20131217


"Só o silêncio do rebentamento das ondas quebra o silêncio da espera." Podia ser uma daquelas frases bonitas que por esta alturas aparecem em inúmeros power points que todos os dias recebo alusivos ao Advento. Podia ser uma das belíssimas orações da manhã da Renascença com que tento começar os meus dias. Infelizmente, não é nada disso. É o título da notícia dos familiares que desesperam pelo aparecimento dos seus na praia do Meco.

Não consigo imaginar um desespero maior que aquele que aguarda que o corpo de um filho dê à costa. Não consigo imaginar como é possível viver depois disso, como as noites são imensas noites, como os dias deixam de ser dias. Não consigo imaginar a dor superior a qualquer outra dor que é perder um filho, qualquer que seja a circunstância em que isso acontece.

Silêncio e o barulho do mar. Duas situações que normalmente procuro quando preciso de me reencontrar, de me recolocar perante a vida. Duas situações que são o meu caminho seguro para encontrar a paz e a felicidade. Duas situações que, afinal, não passam de circunstâncias, de invólucros de uma interioridade que já lá está, que espera apenas que a desembrulhemos e a saboreemos como se fossemos íntimos do Mestre Tempo. Duas situações que assumem agora uma carga impossível de suportar para aqueles que esperam pelos seus no silêncio do mar.

Como lhes falará Deus hoje?
Como lhes será possível esperar outro que não seja o seu menino ou a sua menina que desapareceu no mar?

20131206


Hoje, o Gusto faria anos. Faria já não faz, porque morreu há pouco tempo sozinho, no hospital. Na altura as minhas filhas souberam que ele estava no hospital com prognóstico muito reservado: a vida que escolhera levar rebentara-o todo por dentro. E ele sabia-o. Dissera-mo há alguns anos quando, numa das minhas idas aos sem abrigo, estivéramos juntos na estação de S. Bento. Eu sempre gostei dele, ele sempre gostou de mim e dos meus, e no entanto, apesar da insistência delas, não consegui ir vê-lo ao hospital. Por falta de tempo, dizia eu para mim e para os outros, sabendo no entanto que, se quisesse mesmo ir, tempo era o que não me faltava.

Neste tempo do Advento tenho andado com a mochila na cabeça. O que carrego eu, todos os dias, na minha mochila? Para que é que reservo eu espaço na minha vida? Que coisas são apenas coisas, são apenas imensos nadas, que servem para rigorosamente nada, que servem apenas para me atrapalhar o passo e me darem a sensação de vida importante, ocupada, cheia, ainda que de coisa nenhuma?

Hoje, a minha mochila pesa-me, está cheia e não é de boa coisa. Também por causa do Gusto. Por vezes, quando me atrevo a olhar para dentro da minha mochila com olhos de ver, sem ficções, sem pinturas embelezadoras da realidade, fico envergonhado. Porque adiei o inadiável, porque me quis convencer que não era assim tão importante, porque me convenci que era muito importante, porque deixei que o marfim corresse sem tomar uma decisão, sem assumir uma atitude, fugindo por entre os pingos da chuva, porque não fui suficientemente coerente para olhar a responsabilidade nos olhos... são momentos importantes, que fazem tão parte do que sou como aqueles em que sou orgulhosamente feliz nos meus gestos e nas minhas atitudes. São momentos que faço por esquecer, por varrer para debaixo do tapete, mas que volta e meia me revisitam e têm o condão de me por no lugar.


“Não podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço de encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger do que para unir e integrar.  (…) O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão e fecunda a cidade.”

Evangelli Gaudium, 75

 

Nunca é fácil falar ou escrever do que nos mexe cá por dentro. E o Espaço RAIZ mexe cá por dentro. Partilhar a vida com quem, para o bem e para o mal, não tem filtros, para quem tudo é genuíno, todas as emoções e reflexos estão sempre à flor da pele, deixa marcas profundas. Conquistar o respeito e o carinho de quem se habituou a ser mantido nas bordas de uma sociedade que teima em ser madrasta, é uma tarefa que implica uma entrega e uma perseverança que não se compadece com caprichos momentâneos ou fugazes estados de alma. Não que seja tarefa para super homens ou super mulheres, mas porque é uma vida feita de avanços e recuos, onde cada dia é um dia, onde cada manhã é uma oportunidade para recomeçar tudo de novo, como se não tivesse existido ontem.

O Espaço RAIZ pretende ser - tem que ser! - justamente esse espaço onde é permitido recomeçar sempre, todos os dias, a todas as horas, qualquer que seja a falta cometida. Onde um castigo  - porque também os há – não pode durar mais que um reforço positivo, para que cada um perceba que há uma outra forma de ser, de fazer, de se fazer, que escapa às garras daqueles que, do outro lado da avenida, traficam a vida em pequenos pacotes de dependência e miséria.

O Espaço RAIZ pretende ser – tem que ser! – um lugar onde as pessoas se sintam seguras, acarinhadas, dignas de serem respeitadas e amadas. Um lugar onde coisas tão básicas como a partilha das dificuldades e das alegrias, o respeito pelo outro, a manutenção do espaço e até a preocupação com a higiene - coisas que, em condições normais, acontecem no seio familiar - se fazem quotidianas até encontrarem o seu lugar na normalidade do dia a dia.

O Espaço RAIZ pretende ser – tem que ser! – um lugar de descoberta e de encontro, pessoal e comunitário, de trocas de experiências, de aprendizagens mútuas, de olhares cruzados entre crianças, jovens, adultos e idosos, por forma a se conseguirem ler uns nos outros, identificar uns nos outros, conviver uns com os outros, numa (re)descoberta feita de muitas vidas que, apesar de serem fisicamente tão próximas, são separadas por um mar de dificuldades e conflitos.

Não conheço outra forma de tentar fazer isto tudo que não seja o de meter a mão na massa, o de estar lá, o de partilhar as suas conversas e brincadeiras, o de ir tentando, discretamente, com tempo, com muito tempo, sem imposições, fazer com que acreditem em si e nas suas capacidades. Que acreditem que ir à escola vale a pena, que estudar vale a pena, que trabalhar vale a pena, que empenhar-se a fundo para crescer vale a pena, e que, cedo ou tarde, todos nós, qualquer que seja a nossa circunstância pessoal, precisamos de aprender a fazer e a respeitar compromissos. E, fundamentalmente, fazê-los acreditar que são dignos de construir o seu futuro, que não estão condenados, à partida, a viver nas bordas, a viver das bordas, e que, no lado certa da avenida, encontram quem se preocupa genuinamente porque os ama genuinamente.
 
Texto escrito para a revista do Colégio
 

20131202


Quando, no âmbito de um trabalho para faculdade, me perguntou como me preparara para o Caminho, respondi que normalmente não me preparo: meto meia dúzia de coisas na mochila e deixo-me ir. Se a pergunta tivesse sido feita em relação a Taizé, a resposta teria sido idêntica. Nunca me preparo a sério para essas coisas: encho a mochila com o mínimo e abandono-me nos braços de quem me ama.

Este despojamento, que tanto bem me faz, não acontece, contudo, no meu quotidiano. Aí tenho sempre a sensação que tenho que pensar em tudo, que preparar tudo, que organizar tudo, por forma a não desapontar aqueles que contam comigo. E a cabeça vai enchendo, a vida vai enchendo, e nem a almofada serve de consolo porque é justamente quando pouso a cabeça na almofada que os acontecimentos passados e futuros me assaltam e perturbam o sono. Em vão, claro. Porque, por muito que me avie em terra, o mar alto é imprevisível e escapa com facilidade aos meus anseios e desígnios.

Há, nos tempos litúrgicos que vão pautando a vida na fé, uma sabedoria que mereceria uma muito maior atenção da minha parte. Uma sabedoria laboriosamente construída ao longo de séculos, alicerçada na vida por pessoas que intuíram o que seria melhor para nós, para o nosso ritmo de vida, para o nosso encontro connosco e com os outros. Este tempo do Advento, que nos pede uma paragem para podermos esvaziar os bolsos e encher as almas, é disso um excelente exemplo. Se quisermos, se a isso estivermos dispostos, podemos chegar ao Menino como Ele está, despojado, confiante, abandonado aos braços de quem O ama.

Por vezes penso que há qualquer coisa de muito contraditório nesta necessidade de nos despojarmos do que quer que seja. É quase insultuoso, como quando temos que fazer regime para não engordarmos. Na realidade, mais do que vivermos acima das nossas possibilidades, vivemos muito acima das nossas conveniências, do que é o melhor para nós e, lentamente, vamo-nos deixando enredar, como rã em lume brando. E os tempos litúrgicos, como o Advento ou a Quaresma, têm, pelo menos, o condão de tentar introduzir alguma racionalidade nesta nossa forma de vida, que é profundamente irracional. Irónico, não é?

20131127


"Não vos inquieteis, procurando a causa dos grandes problemas da humanidade; contentai-vos em fazer o que puderdes pela sua resolução, ajudando aqueles que precisam. (...) Por mim, faço tudo o que posso; quanto ao resto, não me compete."

Por vezes discuto com um amigo, que tem sempre grande relutância em participar nos vários Projetos em que estamos envolvidos. Que ajudamos quem não precisa, que faz tudo parte de um enorme esquema conspirativo para que alguns fiquem bem na fotografia, que serve apenas para iludir as nossas consciências, que se as pessoas gastassem o dinheiro no que vale a pena em vez de irem fumar para os cafés as coisas seriam diferentes, etc. São argumentos gastos, que no princípio ouvia quase todos os dias mas que agora, talvez porque vejam que não adiantam, vou escutando cada vez menos.

No caso deste amigo, no entanto, os seus argumentos são puramente racionais, não passam de desculpas para não se incomodar e, mais importante, entram em clara contradição com o que sente sempre que se permite olhar à sua volta. Por isso, sempre que é mesmo preciso, não hesito em recorrer a ele porque sei que, seja por respeito a mim e ao meu trabalho, seja porque no fundo sabe que as coisas apenas se vão resolvendo quando metemos as mãos na massa, nunca me deixa ficar mal.

O curioso disto tudo é que eu poderia facilmente estar do lado dele, dos que mandam as bocas, dos que encontram todas as boas desculpas para não fazer nada. Não tivesse eu tido um motor fora de borda que não desistiu enquanto não me meteu o bichinho e eu seria mais um da enorme multidão de opinadores de sofá, dos que sabem sempre exatamente qual seria a solução de todos os problemas mas nunca levantaram o dito cujo para fazer coisa nenhuma. E eu, bom como sou a inventar desculpas, seria provavelmente um dos melhores opinion makers do país.

Mas perdi-me. Temos pena!

20131126


Não são muitas as pessoas que conheço que têm o condão de transformar dificuldades em oportunidades de encontro. Hoje, logo pela manhã, recebi um telefonema a pedir (pedir mesmo, não solicitar) a minha colaboração por causa de um contratempo. Lá resolvemos a questão, sem grande dificuldade, e a coisa rolou. Recebi agora uma mensagem sua com um "obrigada e desculpa". Simples, eficaz e muitíssimo agradável.

Uma das coisas que enchem mais os meus dias é quando tenho a sensação que aprendi alguma coisa. Então se forem destes gestos, atitudes, demonstrações de sabedoria profunda, daquelas que implicam os calcanhares bem assentes no chão mas que estão aí para todos os que as quiserem absorver, deixam-me ainda mais feliz. São pessoas assim que me fazem sentir privilegiado por viver os meus dias da forma como os tenho vivido.

Ainda há pouco falava com alguém do Fredo, um (ainda) miúdo do Bairro com quem tenho aprendido muito. No Espaço onde ambos trabalhamos nunca o ouvi a berrar com os miúdos, a falar com eles sem ser olhos nos olhos, baixando-se até que os seus olhares estejam ao mesmo nível. E nunca os vi a respeitarem ninguém como o respeitam. No início, a minha atitude era profundamente contrastante com a sua, achava que me devia impor como um leão se impõe na selva para que depois, magnânimo, lhes permitisse ser. Profundamente errado, como quase sempre, aliás. Agora, depois de uma muito lenta aprendizagem, lá vou conseguindo fazer como ele, conversando com calma e olhos nos olhos, e tenho apreciado ver como é muito mais eficaz para ambos.

Não raras vezes, quando olho para mim e comparo as minhas atitudes com as de outros que me rodeiam, sinto-me profundamente envergonhado. Pudesse eu fazer um reset, ou um freeze, e certamente o faria com todo o alívio deste mundo. No entanto, a vida é justamente isto: irmos aprendendo, irmos bebendo uns dos outros o que todos nós temos de melhor para dar. E eu, que tenho a. sorte de viver no meio de sábios, só não aprendo se for mesmo nabo. O que às vezes acontece. Muito mais do que gostaria.

20131119


Li no Público um curtíssimo artigo da Bárbara Reis acerca do nosso Papa, "Um Papa que nos obriga a olhar". http://tribodejacob.blogspot.pt/2013/11/barbara-reis-um-papa-que-nos-obriga.html
Lembrei-me imediatamente de um encontro recente que tive onde se pretendeu que se discutisse a fé, na forma como a celebramos e vivemos. Bastaria aquela foto, aquele recorte de jornal, e teria valido a pena irmos a Fátima.

Na realidade, como cristãos, como pessoas, temos muito a aprender com este Francisco. Continuamos a viver nos mesmos moldes, encarcerados nas nossas realidades fechadas enquanto ele, alegremente, nos indica o caminho a seguir. Ainda há pouco tempo, numa das reuniões em que pensamos a fé, discutíamos a importância da paróquia, a centralidade da paróquia, para que, supostamente, fiquemos unidos à Igreja. Continuamos a não querer ver como a vida hoje se faz de lugares abertos. Continuamos a não querer ver como a comunidade hoje nada tem a ver com a comunidade de há 15 anos atrás. Continuamos a não querer ver como, particularmente os jovens, se sentem uns nos outros em espaços que nada têm a ver com os locais de residência que não são seus mas dos seus pais. E, o mais trágico, é que continuamos a não querer ver como desperdiçados a sua fome de Verdade ao negarmo-nos a ir ao seu encontro, ao persistirmos na tentativa vã de os encarcerar nos nossos próprios moldes mentais.

Francisco, com estes gestos simples, mas não inocentes, porque sabe que serão vistos em todo o mundo, dá-nos pistas e força para que não tenhamos medo de desconstruir o mundo em que vivemos. Aos poucos vou aprendendo com ele que afinal a sua tarefa mais árdua não é desmontar toda a máquina politica da cúria. É outra, porventura bem mais difícil: é incomodar-nos, inquietar-nos, levar-nos a levantar o rabiote para podermos ir ao encontro do nosso tempo.

Porque é aí que os jovens vivem.
Porque é aí que queremos que Cristo viva.

20131113


Detesto quando tenho que vestir um fato que não sinto como meu. Mas por vezes tem que ser. Principalmente no meu papel de pai.

Considero que saber é absolutamente fundamental. Porque me permite situar-me no mundo que me rodeia, porque me liberta, porque me dá o poder de discernir o certo e o errado, porque me dá as armas para decidir o melhor em cada momento, porque evita que seja um boneco em mão alheias, porque me capacita para ajudar a construir um mundo melhor. Um dos momentos mais marcantes da minha vida foi quando descobri, já quase adulto, que havia pessoas que trabalhavam para pagar a faculdade. Toda a vida me tinha sido dito que a faculdade era para meninos bem, para ricos, e eu, que a partir de determinada altura descobrira um imenso gosto pelo saber, senti-me roubado na minha possibilidade de futuro. Lembro-me que pensei "assim também eu!", um desabafo que hoje me acompanha muitos dias no Centro Comunitário.

No entanto, se tenho o saber como absolutamente fundamental, o canudo a mim não me diz absolutamente nada. A tal ponto que fiz os cinco anos da faculdade com um imenso gozo e agora peno com os dois passos finais porque não acredito que acrescentem nada ao meu saber. E se faço questão de acabar nem sequer é por mim mas pelos meus filhos e pela minha mais-que-tudo, que fizeram sacrifícios para que eu pudesse estudar o que gosto.

Por isso entendo tão bem o meu mais novo: um puto imensamente feliz, com um sorriso enorme, mas que não tem o killer instinct que os irmãos têm em matéria de escola. Se se preocupa com as notas não é porque lhes dê importância em si mas pelo que sabe que os resultados menos bons provocam em nós (muito mais na mãe e nos irmãos que em mim). Por isso estuda com um motor fora de borda, o que faz toda a diferença. Eu finjo-me muito preocupado, visto o fato de pai, dou uns ralhetes, sento-me a estudar com ele e tento - aí sim, cm o meu próprio fato - fazê-lo sentir a importância do saber e de conseguir transmitir aos outros o conhecimento. "Não estudas para fazer testes, estudas para saber e as notas dos testes resultam do que sabes."

O que me vale é que sei que muito do que se vai construindo na minha relação com os meus filhos resulta justamente destes momentos aparentemente inofensivos. Passito aqui, calcadela acolá, empurradela mais adiante, e vamos construindo um mundo apenas nosso que nos permite estabelecer pontos de comunicação que, mais tarde - sei-o por experiência com os outros filhos - são preciosíssimos para continuarmos a caminhar juntos.

E isso é o que importa.

20131112


Gosto assim. Sem contar, entra-me pela porta dentro, com um enorme sorriso, que apenas a alegria do reencontro pode proporcionar. A conversa solta-se, toma conta do nós, e falamos de coisa nenhuma, típico daqueles que não precisam de bater à porta da intimidade alheia, simplesmente porque esta não está lá. Os limites há muito foram ultrapassados, as janelas - as da alma -  escancaradas, e tudo é terreno conhecido, atempadamente apropriado, sem zonas de segurança, sem zonas de desconforto.

Não são muitas as pessoas com tamanho privilégio. É preciso vida vivida, partilhada, com uma dose qb de sofrimentos e ultrapassagens por dentro e por fora, com algumas dúvidas, com muitas descobertas e redescobertas e vontade e abertura e segurança suficientes para se permitir refazer por dentro a cada conversa, a cada discussão, a cada etapa. E o tempo, o inevitável, inelutável, o Mestre Tempo, a permitir respirar nos entretantos, a potenciar a saudade, a refrescar a memória das coisas boas, a desvalorizar a menos boas, a despertar a fome do reencontro, a permitir que a saudade de lugar à alegria do olhos-nos-olhos.

São muitas as vezes em que acredito que a alegria do encontro - qualquer que seja a forma de amar que está na sua génese - é a única coisa que vale a pena viver. Intensamente!

20131108


Não é mesmo possível servir a dois senhores.

Uma das maiores questões da minha vida é a minha dificuldade em estar. Eu, que gosto tanto de estar, que faço tanta questão de estar, desespero quando não consigo estar como queria, com todos quantos queria, e, principalmente, com quem esperaria que eu estivesse. Por causa disso tenho muitos amargos de boca, sinto-me muitas vezes culpado por não conseguir cumprir com quem sinto que me comprometi.

Na minha vida, volta e meia tenho que parar e forçar-me a recordar da hierarquia das pessoas com quem me comprometo. Recordar-me para quem sou verdadeiramente fundamental, quem depende de mim, tentar discernir se estou a conseguir ser qualquer coisa de jeito como pai, como marido, como amigo ou confidente, se estou a conseguir ser esteio de coisa alguma, como é suposto ser. 

Nessas alturas lembro-me invariavelmente do meu pai, que os meus amigos invariavelmente admiraram e admiram pela sua disponibilidade, abertura e eterna juventude. Lembro-me que muitas vezes eu tinha dificuldade em reconhecer a pessoa de quem eles tanto falavam, e que me parecia ter tão pouco a ver com aquele homem que, para mim, era apenas o meu pai. 

Houve um tempo na minha vida em que pensei ser padre. Depois descobri que queria muito mais ser pai e marido e ter uma esposa que amasse todos os dias e ter uma família da qual me orgulhasse todos os dias e ser feliz para sempre. Apesar de ter conseguido essas coisas todas, volta e meia descubro-me dividido entre a disponibilidade para os meus e a disponibilidade para os outros. quando me volto para uns os outros queixam-se sempre e eu tenho que fazer este exercício de corda bamba, quase sempre sem sucesso. Então respiro fundo, tento serenar-me, baixar as minhas expectativas, e voltar a calçar os meus tamanquinhos: afinal, não consigo servir a dois senhores, não consigo ser tudo em todos. 

Resta-me tentar ser algo em alguns.

20131021


Eu sei que é estúpido, mas nunca me vi como fisicamente frágil. Tive sempre a sensação que, fisicamente, era capaz de tudo. Poderia levar um certo tempo, poderia exigir um trino especial, mas não há nada que nunca tivesse conseguido. Talvez por isso tivesse uma altura em que gostasse tanto do ginásio: fazer exercícios de pernas com mais de 100 kgs dava uma enorme sensação de impunidade.

Aliás, a primeira vez que senti limitação física foi no Caminho. Cometi a sobranceria de não fazer qualquer preparação e o segundo dia custou-me horrores. Lembro-me dos últimos 5 kms desse dia como dos momentos em que mais tive que me superar. E que comecei a aperceber-me que já não tenho 20 aninhos.

Hoje, por sinal, fiquei de cama o dia todo. Gripe, penso eu, que destas coisas não percebo nada. Febre, dores nas articulações, intensíssima dor de cabeça e tonturas quando me ponho de pé. Nada de importante. O que importa mesmo é que, quando estou assim, vivo como que um regresso à infância. Não sei o que fazer, sinto-me completamente à mercê dos outros, e anseio pelas rápidas melhoras.

É vulgar dizer-se que a saúde é o melhor dos bens. Se salvaguardarmos a saúde daqueles que amamos - que é mais importante que a nossa - assino por baixo sem qualquer dúvida. Quando o corpo dói, quando não sentimos forças, quando nos encontramos limitados, é que damos valor ao que normalmente temos... e não agradecemos. É também nestas alturas que percebemos melhor aquelas pessoas que nos rodeiam e não estão já na flor da idade e de quem nos queixamos tanto por ouvirmos constantemente as suas queixas. Pessoas como a minha sogra, por exemplo, que hoje, mesmo a mancar, lá me serviu o almoço e o lanche com todo o carinho.

Valha-nos sermos uns para os outros.

20131018


Ontem à noite, enquanto íamos para casa, dizia que atravesso um período de verdadeira felicidade profissional. Corro como o caraças, os meus dias são demasiado curtos, mas tenho chegado à cama sempre com a sensação que foi um dia bom. Uma das minhas filhas disse que era espantoso que eu, depois do que estudei , trabalhei e sofri noutras áreas, me encontrasse finalmente a fazer o que eu faço.. e que adoro fazer!

Apesar de gostar muito de conversar com os meus filhos, de estar sempre atento aos acontecimentos das suas vidas - sobretudo à forma como vão lidando e superando os acontecimentos menos bons - apesar de eles me lançarem aqueles olhares que apenas os filhos lançam aos pais quando sabem que vem aí conselho moral, apesar de não conseguir - nem querer - evitar esse momentos de cima para baixo, sei bem que nada fala mais alto que o exemplo. O facto de os meus filhos terem sentido na pele, da forma mais dura, os efeitos do meu insucesso profissional e pessoal, o facto de eles terem escolhido estar sempre do meu lado, o facto de eles poderem ver, agora, como as coisas também podem resultar, o facto de eles terem experienciado já como podemos ser felizes correndo muito e trabalhando muito e estudando muito e dando muito, tudo isso tem sido uma verdadeira escola de vida para todos nós. Sabemos todos agora que sucesso e insucesso podem ser apenas meras palavras, se tivermos junto de nós aqueles que mais nos amam. Sabemos todos agora que, na vida, há altos e baixos, e que não podemos embandeirar em arco quando as coisas correm bem nem ficar nas covas quando correm mal. Sabemos agora que apenas viver no amor - ainda que não se fale nesses termos porque essa expressão é demasiado fatela - nos dá garantias de ter sucesso na vida.


20131010


O meu sogro, homem de parca formação mas de enorme visão - e que me topou logo que me pôs a vista em cima - achou sempre que eu falava demais, que tinha um lado basófias que lhe custava mito a engolir. E não se enganou.

No sábado fui buscar os tios velhinhos ao lar onde tinham ido fazer uma experiência. Era suposto ficarem lá um mês e não aguentaram sequer uma semana! Quando lá cheguei fomos todos visitar as instalações Não eram nada de especial, nem boas nem más, mas não foi isso o que me impressionou. O tio dizia insistentemente que não se via ninguém, que ninguém ia para a sala de jogos "3 bilhares, Zé, e ninguém vai para lá" que a biblioteca "com mais de 1500 livros!" estava sempre vazia "só lá tem um velhote que pega no Notícias de manhã e nunca mais o larga" e que, fora isso, não se via ninguém "nem nos jardins, nem nos parques, nem nos corredores". Como sempre, achava que ele estava a exagerar: não era possível que uma casa com mais de duzentos velhinhos estivesse assim tão vazia.

No sábado percebi.

Enquanto ele me andava a apresentar os cantos ao Lar vi muita gente, efectivamente, E não vi ninguém. Vi velhos e velhas encatrafiados em salas de estar, sentados em cadeiras de rodas ou em sofás gastos, a cabecear de sono, com o olhar ausente, enquanto a televisão debitava qualquer coisa à qual eles não ligavam nenhuma. Em cada sala estariam 6 ou 7 mas nenhum deles conversava, nenhum deles sequer reagia à medida que íamos passando, iam-se deixando estar. Vi montes deles na enfermaria "é duro, não é, Zé? Mas não podemos deixar de vir aqui para ver a realidade", completamente amorfos, sem dar por nada. à medida que íamos passando pelos corredores ele ia-me apontando as portas dos quartos fechadas "a este morreu-lhe a mulher...  esta, nunca a vi, nunca sai do quarto... este não faz nada sozinho... este está maluco, não diz coisa com coisa" numa sucessão infindável de misérias e, sobretudo, de solidões.

Francamente, nunca antes me tinha apercebido com tanta crueza como é possível estar tão só no meio de tanta gente! Aqueles velhos estão lá, sentados, permanentemente sentados, à espera que o tempo passe. Imagino-me no lugar deles e imagino o tempo - o Mestre Tempo, como pomposamente lhe chamo - com uma crueldade que não lhe conhecia, com uma impiedade que não lhe conhecia. Imagino-me no lugar deles, sem nada que me aqueça os dias, com as horas a sucederem-se à custa dos minutos, que vão devorando longos segundos, com cada manhã a ser irremediavelmente igual à manhã anterior, antecipando a fotocópia da manhã seguinte, e imagino-me a dar em doido.

Regressamos à sua casa e foi vê-los felizes da vida, a serem acolhidos pelo gato, pelo seu lar de sempre, por todos nós, a reganhar vida. Dão um trabalho do caraças, são mito chatos estão sempre a discutir, mas nessa noite dormimos todos melhor porque eles estavam lá, apenas duas casas acima das nossas.

Sempre disse que, quando fosse velho, gostaria de ir para um lar.

O meu sogro é que a sabia toda!

20131009


Há quanto tempo não te faço eu uma oração
Há quanto tempo não disponho do tempo
e da serenidade
para me encontrar contigo
Há quanto tempo não pego no teu tempo
- que eu penso sempre ser o meu tempo! -
para to restituir, livremente,
calmamente,
como quem pega numa cadeira e se senta à sombra moçambicana e deixa o olhar fluir
como quem pega num terraço
e lhe junta a lua
e deixa a noite fluir
Há quanto tempo não me encontro connosco
não converso connosco
não repouso o olhar em ti
e em mim
para interromper esta sensação de sofreguidão
que eu tanto detesto mas que me vicia, que me impele a prosseguir, que me faz correr, meio sonâmbulo, sem sequer me aperceber como deve ser da vida que passa por mim
e em mim
e de mim
e até mim
Há quanto tempo não me sento e
junto de ti
e em ti
te digo: ok. Chuta.
e me deixo estar, de olhos bem fechados
a escutar os carros que passam lá fora
a as crianças que brincam nos corredores
os sons e os sinais que são vida
que testemunham vida
e me descubro a dar-te graças pela vida
pela correria
pela sofreguidão com que vivo

Sinto a falta desse tempo
no entanto acredito
- quero acreditar? -
que a correria, a sofreguidão, o sonambulismo, esta sensação de estar a correr contra o tempo,
tem o teu nome
tem o teu sorriso
tem o teu apelo
no entanto acredito
- quero acreditar? -
que é por ti
e em ti
e em mim
e nos outros
que eu corro.

bom dia, pai

20130930


Uma das minhas características que tradicionalmente mais problemas me trazem é a forma como eu discuto as minhas ideias. Facilmente me deixo envolver pelo calor da discussão e, diz quem me ouve, que o meu tom de voz por vezes se torna demasiado agressivo. Raramente tenho outra intenção que não seja discutir as ideias pelas ideias. Gosto muito do calor de uma boa refrega, gosto muito de quem tem a capacidade de me colocar em causa - o que, em alguns assuntos, não é fácil - e, invariavelmente, respeito quem tem a capacidade de argumentar racionalmente os seus pontos de vista, por muito díspares que sejam dos meus. Como já referi por aqui algumas vezes, o que não posso é com o encolher de ombros, o tanto se me dá, que se vai tornando cada vez mais normal.

Ontem, dia de eleições, só podia dar discussão política lá em casa. Calorosa, como qualquer discussão. No final, disse à minha filha que gosta de politica como eu, que tenho um imenso orgulho quando confirmo que os meus filhos têm capacidade de argumentação e conseguem ombrear comigo nestas discussões. Se há coisa que sempre me preocupou como pai foi em ter filhos que tivessem capacidade para pensar, que se soubessem posicionar na vida, que assumissem batalhas sem medo de dar o corpo às balas por aquilo em que acreditam. Por vezes não é fácil, porque por vezes acreditam naquilo que eu preferia que não acreditassem, mas mesmo essas alturas são um bom motivo para apresentarmos os nossos argumentos e escutarmos - por entre as vozes alteradas - os argumentos alheios. Em boa verdade, gostaria que as coisas acontecessem num outro tom, mais calmo, quiçá mais civilizado. Mas eu discuto como vivo: com tudo o que tenho e sou. E muitas vezes sou mal entendido por causa disso.

20130926


Com a inauguração do novo Espaço, veio a já esperada onda de velhinhos. Para já apenas chegam, ávidos de conversa e de atenção, com um enorme sorriso, apreciam o espaço e inscrevem-se, cheios de vontade de voltar. Apesar de gostarmos muito de os acolher, para nós, tudo isto está, neste momento, repleto de incógnitas. Não estamos habituados a trabalhar com pessoas destas idade, e quando o objectivo é que permaneçam algumas horas junto de nós, muitas questões se levantam. A primeira chegou justamente com o primeiro velhinho, que, visivelmente debilitado, vinha numa cadeira de rodas. Calculamos logo que seja preciso acompanhá-lo quase permanentemente, nas idas à casa de banho, nos lanches, nas conversas. É bem diferente de lidarmos com os miúdos irrequietos e vivaços, que transbordam energia e vida, e que nos têm preenchido os dias. Por isso iremos tentar apostar no intercâmbio entre ambos, em criar oportunidades para a troca de experiências, de convívio comum, que tão arredado anda da nossa sociedade. A intenção não é separar mas unir, enriquecer mutuamente, tornar aquele Centro o local que falta nas casas e nas famílias de cada um.

Curiosamente, enquanto uns entram nas nossas vidas outros decidem experimentar sair. Uns tios nossos, velhinhos e sem filhos, decidiram experimentar umas férias - forçadas - num lar. Será temporário, pois mantêm a casa deles à qual regressarão ao fim de semana, mas nos seus olhares já se vê a desilusão e o medo. Apesar de irem para um lugar com condições bem melhores que as que têm em casa, apesar de irem para um lugar onde podem estar bem mais acompanhados, apesar de irem ter um lugar apenas deles - têm lá um apartamento - para todos os efeitos saem da sua casa porque não conseguem quem cuide deles como eles precisam. E isso é sempre uma derrota. Há já vários anos que a Isabel vai a casa deles todos os dias depois do jantar e aí permanece mais de uma hora a conversar, a cuidar dos medicamentos, a lavar-lhes os pés, com uma entrega tal que me recorda todos os dias porque a amo tanto. No entanto, apesar da sua dedicação, não nos é possível estar lá em casa deles todo o dia, nem sequer que eles venham para nossa casa. E ultimamente os acidentes vão-se sucedendo: a comida que queima, a porta que fica aberta indefinidamente, os óculos que não se recordam onde estão, os medicamentos que se trocam... Apesar do imenso que nos custa, sabemos todos que é chegada a hora de ser tomada uma decisão, sob pena de se tornar demasiado tarde.

Desde miúdo que aposto na minha velhice. No tempo em que terei tempo, no tempo em que poderei ler, caminhar, viajar, namorar, desfrutar da vida como se não houvesse amanhã - até porque qualquer dia não haverá. Estes contactos com os velhinhos não me roubam essa esperança na minha própria velhice. Pelo contrário! Acredito ainda mais que vou ser um velhinho bem feliz. A minha mais-que-tudo diz que não, que vou ser chato como o caraças. Curiosamente, os meus filhos também dizem o mesmo. E quem me conhece bem também. Mas eu não acredito. O que eles têm é ciúmes de eu vir a ser um velhinho feliz.

20130923


Acontece-me isto, por vezes: olho, olho e não vejo nada.

Na semana passada deparei-me com esta frase e não a percebi. Não podia, de facto, tal era a correria em que estava metido. Reuniões em cima de reuniões, preparações em cima de preparações, e eu passo, de repente, a estar em "modo trabalho". Fico completamente focado no imenso que tenho que fazer, no imenso que tenho que preparar, na ânsia que não falte nada, que não escape nada, para que depois, quando a altura chegar, possa usufruir. Não é mau que assim aconteça, pelo contrário. A questão, no entanto, é que nessas alturas tudo o que não é trabalho me passa quase completamente ao lado. Quando chego a casa lá vou conseguindo alguma disponibilidade para os que amo, mas  nem sempre a cabeça está lá.

Nem mesmo quando durmo!

Houve um tempo na minha vida em que eu funcionava em "modo trabalho" vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Não conseguia nunca descontrair verdadeiramente, não conseguia estar com os meus de corpo e alma, não conseguia encontrar tempo ou disponibilidade mental para fazer uma pausa, para separar as águas. Desses tempos ficou-me ainda uma verdadeira incapacidade de estar mais de quinze dias longe do que tenho que fazer. Ainda este ano isso me aconteceu! Nessa altura fui um completo desastre, para mim, para o meu trabalho, e muito particularmente para aqueles que me amam. Quando tive a oportunidade de me refazer, prometi que nunca mais deixaria que voltasse a acontecer.

E cumpri.

Esta semana a custo. A muito custo. Mas cumpri.

20130909


O medo de ser feliz faz-me muita confusão. Aquela coisa de "estou muito bem, alguma coisa está para me acontecer" que impede as pessoas de saborear o momento, de sentir verdadeiramente, abertamente, sem medos ou reservas, como se tivessem medo de subir muito alto só para não caírem. Todas as pessoas que conheço que têm esta tendência são muito mais lestas em sentido contrário, exacerbando o negro como se nunca tivessem visto luz, quase como se encontrassem nessa escuridão o sentido para os seus males. E o pior é que vivem tão à espera que algo mal aconteça que quando acontece - e acontece sempre a todos nós - dizem, cheios de razão: "Vês? Eu não te dizia? Tu nunca vês a realidade!"

Há pouco tempo, num extraordinário encontro de formação, uma das nossas irmãs disse-nos que, durante o seu processo de discernimento, lhe foi pedido para escolher a passagem bíblica que definiria a sua vida. De seguida, deu um breve tempo a cada um dos presentes para pensar qual seria a sua e pediu-nos para o partilharmos. Eu, que nunca tinha pensado nisso nesses termos, não tive dúvidas e escolhi Job 2, 10.

Job foi quem primeiro me seduziu na Bíblia e foi o livro que mais me acompanhou desde que me lembro. A forma como via o que ia acontecendo na sua vida, a naturalidade com que aceitava as coisas boas e as coisas más, contra tudo e contra todos, e a confiança que mantinha em Deus, apesar de todas as vicissitudes, serviram-me muitas vezes de consolo e, fundamentalmente, de guia. Creio que é também por causa de Job que não tenho medo de viver tão intensamente.

Porque razão não o deveria fazer?

20130908


Grande noite, a de ontem, com a confirmação que temos mais dois filhos na Faculdade. E nos cursos que foram a primeira opção de cada um, o que é muito importante! Claro que as coisas se vão complicar um pouco mais cá em casa. Ter 4 filhos na faculdade não é propriamente fácil, mas, como sempre, há que manter a cabeça fria, respirar fundo, e dar Graças por cada dia que passa. E se alguém tem motivos para dar Graças, somos nós.

Muitas vezes olhamos para os nossos filhos completamente embevecidos. Há alturas em que não é fácil: todos somos de mergulhar de cabeça nos muitos projectos em que nos envolvemos, todos sofremos da mesma falta de tempo disponível, todos partilhamos a mesma dificuldade de viver as coisas pela metade, de discutirmos pela metade, de nos divertirmos pela metade. Cá em casa tudo é sempre muito tudo: muita música, muita diversão, muita discussão, muita alegria ou muita tristeza. Normalmente não há espaço ou sequer vontade de encolher ombros ou de viver alheados ao que se vai passando na vida de cada um. Os problemas de cada um são os problemas de todos, as conquistas de cada um são festejadas porque são de todos.

A primeira vez que colocamos a hipótese de vivermos sem a presença de um deles foi justamente no final do ano passado. O meu filho queria medicina e, como sempre, apesar dos excelentes resultados, não dava nada por adquirido. Começou a colocar a hipótese de ir para Coimbra ou Lisboa e de repente percebi que tinha que me começar a preparar para o Síndrome do Ninho Vazio, de que tanto tínhamos falado na Pastoral Familiar. Nós, que não estivemos mais que um mês casados sem filhos pois engravidamos logo no segundo mês, que temos sempre a casa cheia de canalha e de amigos da canalha, como iremos sobreviver sem filhos? Durante o mês passado tivemos um cheirinho dessa experiência, chegando a ter apenas 2 filhos em casa durante alguns dias. Era uma paz completa, com pouca louça para lavar, com a mesa da cozinha rebatida, com a casa sempre em ordem sem muita roupa para  arrumar, sem coisas espalhadas. Uma casa perfeita, como a minha mais-que-tudo aspira desde que a conheço, mas à qual faltava a confusão e a vida de que tanto gostamos. O que nos vale é o pequenito tem 13 anos (13 anos!) e, em princípio, levará ainda algum tempo a partir para outras paragens.

E, nos entretantos, confiamos que a casa se volte a encher de canalha. Desta vez, de netos ;-)

20130907


Uma das coisas que mais problemas me tem causado é o facto de não ser anti-nada. Normalmente não falta quem me exija a mesma radicallidade que sentem. Tanto de um lado como do outro das contendas em que algumas vezes me meto, nunca vêem com bons olhos a minha queda natural para ver o outro lado da questão, o papel de advogado do diabo que, quase sempre involuntariamente, me vejo a desempenhar. Daí à acusação de falta de personalidade é um pequenino passo, que é, aliás, muitas vezes dado. Por muito tempo isso incomodou-me bastante, até que me fui apercebendo que me incomodava ainda mais a minha infiidelidade a mim próprio, que por vezes levava a que fosse artificialmente radical apenas para me poupar.

Como não há regra sem excepção, a única radicalidade que me é visceral desde que me conheço é a do aborto. Mesmo nas mais duras e longas batalhas que tive na altura da discussão da lei - umas olhos nos olhos, outras nos vários fóruns da internet - nunca me conseguiram dar um argumento que me contrariasse a convicção que o aborto é sempre, sempre, o abuso do poder por parte de quem o tem sobre quem não o tem, e que, por muito má que seja a perspectiva de vida que uma criança possa ter, é sempre melhor que nem chegar a ter a possibilidade de vida. Aliás, vida é vida, ponto final.

Numa das melhores experiências de condutor de grupos de jovens que tive, o RH+, discutimos algumas vezes o aborto (interrupção voluntária da gravidez não passa de um eufemismo para esconder a crueza do acto). Porque o RH+ era um grupo cuja riqueza advinha muito do facto de ter nas suas fileiras muitos jovens sem qualquer percurso cristão, jovens que simplesmente andavam à procura e desaguavam no RH+, os nossos debates sobre estes temas ditos fracurantes eram sempre muito ricos e desafiantes. Se para alguém que teve um percurso cristão podemos argumentar com a religião, com alguém para quem a religião não diz muito, os argumentos têm de ser outros. O RH+ foi, também por isso, uma excelente escola para mim, pelo que tive que estudar, que aprender e que tentar transmitir.

Recordo-me que, numa dessas discussões sobre o aborto, alguns deles vinham com os casos estremados que na altura abundavam, de um e do outro, na comunicação social. E recordo-me também de lhes ter dito que não queria saber o que fazia a vizinha do 5º esquerdo numa situação dessas, mas qual a sua forma de estar, o que fariam se contactassem com um caso de possibilidade de aborto, na escola, no café, em qualquer outra situação. E então dizia-lhes para fazerem uma única coisa, para me contactarem, para dar o meu contacto à pessoa em questão, que eu conversaria com ela e depois tentaríamos resolver as coisas.

Não havia nada de demagogia na minha proposta. É minha convicção profunda que apenas podemos defender qualquer atitude se estivermos dispostos a meter as mãos na massa. Por isso ontem, quando vi que o Papa Francisco tinha telefonado a uma mulher que estaria disposta a abortar, lembrei-me do tanto que discutimos no RH+. E agora questiono-me ainda mais porque é que não vemos mais cristãos a fazerem isso, a irem ter com as pessoas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós. E se elas, no final de tudo, decidirem avançar com a sua decisão, escolhendo ignorar os nossos argumentos, acredito que é igualmente nosso dever permanecer junto delas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós.

Quem me conhece sabe que eu gostava muito de Bento XVI pela profundidade dos seus escritos. No entanto, começo a acreditar em Francisco pela sua insistência e disponibilidade em fazer-se efectivamente próximo das pessoas.

Parecem-me ser estes gestos as suas encíclicas por excelência.

20130906


Recebi uma sms: "Pai, disseram-me que aquele teu amigo que consumia está no hospital. E está mal."

Lembro-me de um retiro há uns largos anos em que ficamos no mesmo quarto. De manhã bem cedo, acordei com a sua tosse. Levantei-me e lá estava ele, no corredor, de cigarro na mão e janela aberta a deixar entrar o ar gelado. "Desculpa. Tive que vir dar de mamar aos queixos." Rimo-nos como sempre nos rimos juntos, porque nos sentíamos bem juntos.. Durante uns tempos vimo-nos muitas vezes. Ele tinha regressado de Espanha, onde quase se tinha acabado de perder, recuperara a custo, arranjara emprego, e participava nos nossos encontros. "Se na altura soubesse que havia disto nunca me teria metido nesta merda". Era bem mais velho que nós mas todos o acolhíamos com agrado no nosso seio. Era também uma conquista nossa, em parte uma mascote, e exercia em muitos dos mais novos o fascínio do filho pródigo. Contava-nos as histórias espanholas das suas descidas aos infernos que abundam no submundo da droga,  e terminava sempre com um aviso muito sério para que não caíssemos nas armadilhas.

Aos poucos o tempo foi passando, entretanto eu mudei de pouso e  volta e meia iam-me chegando notícias suas. Fora despedido, começava a pedir dinheiro emprestado aos do grupo que nunca mais devolvia, em sua casa recomeçaram os desaparecimentos de tudo o que era vendável, até que voltou a sumir-se. Passados uns anos, numa das rondas que na altura eu fazia aos sem abrigo, vi-o, em S. Bento, a dirigir-se para a carrinha. Trocamos abraços, palavras de circunstância, juras de voltarmos a contactar, e perdi-lhe o rasto. Na altura fiquei abalado e ele foi provavelmente o mais forte pretexto para deixar de ir aos sem abrigo.

O desconforto que sentia devia-se à sempre presente consciência que nada de substancial me separava daqueles a quem servia na carrinha amarela. Que os que se aproximavam de nós poderiam muito bem ser os meus vizinhos de infância, os amigos com quem brinquei lá no bairro, as namoradinhas que ia tendo quando era miúdo ou o meu primo que era arrumador na Praça Velasquez. Por isso nessa altura, quando o vi, envergonhado, a dirigir-se a mim, o espanto não foi muito, era apenas a confirmação que estava certo. Que aquilo que ditou a diferença dos nosso caminhos foi um "não" aqui, um "sim" acolá, uma família que, apesar de tudo, não permitia tudo, e fundamentalmente, uma escolha pelos amigos certos, uma descoberta - e mais tarde uma opção - pela divindade certa.

Mas poderia ter sido exactamente ao contrário.
Ainda não o esqueci.
E espero que nunca o esqueça.

Desde muito novo que estou habituado a lidar com o que eu chamo opinadores de sofá. E confesso que as suas opiniões não me merecem um respeito especial.

A última opinadora foi justamente uma da minhas filhas. Na minha paróquia temos uma coisa que se chama "Mesa de São Pedro" onde, todos os dias, várias equipas se vão revezando para que algumas das pessoas mais carenciadas possam ter algo que comer. Assim, todos os dias, ao jantar, é servida pelo menos uma sopa quente a quem, em princípio, mais precisa. Alguns de nós - os que querem - lá de casa, estamos ao serviço de 15 em 15 dias. Numa dessas noites, em que, necessariamente, chegamos mais tarde para jantar, a Mesa de São Pedro foi tema de conversa e uma das minhas filhas disse que não ia porque não concorda com aquilo, porque estávamos a perpetuar a miséria, porque nos limitávamos a matar a fome, porque aparecia lá gente que afinal não precisaria tanto como isso, porque... porque... porque... Depois de argumentarmos mutuamente disse-lhe que, se não concordava com o que estava a ser feito tinha duas hipóteses: ou vinha connosco e contribuía para solucionar aquilo com que não concordava, ou então respeitava aqueles que, ao contrário dela, não se limitam a ficar no sofá à espera que as coisas mudem caindo do céu aos trambolhões.

Fim da discussão.

Nestas alturas, lembro-me muitas vezes da Madre Teresa de Calcutá. Até porque, sendo eu um sofasista de gema, não me é nada difícil encontrar mil e um motivos para permanecer quieto no meu canto. Sempre que tenho que dar à perna, mil e uma questões me assaltam, e muitas delas são justamente aquelas que a minha filha advogou. E muitas vezes - provavelmente a maioria delas - se não fosse o meu motor fora de borda a puxar-me eu ficaria mesmo no sofá.

No entanto, ao fim destes anos todos, não encontrei ainda melhor forma de mudar as coisas, de mudar o mundo que me rodeia, que não seja arregaçar as mangas e meter as mãos na massa. Que posso fazer muito mais que dar de comer, ou que ensinar, ou que tentar educar, isso já eu sei. No fundo, trata-se sempre de tentar restituir a dignidade que muitos nem sequer acreditam ser um direito seu, de tal forma apanharam pancada a vida toda.  E isso, fazer alguém acreditar que é capaz, levá-lo a descobrir os seus próprios sonhos, convencê-lo que tem possibilidades de os alcançar, que pode lutar para conseguir torná-los realidade, eu nunca consegui fazer a partir do meu sofá, do meu pequeno mundo certinho e rodeado de harmonia e felicidade.

Por muitas boas ideias que tenha sobre o assunto.

Disseram-me ontem, ao final da tarde, que afinal os tinha enganado. Que afinal também eu estava a caminho, lá, no meio deles. Não o meu corpo, que esse estava em casa a essa hora, mas o meu corpo é apenas uma pequena parte do que sou.

No final das férias tive mais uma infeliz notícia da morte de mais uma amiga do nosso velhinho e saudoso grupo de jovens. Cancro, mais uma vez. Juntamo-nos, uma vez mais, no seu velório e, como sempre, reatamos as conversas que ficaram suspensas algures no tempo, conversando como se nunca nos tivéssemos separado. Os que pudemos, cantamos no seu funeral. Bastou um curtíssimo ensaio para sabermos e recordarmos o que iríamos cantar e fizemo-lo de forma profundamente identificada e sentida. Ao olhar para a igreja a abarrotar de amigos seus, pensei como, apesar de tudo, seria bom morrer assim.

Na vida não temo muitas coisas. E a esmagadora maioria das que temo estão muito mais ligadas àqueles que amo que propriamente a mim. Mas temo a solidão. Não a solidão física ou a que encontro quando a procuro, e que por vezes tanta falta me faz, mas aquela que poderá decorrer das minhas acções, das minhas atitudes, do meu desamor. A solidão que é consequência do desinteresse, do egoísmo, do umbigo sem limites. Por isso temo que, um dia,  ao olhar para mim, a única coisa que encontre seja um enorme vazio, um enorme nada, um buraco negro que tudo sugou à sua volta.

Uma das formas de me sentir mais feliz é a da redescoberta que habito e sou habitado. Que apesar de todas as vicissitudes, de todas as incongruências, de todas as fragilidades, tenho pessoas imunes ao tempo, para quem o tempo é o tempo de Deus e não o dos homens, para quem e com quem não existe o ontem ou o amanhã, mas que nos habitam de tal forma que tudo é - somos! - mutuamente, verdadeiramente, saborosamente, presente.

20130902


Uma destas noites, enquanto nos despedíamos, em família, das férias com uma caminhadazita na Foz, um dos sítios preferidos do nosso mundo, conversávamos como foi importante este tempo de reencontro. Deu para parar, para namorar, para fazermos coisas juntos e separados, para recarregarmos baterias, colocar o trabalho em ordem, para passearmos e conhecermos coisas novas. Um tempo muito bom e muito importante para nos reencontrarmos uns nos outros.

A minha mais-que.tudo passou uma parte substancial do tempo a tentar organizar a imensidão de fotos que estava espalhada por imensos álbuns, gavetas, livros e prateleiras. Durante mais de uma semana a nossa mesa da sala esteve impraticável tal era a profusão de fotos de passeios, aniversários, baptizados e comunhões. Como tudo o que se passa em família se passa em nossa casa, e ainda por cima somos muitos, temos um manancial de recordações verdadeiramente encantador e invejável.

Eu normalmente não ligo muito a fotos nem a este tipo de recordações. Como sou o fotógrafo de serviço, tiro bastantes, arquivo-as e raramente lhes volto a por a vista em cima. Desta vez, no entanto, foi incontornável fazê.lo. Não sem algum custo, porque descendo em linha directa de uma família de lágrima fácil e rever todos aqueles momentos da nossa vida é fazer uma viagem ao que de melhor fomos vivendo. Voltar a recordar os passos dos nossos filhos, as casas onde vivemos, as experiências, todas elas únicas, das nossas férias, dos nossos passeios, dos nossos melhores momentos - quem é que tira fotos dos momentos de dor? - das nossas conquistas mútuas e sempre partilhadas, é, de certa forma, voltar a vivê-las. E isso é muito bom.

Ontem à noite, por causa de um acontecimento que não é para aqui chamado, pus-me a pensar na imensidão que se tornou a minha vida apenas porque, nos momentos mais decisivos, tive a sorte de escolher o que devia, quem devia, e não me deixei encantar pelo mais ilusoriamente fácil.

Deus seja louvado!

20130808

O Bairro


Por estes dias tenho descansado mesmo. Aproveito para fazer coisas que gosto tanto e para as quais normalmente não tenho tempo: limpeza global do computador, leitura em ordem, dormir uma boa sesta, um sol e uma boa praia, caminhadas e conversas, e namoro, muito e delicioso namoro. Por entre esta azáfama de dolce fare niente de importante, fui a um batizado na Igreja de Ramalde. Por coincidência estavam lá alguns dos nossos miúdos e tivemos a alegria do reencontro de quem se quer bem.

Tanto eu como a minha-mais-que-tudo saímos desse reencontro verdadeiramente felizes. Uma das características mais vincadas desta malta é justamente a sua ausência de máscaras, o que torna tudo muito à flor da pele, muito natural. Como são tão efusivos nas suas demonstrações de carinho como nas de desagrado, não têm pruridos nenhuns em nos abraçar e nos apresentar à família toda por entre as mais sonoras gargalhadas.

Depois de nos despedirmos deles, enquanto íamos no carro para a festança do batizado para o qual tínhamos sido convidados, não pudemos deixar de conversar acerca da tremenda disparidade dos mundos em que estamos envolvidos. De um lado, o bairro com toda a sua crueza, com toda a sua naturalidade, em que tudo é muito tudo; do outro, a sociedade mais civilizada, educada, mas também muito mais controlada, com muito maiores barreiras. E entre eles, nós, e outros como nós, que na maior parte das vezes fazemos de ponte entre ambos, que, como os conhecemos a ambos, sabemos que nem nos podemos iludir nem desiludir em demasia.

Nestas alturas, é inevitável que eu questione a minha pertença. À porta da Igreja, tendo uns e outros tão perto e ao mesmo tempo tão distantes entre si, não conseguia para de me questionar a que lado pertenço verdadeiramente. Tenho a certeza que se me desse largas, se baixasse a minha omnipresente guarda, a minha resposta seria inequívoca: tudo aquilo que em mim é instintivo puxa-me para o Bairro, para as gargalhadas em alto som, para a dança mais rapioqueira, para a alegria mais à flor da pele mas também para a fúria mais intempestiva e irracional. No entanto eu, hoje, não sou apenas o Zé do Bairro da Câmara que fui durante anos. E sei que, agora, não quero baixar a guarda, não quero deixar de me ter debaixo de olho, não quero voltar ao Bairro naquilo que o Bairro tem de mais nefasto. Mais, Nesta altura, não quero nem posso fazê-lo. Porque aquelas pessoas também contam comigo para que um dia possam olhar para o Bairro com esta distância.

PS: O Bairro não é o bairro, não é apenas um conjunto de casas para onde são despejadas algumas das pessoas mais carenciadas das cidades. O Bairro é algo que se cola à pele, é uma etiqueta que nos coarta na nossa liberdade, nos nossos sonhos, que nos condiciona o presente e nos rouba o futuro. Se, quem manda nas cidades e nos países, alguma vez tivesse vivido num bairro, a primeira coisa que fazia era deitar aquelas casas abaixo e realojar as pessoas junto com as outras pessoas, as normais. Sim, todos somos normais, mas se olharmos atentamente, uns são mais normais que outros. Iludir isto é não querer ver a realidade.
O resto é conversa para menino ver.

20130726


Um dos principais indicadores do meu cansaço é a falta de paciência. Não com os outros mas comigo, quando estou sozinho. Quando o dia termina, o rádio incomoda-me, chego a casa e não sei o que hei de fazer com  tempo, pego num livro e largo-o, pego noutro e não me satisfaz logo às primeiras páginas, a televisão não passa nada em condições e, como se não chegasse, todas as noites uma qualquer canção perfeitamente estúpida invade-me o sono fazendo com que, invariavelmente, veja nascer o dia de olhos bem abertos. Poucas coisas me chateiam tanto como este tempo intermédio em que estas coisas ainda não acabaram mas as outras ainda não começaram. Em princípio, amanhã, esse tempo terá acabado. Afife, com as suas praias, com a sua calma, com o seu tempo nublado, com as suas noites frias, espera por mim. Amanhã, em princípio, encetarei uma nova recuperação. De mim mesmo.
Boas férias

20130723


Há uns anos descobri que há em mim um lado de advogado do diabo que me passara despercebido. Numa qualquer discussão, quando as opiniões tendem todas para um lado desconfio sempre. E descubro-me a procurar razões para que as coisas não sejam bem assim. Muitas vezes acabo até por não conseguir deixar de apresentar essas razões, mesmo contrariando o que defendera momentos antes. Confuso? Claro que sim. Se para mim o é, imagino para os outros.

E sou assim em tudo!

Aqui há uns tempos, depois de mais um titulo, cometi a estupidez de dizer em voz alta que tinha saudades do Porto quando o Porto não ganhava nada. Éramos poucos os indefectíveis, orgulhosos por pertencer a um clube que sentia na pele e no campo o contra tudo e contra todos, que na altura nada tinha de artificial. Da mesma forma, sempre preferi as segundas cidades dos países e os clubes dessas cidades, que têm que lutar contra o natural poderio da capital. Mesmo a nível partidário, tenho sempre vontade de aderir formalmente ao meu partido de sempre quando vejo a meia dúzia de gatos pingados que aparecem depois de uma estrondosa derrota. Sinto sempre que é junto deles que gostaria de estar e não na palmadinha nas costas.

Talvez por causa desta minha estranha tendência, fez-me muita confusão ver ontem o Papa rodeado por tanta loucura! Pensei logo como estas coisas nunca são lineares, nunca possibilitam apenas uma leitura, que nada é, em si, completamente bom ou completamente mau. A loucura colectiva tem uma linha muito ténue que separa o que é do que deve ser. Por isso, faz-me muita confusão o endeusamento que começa a haver em torno do Papa Francisco. Imagino-me na pele dele e a claustrofobia que sentiria, a falta de espaço, a falta de serenidade, o desconforto de ser colocado num pedestal por milhões de pessoas. A ele, que tanto apela aos pés assentes na terra e que, paradoxalmente, se vê elevado justamente por defender os pés assentes na terra.

Há muito de irracional - e eu, com a idade, começo a fugir do irracional - nestas manifestações de fé, ou de fezada, que me lembram sempre, sempre, a forma como Jesus foi acolhido em Jerusalém. E desta vez nem sequer faltou o jumento, que, nestes nossos dias, corresponderá ao carro familiar que transportou o Papa Francisco.

Como sempre me acontece nestas manifestações de massas apanho-me a interrogar-me: Quantas destas gargantas que gritam hossanas ficariam junto à cruz?

20130717


Tenho andado a saborear, lentamente como convém com as coisas importantes, o Lumen Fidei, do Papa Francisco. Logo no início, uma curta frase que me chama a atenção: a fé nasce no encontro com o Deus vivo.

Nunca entendi muito bem aqueles que dizem que, com muita pena sua, não foram abençoados com o dom da fé. Provavelmente nunca a procuraram, ou melhor, nunca se disponibilizaram a não ser para que a pudessem ter.

Lembra-me o que aconteceu na minha primeira experiência de Taizé. Nos primeiros dias a cabeça não parava, andava constantemente às voltas, numa ensurdecedora gritaria que me frustrava qualquer tentativa de silêncio. Às tantas, cansado de tanta gritaria, rendi-me a mim mesmo e aceitei a imensidão de imagens e sons e problemas que me assaltavam mal me sentava naquele chão abençoado. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que se era eu, inteiro, com tudo o que sou, não podia não aceitar tudo o que me vinha à cabeça, não podia fazer uma espécie de interregno entre o que verdadeiramente sou, suspendendo temporariamente tudo o que me aflige só para aproveitar o silêncio. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que o que me era oferecido naquela altura não era ainda o tão desejado silêncio mas a oportunidade de o poder construir bem dentro de mim, e que para isso não adiantava tentar iludir a realidade, fazer de conta que eu estava de bem comigo e com a vida, mas que, pelo contrário, era o momento de me apresentar tal como era, sem fugas ou fingimentos, àquele que por mim esperava. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que, à medida que me ia esvaziando de mim, me ia dando a possibilidade de me encontrar, na mais completa interioridade, no silêncio que se torna fonte de sabedoria.

Creio que a fé é um dom. Mas já não acredito que seja apenas de alguns, que seja distribuída aleatoriamente por um deus que se diverte a confundir aqueles que ama. Acredito que o pecado originante (parafraseando o Frei Ventura) não tem nada a ver com a maçã mas com a ausência de resposta à primeira pergunta feita por Deus ao homem. Acredito, por outro lado, que nunca é fácil deixarmos que outro seja em nós, deixarmos que nos conduzam, ainda que por amor, deixarmos que outro assuma o controlo, ainda que por momentos, da nossa vida. Mas acredito que o único encontro que vale a pena é justamente esse: aquele que acontece por amor e se transforma em amor cá por dentro para que possa ser amor para os outros.

20130716


Lentamente, muito mais lentamente do que eu desejaria, vamos voltando a ter o nosso tempo.

Ainda na semana passada, numa das reuniões de um dos grupos de trabalho aos quais pertencemos, tive que recordar que, apesar de sermos casados, apesar de irmos e virmos juntos, apesar de ambos estarmos envolvidos em alguns projectos comuns, não somos um só. Para efeitos de trabalho, claro. Que as coisas não passam por osmose ou proximidade enquanto dormimos só porque nos amamos. Que o facto de se comunicar algo a um de nós não implica necessariamente que o outro o saiba. Até porque temos muito mais do que conversar, muito mais do que partilhar, muito mais do que construir e resolver, todos os dias, que não passa por trabalho. Volta e meia lá se misturam as duas coisas, mas confesso que isso não me agrada nada. Se, no que à vida diz respeito, fazemos por ter uma visão comum, no que ao trabalho diz respeito nem sempre queremos que assim seja. Nem sempre seria bom que assim fosse.

Em boa verdade, também não nos sobra muito tempo para discutirmos trabalho fora do trabalho. Apesar de os nosso filhos irem sendo cada vez mais autónomos, ainda temos todos demasiado gozo em partilhar uns com os outros aquilo que é verdadeiramente nosso para estarmos a meter estranhos lá pelo meio. As nossas horas de refeições são momentos de partilha do quotidiano e, curiosamente, nestas alturas sempre relevamos mais os sentimentos que os acontecimentos. O que nos interessa saber e discutir é o que fomos sentindo ao longo do dia, a forma como fomos lidando com as pequenas e grandes questões quotidianas, como fomos conseguindo, mais ou menos, ir superando desafios. No final, o que importa mesmo não é o que aconteceu com a pessoa a ou b, mas o que aconteceu connosco.

Agora, no entanto, acabadas as aulas, (quase) acabados os exames, abrandando o trabalho, já começa a cheirar a Afife. E Afife quer dizer um tempo só para nós, para as nossas loucuras, para as nossas brincadeiras e chatices e mornices e passeios e churrascos e piscinas e dolce fare niente, que nos é tão querido.
E vai sendo também o nosso tempo, um tempo a dois, feito de noites cada vez mais longas, de passeios à beira mar, de conversas cada vez mais nossas, recheadas de coisa nenhuma, que nos revigoram a paixão e aprofundam a identidade de onde brota o amor.

20130712

À revelia (uma daquelas revelias com que eu, como pai, estou sempre a contar e até, num e noutro caso, vou permitindo), o meu filho mais novo criou conta no Facebook. Como sou amigo dele, volta e meia passo por lá e dou-lhe uma vista de olhos. E nem sempre gosto do que vejo. É natural. É esquisito ver o meu filho através da impessoalidade do Facebook. Principalmente a ele, a quem começam agora a despontar as primeiras borbulhas, e que vai rapidamente deixando de ser "o pequenito" para assumir o João que em si desponta.

Eu sou um completamente babado pelos meus filhos. Conheço-os muito bem - mesmo quando se tentam esconder, e tenho um tal orgulho neles que por vezes me pergunto como cabe tanta coisa cá por dentro (o que, pelo menos para mim, explica perfeitamente o meu porte, que alguns, erradamente atribuem à gula. Nada de mais errado: tudo isto é amor.) Sei que eles já são muito mais do que eu alguma vez serei, o que me deixa perfeitamente feliz acerca do meu papel de pai: se fosse para eles serem tanto quanto sou, não valeria a pena.

Apesar de serem cinco, uma das minhas principais tarefas foi permitir que eles se fossem crescendo autonomamente, dando espaço para que eles se fossem encontrando e construindo. E isso devo-o ao meu pai. Lembro-me de ser pequenito e de o perceber, pelo canto do olho, a acompanhar-me como quem não quer a coisa. Suficientemente perto para que eu soubesse que ele estava ali; suficientemente distante para que eu me sentisse livre. Creio que foi das coisas mais importantes que me transmitiu, e que eu, em certa medida, tentei copiar para os meus filhos. É um equilíbrio que não é fácil manter, que volta e meia me levanta muitas interrogações, que me obriga a por constantemente em causa. Certamente seria mais cómodo impor-lhes um rumo, um caminho, muito bem definido e balizado, por forma a não se desviarem.

Certamente sentir-me-ia mais seguro se o fizesse.

Mas quando temos filhos, a questão nunca somos nós mas eles, o que é o melhor para eles, ainda que a custo próprio, ainda que à força de noites mal dormidas e medos mal contidos.

20130709

pontes


Um dos meus maiores prazeres é observar. Pessoas. Lembro-me de, muito miúdo, ir para a Praça da República, ou para a Avenida dos Aliados, e entreter-me a ver as pessoas a correr, esbaforidas, ensanduichadas nos autocarros, em hora de ponta. Imaginava como seriam as suas casas, o que fariam quando chegassem a casa, as suas famílias, a sua solidão ou alegria. Ainda agora, quando estou no meio de muita gente, normalmente refugiado num qualquer canto, são coisas dessas que me passam pela cabeça.

Por isso, é-me extremamente gratificante ver a evolução dos miúdos nas colónias. Quando lá chegam, apesar de todo o trabalho em comum que acontece ao longo do ano, há vários grupos que se olham com alguma desconfiança. As conversas ou são tímidas ou aparvalhadas (que é uma outra forma de lidar com a timidez), os olhares são inquisidores, e há, sobretudo, uma enorme quantidade de eus. Nesse primeiro dia, normalmente lido com todos eles de forma um tanto ou quanto abrupta: preocupo-me mais com o estabelecimento e cumprimento das regras que com outra coisa, para que seja possível construir-se relação em cima de algo sólido. Diz-me a experiência que as colónias se ganham ou se perdem justamente nesse primeiro dia. O estabelecimento de regras comuns a todos, miúdos e monitores, permite que todos se sintam no mesmo barco e que, lentamente, vão deixando cair a imensidão que os separa e construam o que os irá unir. É fantástico poder observar este processo, como ao segundo dia já falam entre si normalmente, ao terceiro lidam uns com os outros como se não existisse "lá fora" e, quando chega a hora de partir, a despedida é penosa. Basta dar uma olhadela aos seus facebooks para ver como ficarão a recordar aquela experiência, curta mas intensa.

Numa das muitas conversas que fui tendo com uns e com outros, fui referindo a importância do que fazemos nas colónias. Não são apenas um tempo em que os miúdos dos bairros têm acesso ao que lhes falta noutras ocasiões: regras básicas de postura em comunidade, regras básicas de higiene, regras básicas como o pedir por favor, ou agradecer, ou poderem contar, com toda a certeza, com refeições seis vezes por dia. Tudo isso é importante mas é pouco. O que importa mesmo é a construção de pontes. É que uns e outros se apercebam que não há nada de decisivo que os separe, que se as circunstâncias de uns e outros fossem diferentes, os seus papéis poderiam ser invertidos com a maior das facilidades. É que uns percebam que há pessoas que estudam e conquistam e se dispõem a gostar de alguém aparentemente tão diferente; e que outros se apercebam que há mais mundo para além das férias e das discotecas e do bem estar em que vivem. É que ambos percebam que há mais mundo para além do mundo fechado em que vivem.

Contrariamente ao que muitos pensam, nas colónias não fazemos férias, construímos pontes. Não creio que haja melhor forma de construir uma outra realidade.

20130705

colónia


Mapas preparados, muitas coisas embaladas, tudo para que não falte nada. Na bagagem interior, no entanto, é que vai o essencial: uma tremenda dose de boa disposição, uma tremenda dose de paciência e, fundamentalmente, uma tremenda dose de improviso.

Pelas minhas conta, este é o meu décimo terceiro ano consecutivo de colónias. Cheguei aqui como chego sempre a estas coisas: contrariado, arrastando os pés, mas lá vou chegando por afinidade, por amor,  por quem tem a arte e o engenho de o fazer: a minha mais-que-tudo. Aos dessa primeira colónia, já quase lhes perdi o rasto. Sei que alguns são já pais e mães, sei que alguns estão ou estiveram na prisão, sei que alguns vingaram na vida e são cidadãos como todos os outros: com maiores ou menores dificuldades, com maiores ou menores sonhos cumpridos. Quando passo por qualquer um deles é sempre uma festa. Qualquer que tenha sido o seu percurso, é sempre bom revermo-nos. Mesmo aqueles que se portavam mal e eram mandados para casa, hoje cumprimentam-me efusivamente e recomendam as colónias aos seus filhos, primos, irmãos ou vizinhos, como uma das melhores experiências das suas vidas.

É um mundo estranho, este. Que não é fácil conquistar, mas, uma vez conquistado, não e fácil largar. Contrariamente ao que muita gente pensa, este é um mundo de afectos fáceis, exacerbados, onde ora se revolta e se insulta, ora no momento seguinte se é capaz da maior doçura. É um mundo onde o futuro é já no dia seguinte, pois não se sabe o que virá a seguir. É um mundo onde tudo é precário: o emprego, o dinheiro, a comida, a casa, as pessoas com que se partilha a casa, os afectos, as famílias. Aqui, raras são as pessoas que têm uma vida estável, ainda que com sacrifício. Raros são os miúdos que chegam ao 9º ano e menos ainda são aqueles que aí chegam sabendo efectivamente alguma coisa. Raros são aqueles que se preocupam com o futuro, que a maioria assume já como previamente definido de tal forma está plasmado no que encontram todos os dias diante dos seus olhos.

Mas uma das coisas que, invariavelmente, mais me marcam, é a enorme disponibilidade dos nossos alunos. A facilidade com que estabelecem pontes com um mundo completamente estranho para si, a facilidade com que abdicam  do conforto, que normalmente consideram fundamental, a facilidade com que dormem no chão, tomam um duche gelado e lavam loiça atrás de loiça e limpam casa de banho atrás de casa de banho, é impressionante. Tenho a convicção profunda que se fossem visto pelos seus pais eles ficariam chocados: uns porque não andaram a criar filhos para isto, outros porque não pensavam que os filhos fossem capazes de tanto!

É também a eles que devo a minha vontade de ir, todos os anos, às colónias.

20130704

Olhadela

Poder acordar bem cedo, caminhar por entre as árvores tendo como fundo o barulho do mar e o canto dos pássaros é um excelente motivo para dar Graças.  Se sou acolhido por uma manhã esplêndida no seu brilho, na sua cor, no seu silêncio recheado de sons naturais, as Graças ganham uma nova razão de ser. Se me encontro com as memórias de uma colónia que agora termina e que não podia ter corrido melhor, as Graças encontram a vida vivida que as devem justificar. Se, ao mesmo tempo me preparo para a colónia que hoje vai começar, e que prevejo com maiores dificuldades, as Graças ajudam na superação.  Se, enquanto faço estas viagens, dentro e fora de mim, me deparo com um inesperadamente belo espaço de oração, as Graças encontram o seu lugar de louvor. Resta-me, então, saber agradecer todo o amor.

Obrigado, meu Bom Pai.

20130627

Mandela


Tenho muita dificuldade em acreditar nos santos do altar. Não nas pessoas em si, cujo percursos de vida normalmente até desconheço, mas na nossa necessidade de as colocar em cima de um pedestal. Até porque as pessoas que conheci e que estavam mais próximas do que eu considero ser a santidade, não eram santinhas. De todo. Eram bem humanas, com problemas e dificuldades como todos nós temos, que cometiam erros como todos nós cometemos e que, como eu costumo dizer nas minhas catequeses meio em tom de brincadeira, faziam chichi e cocó como todos nós. Tinham era uma postura de vida, uma tenacidade e, sobretudo, uma sabedoria profunda - e algumas delas mal sabiam ler e escrever - que lhes permitia uma serenidade tal que acabaram por constituir para mim modelos de vida e de entrega aos outros.

Ainda há pouco tempo dizia a uma amiga que não tenho ilusões no que diz respeito às pessoas. Acredito na sua humanidade, na sua capacidade de fazer o bem e o mal consoante as circunstâncias, mas acredito ainda mais na capacidade que cada um tem de se fazer maior que as circunstâncias; não acredito em anjos ou demónios, acredito que todos o somos em determinadas alturas, mas acredito mais ainda na capacidade que cada um tem de se refazer permanentemente, sobretudo se tiver o amor como força maior; não acredito em super homens (por acaso acredito mais em super mulheres) mas em homens que se superam constantemente, muitas vezes porque outros dependem de si e não conseguem ver outra alternativa a não ser fugir para a frente.

Não creio que pessoas como o Mandela, Gandhi, a Madre Teresa ou Luther King queiram um lugar num qualquer pedestal. Todos eles foram, até certa altura, vítimas das suas próprias circunstâncias. No entanto, escolheram não se deixar arrastar por elas mas tomar as suas vidas nas suas mãos, prontos a assumir os riscos inerentes às suas decisões, prontos a entregar a vida para que a pudessem ganhar. Por isso aprendo com eles, por isso não lhes louvo mas louvo a Deus por eles. Porque, a exemplo de Jesus, interessa-me muito mais a humanidade que a santidade.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...