Quem me conhece mais de perto ouviu já uma expressão que uso algumas vezes: sou um barco com motor fora de bordo. Não fora isso e, quando muito, seria um daqueles barcos a remos, de madeira gasta e envelhecida, repintados inúmeras vezes para turista ver, mas a que nem a brutal força braçal os faz sair da cepa torta. Ou então, o que é ainda mais provável, um daqueles barcos cuja existência se confina às margens, se resume ao casco meio desfeito, quase irreconhecível, sem pintura que lhe valha, de tanto levar, sem apelo nem agravo, com o efeito das marés desta e de outras vidas.
Várias vezes na vida julguei ser veleiro ágil e esguio, e cometi a loucura de enfrentar ventos e marés, orgulhosa e vaidosamente ostentando as minhas velas enfunadas ao vento. A vertigem da velocidade provocada pelo vento a favor inebriou-me sempre e sempre teve o mesmo destino: esse mesmo vento a favor, que antes me provocara a ilusão do voo, é o mesmo que me rasga as velas, me impede de avançar e, afundando-me no mar, me torna âncora de mim mesmo. E fico lá, parado, em eterna maresia, impotentemente indiferente, indiferentemente impotente, alheio à vida que vai passando ao largo.
Nessas alturas, invariavelmente, chega o meu motor de fora de bordo. Desprezando ventos e marés, olha amorosamente para o que, ignorando as evidências, acredita que sou, e me leva de volta ao cais onde, no lado oculto dos holofotes, me restaura cuidadosamente, por vezes penosamente, mas sem nunca deixar de acreditar no que posso ser, no que sou chamado a ser, fazendo-me acreditar voltar a ser. Ainda que seja para, de novo, ostentar vaidosamente as minhas velas ao vento.
O melhor de mim chegou-me por seu intermédio. A consolidação da fé, a descoberta da família, a alegria do (des)empenho, a necessidade de ser fazendo, tudo me foi apresentado, tudo me foi introduzido, tudo me foi acalentado em doca seca, pedaço a pedaço, colando aqui e aparafusando acolá, fazendo e refazendo, pintando e repintando, por e com amor, imenso, incontável, inacreditável amor, no cais da nossa vida comum. Companheira de toda a minha vida que valeu a pena ser vivida, é ela o meu motor, o meu grilo falante, a minha consciência. É ela quem me cuida, quem me transforma, quem me leva a acreditar que posso ser ser quem jamais sonhei ser.
Vê-la, ontem, num belíssimo final de tarde, num dos nossos lugares de eleição, a enfrentar o mar que tanto ama, fez-me louvar a Deus por ser tão e tão verdadeiramente amado por alguém assim.

Comentários

Mensagens populares deste blogue