembrei-me logo de alguns amigos meus, a quem o mesmo acabou por acontecer. Alguns deles com casamentos de anos. Mas recordei também outros que, ao longo da vida, teceram uma rede de amizades profundas, sentidas, testemunhadas e partilhadas, recheadas de cumplicidades, que nessas alturas lhes roubavam a solidão e os enchiam de vida e de esperança.

De facto,à medida que os entas se vão sucedendo, vai ganhando superior importância a escolha criteriosa daqueles com quem partilhamos a nossa vida.

20180607


Já não o fazia há muito tempo. Demasiado tempo! Não percebo as pessoas que não gostam de estar sem fazer nada. Estar só. Estar. Só. Eu sentei-me no jardim, uma manta em cima do corpo, apesar do sol, e deixei-me estar. Fechei os olhos, deixei que os sons me invadissem e fui identificando-os. Um a um. Até deixar de os ouvir. Depois os pensamentos. Em catadupa no início, fila indiana depois, de longe a longe, mais tarde. Não sei quanto tempo estive ali, no meu jardim, longe da vida. Mergulhado na vida. Creio que adormeci. Ou então, estava tudo tão entorpecido que posso ou não ter adormecido. Se calhar adormeci de olhos abertos. Sonhei de olhos abertos. repousei de olhos abertos. E alma fechada. Pelo menos para tudo aquilo que me era exterior. Só eu. Eu e a minha alma. Eu e os meus pensamentos. Eu e os meus sentimentos. Eu e os que amo. Eu e o meu Deus. Sem que uns ou outros disso saibam. Dir-se-ia que estava a perder tempo. Eu próprio, às tantas, sentia-me um tanto ou quanto culpado porque estava a perder tempo. Não estava a perder tempo. Estava. Apenas. Deixando que a vida flua. Que a alma flua. Que eu flua. No final, nada tinha mudado, Nada se tinha alterado. O que tu tinha para fazer continuava por fazer. O lugar onde eu tinha que ir continuava lá. Exatamente no mesmo lugar. e nem sequer o relógio mostrou grande preocupação e continuou a contar o tempo exatamente ao mesmo compasso. Nada perdi, afinal. Nada ganhei, também, na verdade. Apenas estive, num parêntesis de não acontecimento, de não fazer, de apenas ser, naquele bocado daquela tarde daquele sábado. 

20180606


Ele é daquelas pessoas que admiro profundamente. Há muitos anos. Provavelmente não devido aos motivos que ele achará, mas ele sabe que o admiro profundamente. É uma daquelas pessoas com um conhecimento que admiro, o tipo de conhecimento que, nem que eu vivesse cem anos, conseguiria alcançar. Junta fé a poesia e literatura, devidamente salpicadas com boa música, tudo envolvido numa profundidade e (às vezes) serenidade que me é tremendamente sedutora. Porque inacessível.
Hoje escutava-o, embevecido, e apetecia-me abraçá-lo. Mas, mais que isso, a vontade que tinha mesmo era de sentar e conversarmos.

Um dos meus maiores enigmas é perceber porque raio por vezes não damos o melhor de nós aos outros. É como se nos encolhêssemos, se nos apresentássemos pela metade, baixado sistematicamente a fasquia. No meu caso, andará provavelmente por aqui, uma vez que duas coisas me assustam de morte: as exacerbadas expectativas dos outros - que eu sei que algures no tempo irei defraudar; e que pensem que eu me coloco em bicos de pés - talvez porque às vezes me coloco mesmo e invariavelmente dou com os queixos no chão. Daí que, frequentemente, me sinta assoberbado pelo que os outros esperam que eu faça, querem que eu faça, e sobretudo, têm a esperança que eu faça bem feito, e nada melhor para combater isso que ir avisando. O problema é que volta e meia, a muito custo, lá vou cumprindo as expectativas e ninguém acredita nos meus avisos. Até um dia.

Pensava tudo isto enquanto o escutava. Porque por vezes também ele mostra uma faceta da qual nem ele próprio gosta. Nessas alturas penso - talvez com um pequeno grau de satisfação egocentrista - que ele, como eu, também anda à procura. Por outros caminhos, claro, muito mais adiante, mas também à procura. Talvez seja um pouco isso o que nos une: a procura.

20180604


Li recentemente, num artigo de um padre cuja opinião eu respeito, que somos habitados pelo infinito. Que a nossa sede de Deus advém justamente dessa sede de infinito, dessa insaciável e incomensurável incompletude, que por vezes apenas encontra algum repouso na confiança e entrega totais. Eu, por exemplo, apenas encontro o meu repouso autêntico quando recordo Jesus: "faça-se a Tua vontade e não a minha". É na entrega abandonada, confiante e recheada de esperança que descubro o reconfortante colo do Pai. Mas não acontece muito, confesso. Apenas nas situações de desespero total e absoluto. Fora desses momentos é o infinito que inapelavelmente me habita. É a procura constante, o fazer e refazer, o encontro e desencontro, o toca e foge permanente que me faz sentir que ora sou, inteiro, de corpo e alma, ora vou sendo, corpo e alma em permanente desavinda.

Ler de um padre que a incompletude pode ser fome de Deus é importante para mim. Porque muitas vezes caio na tentação de invejar aqueles que, pelo menos à minha vista desarmada, são um feliz bloco monolítico, onde tudo está devidamente acomodado onde devia estar, sem lugar a dúvidas existenciais. Invejo a sua serenidade, a sua clareza, as suas certezas absolutas, a tranquilidade do seu sono, a sua (para mim tão inacessível) coerência de vida. A minha coerência reside apenas na permanência da procura... e na constante insuficiência da resposta.

Há uns anos fiquei muito feliz quando, em Taizé, me possibilitaram uma outra leitura de Lucas 7, 47: "pois digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama". Sempre li o perdão como grande recompensa ao grande amor. Mas em Taizé colocaram a tónica no amor: peca muito quem ama muito. E o perdão, que nunca é recompensa, é uma dádiva ao que muito ama justamente porque quem ama  aceita viver no risco de amar. Ao que pouco se tem a perdoar é porque pouco arriscou viver, preferindo enterrar o seu tesouro à eventualidade de o perder.

Resta-me esta confiança. Que o olhar incompreensível dos homens dê lugar ao olhar amoroso do Pai.

20180530



Aprendi, há muitos anos, que na vida apenas uma coisa me é verdadeiramente insuportável: o sofrimento dos que amo. Sobretudo, no topo dos topos, a consciência que esse sofrimento é provocado por mim.

Sofrer com quem se ama é inevitável. Sofrer muito com quem se ama muito é natural. Os que me são indiferentes não me causam mossa. Na altura até me comovem, podem até estragar o meu dia, ou a minha semana, e ficar cá por dentro uns tempos. Mas quando penso a sério, isso acontece porque tendo a pensar "e se fosse comigo ou com os meus..." numa espécie de projeção egoísta e auto-centrada. Apenas aqueles que acampam cá por dentro têm essa possibilidade, essa nefasta capacidade de me fazer sofrer verdadeiramente com o seu sofrimento. E eu posso com isso. A custo, mas posso com isso. Eu tenho vida e mecanismos e defesas que me ajudam a aceitar essa dor e a viver com ela, apesar dela. É uma dor de fora para dentro, que me chega por meios dos que me são importantes, e que me impele a estar presente, a tentar ajudar a atenuar, muitas vezes com uma simples presença feita de olhares, recheada de profundo silêncio. Dói como o caraças, mas, de alguma forma, sinto-me parte da solução. E isso faz-me bem. E isso sabe-me bem.

Coisa diferente, muito diferente, verdadeiramente insuportável, é quando a dor é em sentido contrário, é quando sou eu a provocar o sofrimento naqueles que me são importantes. Aí não sou solução, sou problema. Aí não posso consolar mas ser consolado. Aí nada posso fazer para me sentir bem comigo mesmo. E muitas vezes o esforço dos que amo para que me sinta amado apesar de mim ainda acentua mais a impotência, a dor, o desespero. E reforça esta sensação permanente de não merecer ser amado. E torna tudo ainda mais insuportável.

Ontem foi reprovada a legalização da eutanásia. No meio da romantização da minha morte - sim, eu romantizo a minha morte como romantizo cada momento da minha vida - eu sei como gostaria de morrer: sem ver o sofrimento no olhar daqueles que amo. Essa seria, verdadeiramente, a forma como gostaria de morrer: sem ver o sofrimento nos olhares daqueles que me amam. Não tem a ver com a minha dor, com o meu sofrimento, com a minha morte. Eu tenho fé e, pelo menos hoje aqui e agora, a morte não me assusta por aí além. O insuportável mesmo, será partir com a sua dor estampada no olhar. E na minha alma.

20180523


Digo muitas vezes que me fiz. Porque é, em grande parte, verdade. Com as dificuldades e as consequências que uma construção desse tipo inevitavelmente acarreta: um errar constante, um refazer constante, uma excessiva permeabilidade, uma atenção exacerbada aos ecos que vamos provocando, como um morcego que, às cegas, está permanentemente expectante do retorno do som para se poder orientar. Há, no entanto, uma grande parte que já é assim tão verdade. Justamente porque os sons que me orientam acabam por ser incorporados, acabam por ser, eles próprios, construtores de personalidade. E, às tantas, os sons que me orientam não são já aqueles que emito mas os que me falam no silêncio do que sou. Até aqui tudo bem. É sinal que, embora muito timidamente, para meu verdadeiro espanto, vou ganhando alguma maturidade.

Há algo de incrivelmente solitário quando nos escutamos na escolha do caminho. E livre. E libertador. Se a maturidade traz acopladas maiores certezas, por outro lado impossibilita desculpas. E justificações. Que, na verdade, apenas servem para afagarmos a nossa própria cabeça enquanto nos sussurramos que não somos assim tão más pessoas quanto pensamos.

Talvez porque sempre tenha tido a convicção da excessiva dependência afetiva que me acompanha desde que sou gente, o anseio de liberdade é uma constante. O cântico negro, de José Régio, recitado numa aula de português do 9º ano pelo professor que mais me marcou, passou a ser como que um companheiro que me desafiava todos os dias. Cântico Negro de um lado, a Bíblia do outro, devidamente acompanhados por velhos amigos sempre revisitados, como o cavaleiro da triste figura e o principezinho, espelham bem a contradição que me habita. Apelo à liberdade, por um lado, necessidade de ser parte de..., por outro. E algures, eu, ora um, ora outro, ora ambos em conflito permanente.

Lá em casa a eutanásia tem sido tema recorrente. Dois médicos (ainda por cima com posições contrárias) e uma advogada na família é o que dá. Com claras vantagens para todos nós, claro. Tudo devidamente entrelaçado pela fé, que, graças a Deus, não impede nenhum de nós de nos sentirmos absolutamente livres para nos posicionarmos e assumirmos abertamente a nossa posição. Ainda ontem conversávamos ao jantar e eu escutava-os, embevecido, admirado, pela forma como conseguem apresentar as suas razões e dar espaço para que os outros apresentem as suas.

Quase todos os dias desejo não ser como sou. Desejo ser diferente, mais sólido, mais consistente, mais claro comigo e para mim próprio, mais claro com os outros. Desejo não ter dúvidas, não procurar, anseio agarrar as minhas certezas e poder acampar, finalmente, saboreando com maior tranquilidade a vida e a paisagem que me habitam. Desejo que tivessem sido outros os livros, outras as histórias, sobretudo outras as marcas que contribuíram para que seu seja o que sou. Mas depois tenho dias como o de ontem, feito de encontro, feito de harmonia, feito de orgulho. E arrisco dar-me o beneficio da dúvida. Se calhar, com sorte, com muita ajuda, ser assim permitiu que a minha vida seja esta. E isso faz tudo valer a pena. 

20180519


Há pouco tempo disseram-me que eu não sei ser amado. Acredito. Não sei porquê, mas às vezes cheira-me que poderá ser verdade.

Para mim, em determinados momentos, amar é extraordinariamente simples. Anda algures entre o D. Quixote, o Mr. Morgan e o inevitável Walter Mitty. Do Mr. Morgan, o amar em silêncio, em segredo, até do próprio. O amar fora de tempo e de lugar. O amar fora da vida sonhada. O amar da borla. Silenciosa. Respeitosa. Fisicamente distanciada. Do Mitty, a transformação, a superação, o passar do sonho à realidade, o vale tudo, o que se lixe, o perdido por cem ganho por mil. E a frustração do desencaixe, do desadequado, dos pés pelas mãos, da camioneta demasiado pequena para tanta areia.  Do D. Quixote o cavaleiro cavalheiro, a indominável vontade de salvar uma qualquer donzela em perigo numa qualquer torre mais alta de um qualquer castelo e, sobretudo, a triste figura, a falta de senso, a falta de racionalidade, a falta de realidade. Pegue-se nos três, misture-se convenientemente e com cuidado, adicione-se uma pitada de fantasia e cabeça no ar e uma mão bem cheia de emoção e entusiasmo e temos eu.

Depois há um outro amar. Do cuidar. Do proteger. Da vontade de enfiar quem se ama numa redoma para que nada lhe possa acontecer. Da vontade de mimar. Da responsabilidade do cuidado da vida que, de alguma forma, foi confiada. Da corda bamba, do eterno medo, da eterna alegria. Do viver com, do chorar com, do rejubilar com. Do nosso, sejam vitórias, fracassos, batalhas, ganhos e perdas.

De comum? A intensidade. A necessidade. A inevitabilidade. A imensidão. O arrebatamento. Não sei viver sem um e sem outro. Duvido que valha a pena viver sem um ou sem outro. 

20180516



Ontem foi dia da família.
Até há bem pouco tempo na família não havia lugar para grandes recordações. Habituáramo-nos a cavalgar a espuma dos dias sem grandes reflexões ou ilações para inquérito nos ia acontecendo. Que era muito! Histórias passadas, nem sempre bem passadas, muito menos bem resolvidas, mas nunca deixamos que isso interferisse na forma como apreciávamos a companhia uns dos outros. Não era uma falência, umas dívidas às finanças, uma perda de casas ou um atolado comum de vidas adiadas que nos ia impedir de sermos quem sempre fomos uns para os outros: amor feito de gestos e parcos em palavras.
Cada família tem a sua maneira muito própria de funcionar e a nossa sempre foi assim: se é para dividir não se discute, faz-se de conta que o elefante não está no meio da sala. É discutível, claro que sim, mas apesar de tudo permitiu-nos sobreviver juntos às falências e à crónica falta de dinheiro. Sobretudo permitiu-nos concentrar-nos no essencial, dando-nos o tempo para sabermos que nos amamos. Apesar de tudo.
Na foto de família que o meu irmão publicou há já lugar a recordações. E neste aspeto tem sido duro. Um cancro fatal, uma velhice natural, e a morte começa a fazer tão parte de nós como a vida. É novo. Até aqui as mortes tinham sido apenas as dos outros. É pena. Lamentamos. Choramos. Mas eram as dos outros. Estas foram nossas. E outras se seguirão. É a vida! E a morte!
Normalmente não falo muito neste lado da família. Normalmente não penso muito neste lado da família. Que está. Que persiste. Que faz parte do mais intrínseco que há em mim. Que está provavelmente na origem do que há de mais convulsivo em mim. E controverso. E profundo. Radicalmente profundo.

20180514



Durante o fim de semana em Londres, duas experiências antagónicas.

Fomos à eucaristia. Católica. Uma língua diferente, um país diferente, uma Igreja diferente, minoritária, de resistência, num país esmagadoramente e politicamente protestante. Mal me sento, olho à volta e vejo uma assembleia envelhecida, como as nossas, mas composta maioritariamente por imigrantes negros. Arrisco a avaliar que a meia dúzia de brancos são irlandeses, não ingleses. Mas o que mais me chocou foi a negatividade da homilia. Apelou constantemente à resistência, inúmeras referências ao mundo, lá fora, que é exclusivamente motivo de pecado, e que, para nosso consolo, é apenas temporário. Devemos, por isso, fugir do mundo, resistir até que chegue o Reino dos Céus, penitenciarmo-nos quando não o conseguimos. Graça, zero. Esperança, zero. Alegria, zero. Creio que nunca tinha escutado uma homilia assim, tão pesada, tão negativa, tão desesperançada, tão carente de Jesus.

No início, é muito esquisito. Ver dois homens ou duas mulheres de mão dada, a trocarem carícias e meiguices, de todas as idades, de todas as etnias, com a mesma naturalidade com que o fazemos nós, os heterossexuais. No início encorrilho a testa. Racionalmente, a homossexualidade está mais que "naturalizada" mas vê-la assim, tão à descarada, tão assumida, é novo, e não consigo deixar de estranhar. Depois passa. Ainda na semana passada, numa conversa, disse que amar nunca pode ser motivo de arrependimento, nunca pode ser sinónimo de coisa má, negativa, que deva permanecer escondida. E amar deve ser sempre possível acontecer em liberdade. E o que eu digo não podem ser apenas palavras. E aquilo em que acredito não podem ser apenas palavras.

Duas experiências antagónicas, dois sinas contrários, encontrados em lugares opostamente inesperados.

Tenho ainda muito a interrogar, a descobrir, a aprender.

20180510


Há, na consciência do pecado, uma porta para o divino que seria muito difícil de acontecer com a mesma intensidade numa qualquer outra situação.

Quando me recolho no Evangelho, as personagens que mais me são significativas são, de longe, aquelas que sabem que pecaram. Zaqueu, a Samaritana, a pecadora, são com quem me identifico imediatamente, são aquelas com quem facilmente transponho a minha vida, as minhas circunstâncias e com quem, invariavelmente, aprendo. E o Jesus que é com elas, é o Jesus de quem eu mais necessito e que mais amo. É a este Jesus que eu recorro mais vezes, aflito.

O melhor do pecado é a consciência que peco. é quando não me adio nem me iludo mas sinto claramente que há algo que me desfoca de quem sou chamado a ser. É aí, nesse momento, que me volto com maior verdade para o meu Deus, em busca do socorro do Seu amor. É aí, nessa circunstância de pecador, que eu, muitas vezes por falta de alternativa, me coloco inteiro nas Suas mãos e me confio de corpo e alma. É aí, nesse recolhimento tão necessário quanto profundo e transformador que me sinto verdadeiramente cristão, que sinto que a minha vida sem Cristo seria muito diferente!

20180509


Vi ontem uma primeira reportagem que a SIC está a passar acerca do cancro. A determinada altura, um paciente - que me pareceu daquelas pessoas extraordinárias que tudo suportam - dizia que enfrentava com facilidade as dores próprias. Difíceis eram as das mulheres da sua vida: a mãe, a mulher e a filha.

Pensei logo no que faria se fosse comigo.

Há pouco tempo estava na cavaqueira com a minha filha mais velha e até nos rimos: quando se sente apertada, sob stress, a sua vontade mais incontrolável é dormir. Tal como eu.

Desde sempre que sou habitado por heróis e super heróis e cavaleiros e donzelas fechadas nas mais altas torres dos altos castelos. Desde sempre que me imagino a salvar donzelas em perigo e a protegê-las contra todos os perigos do mundo. Desde sempre que eu me vejo do lado dos fortes, dos salvadores, dos protetores. E estive desde sempre do outro lado!

Via a reportagem e só pensava na colonoscopia que fiz recentemente. Enquanto estive deitado, à espera para ser levado pelas enfermeiras, só pensava como era difícil para mim estar naquela situação onde tudo me dói: o despir-me, o vestir aquela bata azul, a forma condescendente como falam comigo, a agulha a entrar na pele, ser transportado na maca a ver os candeeiros brancos a passar por cima de mim, o pânico do que se passará enquanto estou sedado e completamente à mercê... depois da intervenção só pensava que detestaria repetir tudo aquilo. Depois a enfermeira veio e disse-me que não conseguiu ver tudo e que tenho que repetir daqui a seis meses e eu engoli em seco, e... lá terá que ser.

Ontem, enquanto via aquele rapaz, em tratamento há tanto tempo, a dizer que não tem tempo para morrer e a viver de semana e meia em semana e meia, senti-me envergonhado. Jamais seria assim, jamais teria aquela força, jamais enfrentaria o que haveria para enfrentar. E a escolha mais difícil de fazer seria tremenda: permitiria que os meus me acompanhassem no sofrimento ou aceitaria enfrentar tudo com eles? O que lhes doeria mais? Permitir-me-ia ser amado na fragilidade?

Tenho ainda muito que caminhar!!!

20180507

700

vi hoje que publiquei o post 700. E que este blogue existe há já 7 anos. É muito disparate no mesmo sítio!!!!

Conversávamos, agora com mais calma, enquanto caminhávamos, aquilo que havia sido dito, fugazmente, à distância. Sabia das suas decisões, das suas idas e vindas, das suas perdas e ganhos, das partidas e reencontros. Não é tudo mau, nas redes sociais, que estão muito longe de substituir o olhar mas vão servindo para nos mantermos a par do indispensável. Naquelas conversas - que antecipáramos numa espera paciente e cuidada - falávamos de escolhas e dores e silêncios e partilhas e sofrimentos e decisões complicadas. E de consciência. Tranquila uma vezes, conturbada outras. E procura. Serena uma vezes, desesperada outras. Somos ambos habitados pela procura. O que nos permite uma linguagem comum. Por vezes feita de palavras.

São duas forças distintas. Quase diametralmente opostas. São duas formas absolutamente distintas de tentar chegar ao mesmo lugar: a felicidade. Por um lado, o inconformismo. Não és apenas isto, és chamado a muito mais, és melhor quando és mais, és mais bonito quando te contrarias e te exiges sempre mais. E sou, efetivamente, mais, quando consigo não me render a mim. Por outro lado, a aceitação, o és como és, o ama-te como és, o mesmo assim vales a pena, o não és assim tão mau que tenhas que ser outro alguém. E sou, efetivamente, mais sereno quando me consigo aceitar. Ambos coexistem, ambos estão lá, ao mesmo tempo, e eu sou o homem elástico da extraordinária cena do Walter Mitty, constantemente disputado entre o que sou e o que devo ser.

Temos muitas formas de sermos absolutamente felizes. E nem todas implicam a escolha por nós próprios. Muitas vezes, até, implicam que não nos escolhamos, mas àqueles que amamos. Por vezes, acontece até por exclusão de partes: as escolhas são feitas não em função da nossa alegria mas da dor dor daqueles que amamos. Que quando é provocada por nós nos é tão insuportável que nos rouba qualquer possibilidade de felicidade. E por isso os escolhemos, em vez de nos escolhermos. É uma escolha por amor, sim. É uma escolha de amor, sim. E não é menos amor por isso. O amor, a felicidade, não tem compartimentos isolados.Não há bons ou maus motivos para amar. Há amar. E escolher em função desse amor. E viver em função desse amor, qualquer que ele seja. E há dor. Inevitavelmente, há dor. Nossa e alheia. Que, quando se ama, é mais nossa que a nossa própria dor. E por isso mais insuportável.

Em julho, quando fiz o retiro, não deixei de me sentir o homem elástico. Aceitei que sou o homem elástico. Há toda uma diferença!



20180502


No final, comentava eu com quem me acompanha sempre nestas e noutras lides da vida, que é bom sentir que ainda tive um papel a desempenhar.
Por vezes acusam-me de dar demasiada importância à minha idade. Não me sinto velho. Mas também nunca acreditei na balela do espírito jovem com que se pretende fugir da idade. Acredito no tempo, sim, e nas alterações que, quando temos sorte, juízo e boa companhia, verificamos que o tempo provoca em nós. Ainda fiz os mais de vinte quilómetros diários à vontade - embora ainda me doam os músculos - mas já não dormi da mesma maneira. Ainda animei e cantei e provoquei a dança e a alegria, mas sei já que não cantamos as mesmas coisas com o mesmo gozo. Ainda me metia com eles e eles alinhavam a brincadeira mas sei que há brincadeiras e formas de ser e comunicar que têm o seu tempo que não é bem este tempo.
Gosto de ficar atento aos efeitos do tempo em mim. Não para evitar o que tenho a fazer mas para e tentar ajustar ao que tenho que fazer. Até porque, lentamente, vou assumindo papéis diferentes, e por mim esperados toda a vida. Esperava que por volta desta altura me escutassem, esperava que por volta desta altura aconselhasse, esperava que por volta desta altura a atenção do meu olhar fizesse mais que a concentração dos olhares em mim. E é justamente isso que começa a acontecer. Graças a Deus!
Saber o lugar que se deve ocupar a cada momento é uma bênção. E, numa equipa como a nossa da PJV eu sinto que tenho um lugar. Que já não vai sendo o que tem sido. Pelo menos, espero que não. Seria mau sinal se assim não acontecesse.

20180423


Assim que se passou para as perguntas de quem assistia à mesa redonda comecei a contar os minutos. Por escasso tempo. Foi a primeira pergunta. Não foi recorde, no entanto. Junte-se uma conferência da Igreja - sobre qualquer tema - e pessoas nos entas, e a pergunta é tão previsível como a morte: como se há de combater o demónio que se esconde no facebook e o mal que as redes sociais fazem aos nossos jovens e às nossas famílias. Torço-me sempre na cadeira. Sei que não adiantaria nada tentar responder. Sei que os argumentos que o mal não está nos facebooks ou quejandos mas na distância que se instalara antes, quando os miúdos eram novos caem em saco roto. Sei que explicar que temos que ir ao encontro da malta nova onde ela está - e se está nas redes sociais porque não irmos até lá - e não batermos no peito como virgens ofendidas é redundante. Sei que recordar que Jesus, que aos pescadores falava de peixe e aos agricultores de sementes, ia ter com as pessoas onde quer que elas estivessem, é tido como sendo naquele tempo. Sei que apelar ao juízo para deixarem de tentar parar a água com as mãos é tempo perdido. E sei isto tudo porque isto tudo já aconteceu na forma tentada e efetivada e perdida. É coisa antiga na Igreja: é muito mais cómodo encontrar o bode expiatório (Lev 16, 5-22) que assumirmos nós as nossas responsabilidades, seja em termos de educação, seja em termos de evangelização.
Já tenho dois dos meus fora de casa. E as redes sociais facilitam-me a vida. Vou sabendo deles, por onde andam, o que fazem, vamos conversando e acompanhando-nos mutuamente. Prolongamos uma relação que sempre foi a nossa: proximidade quando era preciso, distância quando era de vontade. Acredito que aquilo que as redes sociais permitem é justamente isso: acentuar as relações e os comportamentos. Quando se trata de miúdos exigem maior cuidado e atenção. Depois, vai sendo menos. Vai-se acompanhando, como na vida. O problema é quando não se acompanha na vida. Mas a questão, nesses casos, não está nas redes sociais. 

20180417


Hoje, como sempre acontece à terça, tivemos reunião no RAIZ. Às tantas, a conversa vai ao encontro das nossas preocupações constantes com o futuro dos nossos miúdos. Enquanto permanecem por cá, enquanto os temos debaixo de olho, as coisas ainda vão correndo. O pior é depois. Falamos de uma série deles que, ao longo dos últimos meses, ou foram ter à prisão ou estão em casa com prisão domiciliária ou então foram libertados em julgamento. São marionetas. Dos pais, dos irmãos mais velhos, dos traficantes, das força policiais. São carne para canhão. Aqui no bairro, se eles não funcionarem em condições, rapidamente são substituídos por outros com maior vontade, maior estupidez, menor consciência e escrúpulos.
Oiço e não acredito. Conheço bastantes deles e o que conheço, o que recordo, são momentos que nada têm a ver com o seu passado próximo e com o seu presente. Miúdos traquinas, com pouca vontade de estudar, vivaços, muito alegres, muito dóceis. Miúdos que noutras circunstâncias poderiam ter dado gene a sério. Miúdos que fizeram as escolhas erradas e por isso são responsáveis pela sua situação. Não exclusivamente, é certo, porque foram enredados numa rede feita de promessas fáceis, trapaças e enganos. Mas são responsáveis pelas suas escolhas. Condicionados, sim, mas tiveram hipóteses de enveredar por outro futuro. E não quiseram, não soubera escolher bem.
Dá vontade de os meter numa redoma, de os afastar do Bairro e das suas famílias que os exploram, de os colocar num outro lugar, mais são, mais livre, onde possam verdadeiramente munir-se de ferramentas para que possam escolher quando chegar a sua altura de escolher. Não podemos. É a sua vida, não a nossa. Podemos acompanhar, aconselhar, proteger, estimular, apresentar exemplos e alternativas, mas não nos podemos substituir a eles próprios.
É este o nosso quotidiano, por estes lados. semear. E assistir, com dor, à colheita alheia.

20180416


É já proverbial, para os meus, a minha recusa em ser sepultado num cemitério. Os meus sabem-no sem dúvidas há muitos anos. Sabem que quero ser cremado, onde gostaria que fossem espalhadas as minhas cinzas - nos meus lugares de pertença física e espiritual: Porto e Taizé - e estou certo que este é um daqueles casos em que a minha vontade será satisfeita.
E no entanto...
Tenho vindo a redescobrir os cemitérios. Pode parecer macabro, mas não é. O meu futuro, em algum momento, implicará a minha morte, por isso é natural que eu pense nisso. Ultimamente, com alguma tranquilidade, até. Depois do choque das recentes mortes que tanto me mexeram cá por dentro, é uma espécie de assumpção, de aceitamento por absorção. Uma espécie de fase nova, em que vou percebendo (finalmente!) que o corpo tem limites e que qualquer dia será o dia. Ainda na semana passada, numa das já habituais conversas à volta da fé com os meus filhos, um deles perguntou-me se eu creditava mesmo que iria estar olhos nos olhos com Deus. E eu respondi-lhe que sim, que acredito mesmo que irei estar olhos nos olhos com o meu Deus e que Ele me receberá com um enorme sorriso. Porque não pensar nisto, então?
Ultimamente tenho percebido os cemitérios com um outro olhar. Como um lugar de encontros. Nem sequer e reencontros, mas de encontros. De saudades. De novas formas de saudade. De memórias. De alegrias e choros, com os condizentes sorrisos e lágrimas. É um reviver, de uma outra forma, mas igualmente viva, de uma nova realidade.
E isso tem-me questionado. 

20180410


Estou a (tentar) ler a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, que o Papa Francisco escreveu recentemente e ontem foi publicada. Espanto-me sempre com a simplicidade daquela cabeça. Quem, como eu, tende para as coisas profundas e densas - sim, eu escolho muitas vezes um livro pelo número de páginas - tipo Bento XVI, facilmente encontra nos textos do Papa Francisco alguma tendência para a superficialidade, para a excessiva simplificação do que se espera ser complicado, a exigir dicionário teológico, quanto mais não seja para nos alimentar o ego da sabedoria!
Uma das minhas provocações mais comuns e favoritas é "expliquem-me como se eu tivesse cinco anos". Todos os meus filhos já tiveram cinco anos - bem, quase todos, porque a idade mínima da Rita foi nove - e eu recordo-me bem como era difícil responder à sua enorme e constante sede de respostas. Tentar explicar algo a um miúdo de forma a que ele entenda - e se cale - exige um esforço de síntese que nos conduz ao essencial de cada questão, ao seu sumo, àquilo que realmente importa.
Era justamente aí que Jesus se mexia, a nível teológico.
Para além do maior sinal da Sua vida - a ligação umbilical aos que se crêem ser menos, restituindo-lhes a dignidade que procedia do Amor do Pai - marca a simplicidade da Sua mensagem. Sem muitas palavras, sem muitas divagações, focando no essencial, contando pequenas histórias ligadas ao quotidiano das pessoas, se necessário for. Mesmo na sinagoga, lia as leituras, proferia meia dúzia de palavras, e deixava que cada um dos que O escutavam seguisse o seu caminho interior. Acredito que a dúvida que Jesus acabara de instalar em cada uma daquelas cabeças fazia caminho. Nem sempre o caminho certo, inevitavelmente, mas cada um dos que estavam presentas na Sinagoga tinha a oportunidade de escolher, de decidir, de se fazer parte do caminho que Jesus propunha. Era chamado à responsabilidade de escolher. Que é o que nos acontece quando não nos é dada a papinha toda, quando nos dão a fome em vez de nos saciarem.
E dou por mim a gostar desta simplicidade de Francisco. Que torna cada documento seu legível e entedível e até fazível por qualquer pessoa, qualquer cristão, qualquer homem ou mulher que tenha vontade de aprofundar a fé. À semelhança do evangelho. Tenho é que me habituar!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...