Uma das coisas que mais problemas me tem causado é o facto de não ser anti-nada. Normalmente não falta quem me exija a mesma radicallidade que sentem. Tanto de um lado como do outro das contendas em que algumas vezes me meto, nunca vêem com bons olhos a minha queda natural para ver o outro lado da questão, o papel de advogado do diabo que, quase sempre involuntariamente, me vejo a desempenhar. Daí à acusação de falta de personalidade é um pequenino passo, que é, aliás, muitas vezes dado. Por muito tempo isso incomodou-me bastante, até que me fui apercebendo que me incomodava ainda mais a minha infiidelidade a mim próprio, que por vezes levava a que fosse artificialmente radical apenas para me poupar.

Como não há regra sem excepção, a única radicalidade que me é visceral desde que me conheço é a do aborto. Mesmo nas mais duras e longas batalhas que tive na altura da discussão da lei - umas olhos nos olhos, outras nos vários fóruns da internet - nunca me conseguiram dar um argumento que me contrariasse a convicção que o aborto é sempre, sempre, o abuso do poder por parte de quem o tem sobre quem não o tem, e que, por muito má que seja a perspectiva de vida que uma criança possa ter, é sempre melhor que nem chegar a ter a possibilidade de vida. Aliás, vida é vida, ponto final.

Numa das melhores experiências de condutor de grupos de jovens que tive, o RH+, discutimos algumas vezes o aborto (interrupção voluntária da gravidez não passa de um eufemismo para esconder a crueza do acto). Porque o RH+ era um grupo cuja riqueza advinha muito do facto de ter nas suas fileiras muitos jovens sem qualquer percurso cristão, jovens que simplesmente andavam à procura e desaguavam no RH+, os nossos debates sobre estes temas ditos fracurantes eram sempre muito ricos e desafiantes. Se para alguém que teve um percurso cristão podemos argumentar com a religião, com alguém para quem a religião não diz muito, os argumentos têm de ser outros. O RH+ foi, também por isso, uma excelente escola para mim, pelo que tive que estudar, que aprender e que tentar transmitir.

Recordo-me que, numa dessas discussões sobre o aborto, alguns deles vinham com os casos estremados que na altura abundavam, de um e do outro, na comunicação social. E recordo-me também de lhes ter dito que não queria saber o que fazia a vizinha do 5º esquerdo numa situação dessas, mas qual a sua forma de estar, o que fariam se contactassem com um caso de possibilidade de aborto, na escola, no café, em qualquer outra situação. E então dizia-lhes para fazerem uma única coisa, para me contactarem, para dar o meu contacto à pessoa em questão, que eu conversaria com ela e depois tentaríamos resolver as coisas.

Não havia nada de demagogia na minha proposta. É minha convicção profunda que apenas podemos defender qualquer atitude se estivermos dispostos a meter as mãos na massa. Por isso ontem, quando vi que o Papa Francisco tinha telefonado a uma mulher que estaria disposta a abortar, lembrei-me do tanto que discutimos no RH+. E agora questiono-me ainda mais porque é que não vemos mais cristãos a fazerem isso, a irem ter com as pessoas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós. E se elas, no final de tudo, decidirem avançar com a sua decisão, escolhendo ignorar os nossos argumentos, acredito que é igualmente nosso dever permanecer junto delas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós.

Quem me conhece sabe que eu gostava muito de Bento XVI pela profundidade dos seus escritos. No entanto, começo a acreditar em Francisco pela sua insistência e disponibilidade em fazer-se efectivamente próximo das pessoas.

Parecem-me ser estes gestos as suas encíclicas por excelência.

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