Hoje, o Gusto faria anos. Faria já não faz, porque morreu há pouco tempo sozinho, no hospital. Na altura as minhas filhas souberam que ele estava no hospital com prognóstico muito reservado: a vida que escolhera levar rebentara-o todo por dentro. E ele sabia-o. Dissera-mo há alguns anos quando, numa das minhas idas aos sem abrigo, estivéramos juntos na estação de S. Bento. Eu sempre gostei dele, ele sempre gostou de mim e dos meus, e no entanto, apesar da insistência delas, não consegui ir vê-lo ao hospital. Por falta de tempo, dizia eu para mim e para os outros, sabendo no entanto que, se quisesse mesmo ir, tempo era o que não me faltava.

Neste tempo do Advento tenho andado com a mochila na cabeça. O que carrego eu, todos os dias, na minha mochila? Para que é que reservo eu espaço na minha vida? Que coisas são apenas coisas, são apenas imensos nadas, que servem para rigorosamente nada, que servem apenas para me atrapalhar o passo e me darem a sensação de vida importante, ocupada, cheia, ainda que de coisa nenhuma?

Hoje, a minha mochila pesa-me, está cheia e não é de boa coisa. Também por causa do Gusto. Por vezes, quando me atrevo a olhar para dentro da minha mochila com olhos de ver, sem ficções, sem pinturas embelezadoras da realidade, fico envergonhado. Porque adiei o inadiável, porque me quis convencer que não era assim tão importante, porque me convenci que era muito importante, porque deixei que o marfim corresse sem tomar uma decisão, sem assumir uma atitude, fugindo por entre os pingos da chuva, porque não fui suficientemente coerente para olhar a responsabilidade nos olhos... são momentos importantes, que fazem tão parte do que sou como aqueles em que sou orgulhosamente feliz nos meus gestos e nas minhas atitudes. São momentos que faço por esquecer, por varrer para debaixo do tapete, mas que volta e meia me revisitam e têm o condão de me por no lugar.

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