Recebi uma sms: "Pai, disseram-me que aquele teu amigo que consumia está no hospital. E está mal."

Lembro-me de um retiro há uns largos anos em que ficamos no mesmo quarto. De manhã bem cedo, acordei com a sua tosse. Levantei-me e lá estava ele, no corredor, de cigarro na mão e janela aberta a deixar entrar o ar gelado. "Desculpa. Tive que vir dar de mamar aos queixos." Rimo-nos como sempre nos rimos juntos, porque nos sentíamos bem juntos.. Durante uns tempos vimo-nos muitas vezes. Ele tinha regressado de Espanha, onde quase se tinha acabado de perder, recuperara a custo, arranjara emprego, e participava nos nossos encontros. "Se na altura soubesse que havia disto nunca me teria metido nesta merda". Era bem mais velho que nós mas todos o acolhíamos com agrado no nosso seio. Era também uma conquista nossa, em parte uma mascote, e exercia em muitos dos mais novos o fascínio do filho pródigo. Contava-nos as histórias espanholas das suas descidas aos infernos que abundam no submundo da droga,  e terminava sempre com um aviso muito sério para que não caíssemos nas armadilhas.

Aos poucos o tempo foi passando, entretanto eu mudei de pouso e  volta e meia iam-me chegando notícias suas. Fora despedido, começava a pedir dinheiro emprestado aos do grupo que nunca mais devolvia, em sua casa recomeçaram os desaparecimentos de tudo o que era vendável, até que voltou a sumir-se. Passados uns anos, numa das rondas que na altura eu fazia aos sem abrigo, vi-o, em S. Bento, a dirigir-se para a carrinha. Trocamos abraços, palavras de circunstância, juras de voltarmos a contactar, e perdi-lhe o rasto. Na altura fiquei abalado e ele foi provavelmente o mais forte pretexto para deixar de ir aos sem abrigo.

O desconforto que sentia devia-se à sempre presente consciência que nada de substancial me separava daqueles a quem servia na carrinha amarela. Que os que se aproximavam de nós poderiam muito bem ser os meus vizinhos de infância, os amigos com quem brinquei lá no bairro, as namoradinhas que ia tendo quando era miúdo ou o meu primo que era arrumador na Praça Velasquez. Por isso nessa altura, quando o vi, envergonhado, a dirigir-se a mim, o espanto não foi muito, era apenas a confirmação que estava certo. Que aquilo que ditou a diferença dos nosso caminhos foi um "não" aqui, um "sim" acolá, uma família que, apesar de tudo, não permitia tudo, e fundamentalmente, uma escolha pelos amigos certos, uma descoberta - e mais tarde uma opção - pela divindade certa.

Mas poderia ter sido exactamente ao contrário.
Ainda não o esqueci.
E espero que nunca o esqueça.

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