Digo muitas vezes que me fiz. Porque é, em grande parte, verdade. Com as dificuldades e as consequências que uma construção desse tipo inevitavelmente acarreta: um errar constante, um refazer constante, uma excessiva permeabilidade, uma atenção exacerbada aos ecos que vamos provocando, como um morcego que, às cegas, está permanentemente expectante do retorno do som para se poder orientar. Há, no entanto, uma grande parte que já é assim tão verdade. Justamente porque os sons que me orientam acabam por ser incorporados, acabam por ser, eles próprios, construtores de personalidade. E, às tantas, os sons que me orientam não são já aqueles que emito mas os que me falam no silêncio do que sou. Até aqui tudo bem. É sinal que, embora muito timidamente, para meu verdadeiro espanto, vou ganhando alguma maturidade.

Há algo de incrivelmente solitário quando nos escutamos na escolha do caminho. E livre. E libertador. Se a maturidade traz acopladas maiores certezas, por outro lado impossibilita desculpas. E justificações. Que, na verdade, apenas servem para afagarmos a nossa própria cabeça enquanto nos sussurramos que não somos assim tão más pessoas quanto pensamos.

Talvez porque sempre tenha tido a convicção da excessiva dependência afetiva que me acompanha desde que sou gente, o anseio de liberdade é uma constante. O cântico negro, de José Régio, recitado numa aula de português do 9º ano pelo professor que mais me marcou, passou a ser como que um companheiro que me desafiava todos os dias. Cântico Negro de um lado, a Bíblia do outro, devidamente acompanhados por velhos amigos sempre revisitados, como o cavaleiro da triste figura e o principezinho, espelham bem a contradição que me habita. Apelo à liberdade, por um lado, necessidade de ser parte de..., por outro. E algures, eu, ora um, ora outro, ora ambos em conflito permanente.

Lá em casa a eutanásia tem sido tema recorrente. Dois médicos (ainda por cima com posições contrárias) e uma advogada na família é o que dá. Com claras vantagens para todos nós, claro. Tudo devidamente entrelaçado pela fé, que, graças a Deus, não impede nenhum de nós de nos sentirmos absolutamente livres para nos posicionarmos e assumirmos abertamente a nossa posição. Ainda ontem conversávamos ao jantar e eu escutava-os, embevecido, admirado, pela forma como conseguem apresentar as suas razões e dar espaço para que os outros apresentem as suas.

Quase todos os dias desejo não ser como sou. Desejo ser diferente, mais sólido, mais consistente, mais claro comigo e para mim próprio, mais claro com os outros. Desejo não ter dúvidas, não procurar, anseio agarrar as minhas certezas e poder acampar, finalmente, saboreando com maior tranquilidade a vida e a paisagem que me habitam. Desejo que tivessem sido outros os livros, outras as histórias, sobretudo outras as marcas que contribuíram para que seu seja o que sou. Mas depois tenho dias como o de ontem, feito de encontro, feito de harmonia, feito de orgulho. E arrisco dar-me o beneficio da dúvida. Se calhar, com sorte, com muita ajuda, ser assim permitiu que a minha vida seja esta. E isso faz tudo valer a pena. 

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