O Bairro


Por estes dias tenho descansado mesmo. Aproveito para fazer coisas que gosto tanto e para as quais normalmente não tenho tempo: limpeza global do computador, leitura em ordem, dormir uma boa sesta, um sol e uma boa praia, caminhadas e conversas, e namoro, muito e delicioso namoro. Por entre esta azáfama de dolce fare niente de importante, fui a um batizado na Igreja de Ramalde. Por coincidência estavam lá alguns dos nossos miúdos e tivemos a alegria do reencontro de quem se quer bem.

Tanto eu como a minha-mais-que-tudo saímos desse reencontro verdadeiramente felizes. Uma das características mais vincadas desta malta é justamente a sua ausência de máscaras, o que torna tudo muito à flor da pele, muito natural. Como são tão efusivos nas suas demonstrações de carinho como nas de desagrado, não têm pruridos nenhuns em nos abraçar e nos apresentar à família toda por entre as mais sonoras gargalhadas.

Depois de nos despedirmos deles, enquanto íamos no carro para a festança do batizado para o qual tínhamos sido convidados, não pudemos deixar de conversar acerca da tremenda disparidade dos mundos em que estamos envolvidos. De um lado, o bairro com toda a sua crueza, com toda a sua naturalidade, em que tudo é muito tudo; do outro, a sociedade mais civilizada, educada, mas também muito mais controlada, com muito maiores barreiras. E entre eles, nós, e outros como nós, que na maior parte das vezes fazemos de ponte entre ambos, que, como os conhecemos a ambos, sabemos que nem nos podemos iludir nem desiludir em demasia.

Nestas alturas, é inevitável que eu questione a minha pertença. À porta da Igreja, tendo uns e outros tão perto e ao mesmo tempo tão distantes entre si, não conseguia para de me questionar a que lado pertenço verdadeiramente. Tenho a certeza que se me desse largas, se baixasse a minha omnipresente guarda, a minha resposta seria inequívoca: tudo aquilo que em mim é instintivo puxa-me para o Bairro, para as gargalhadas em alto som, para a dança mais rapioqueira, para a alegria mais à flor da pele mas também para a fúria mais intempestiva e irracional. No entanto eu, hoje, não sou apenas o Zé do Bairro da Câmara que fui durante anos. E sei que, agora, não quero baixar a guarda, não quero deixar de me ter debaixo de olho, não quero voltar ao Bairro naquilo que o Bairro tem de mais nefasto. Mais, Nesta altura, não quero nem posso fazê-lo. Porque aquelas pessoas também contam comigo para que um dia possam olhar para o Bairro com esta distância.

PS: O Bairro não é o bairro, não é apenas um conjunto de casas para onde são despejadas algumas das pessoas mais carenciadas das cidades. O Bairro é algo que se cola à pele, é uma etiqueta que nos coarta na nossa liberdade, nos nossos sonhos, que nos condiciona o presente e nos rouba o futuro. Se, quem manda nas cidades e nos países, alguma vez tivesse vivido num bairro, a primeira coisa que fazia era deitar aquelas casas abaixo e realojar as pessoas junto com as outras pessoas, as normais. Sim, todos somos normais, mas se olharmos atentamente, uns são mais normais que outros. Iludir isto é não querer ver a realidade.
O resto é conversa para menino ver.

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