20121227
Estou habituado a ser considerado o esquisitóide que vê coisas que mais ninguém vê. A última vez que me aconteceu isso foi na semana passada, quando vi o filme A Origem dos Guardiões. Incomodou-me terem dito que pelo facto de não verem o coelho da páscoa, esta deixaria de existir. Dou de barato o Pai Natal porque creio que o Natal ainda vai para além dele: a tradição da família à volta da mesa, os presentes (ainda) ligados ao Menino Jesus, tempo de paz, alegria e concórdia. Há, ainda e apesar de tudo, uma ligação ao Deus que se fez pequeno por nós. Mas o coelhinho da páscoa ? Por amor de Deus!
Como nunca mais aprendo, caí na asneira de referir, ainda que baixinho, que aquele filme era ateu. Como nunca mais aprendo, caíram-me em cima, que andava a ficar mais papista que o papa, que não tem nada a ver, que ele até refere no filme que a pascoa é um tempo de renovação, etc etc etc. Algo de muito parecido ao que aconteceu quando disse que os Gato tiveram um papel absolutamente decisivo no curso do referendo do Aborto, com o seu gag sobre o Marcelo: era para rir, mas instalou-se de tal forma no subconsciente colectivo que, acredito ainda hoje, foi absolutamente decisivo - e fatal - para o desfecho final.
Claro que isto não quer dizer que me oponha nem aos filmes nem aos Gatos que por aí abundam. Abomino o pensamento monolítico, qualquer que seja a sua proveniência, e defendo a liberdade pessoal como um valor fundamental. No entanto, temo muito a ausência de pensamento crítico, a consciência de massas, que nos retira toda e qualquer liberdade sem que disso demos conta, transformando-nos em marionetas facilmente manipuláveis em nome de um pensamento comum.
Por isso, esta é das coisas que espero nunca aprender. Hei de sempre ser o esquisitóide que vê o que mais ninguém vê. E hei de sempre cair na asneira de o dizer.
20121219
Bênção das Grávidas (O Poço 201212)
Se em todas as Eucaristias se celebra a vida, a do dia 8 de
Dezembro era particularmente rica na sua simbologia: rodeadas pelos soldados da
paz, que tantas vezes dão a sua vida para proteger a vida alheia, as jovens
mães, que carregavam os seus amados filhos como Maria carregou Jesus no seu
ventre, pediam à Mãe do Céu a luz e a sabedoria para a sua maternidade.
Não é difícil perceber a importância da Bênção das Grávidas,
particularmente nos dias de hoje, tão propensos ao individualismo. Até os
argumentos difundidos pelos órgãos de comunicação social para se ter filhos têm
uma raiz individualista defendendo que eles são a garantia do nosso futuro. No
fundo, relegam para segundo plano a conceção de um filho como o maravilhoso resultado
de uma dádiva mútua de amor que tem o Amor de Deus como origem e testemunha.
Esquecemos demasiadas vezes que cada vida gerada é um sinal
de esperança e um testemunho de confiança. Um sinal que, afinal, nós ainda
esperamos em Deus, ainda Lhe confiamos o nosso futuro, ainda acreditamos, no
mais íntimo e profundo do nosso ser, que o Amor suplanta o dinheiro, a lógica e
a tecnologia.
E que cada criança gerada é um motivo para dizermos que o
Senhor faz em nós Maravilhas.
Santo é o Seu nome.
Zé Armando Pinho
Mesa de São Pedro (O Poço 201212)
Começaram por ser meia dúzia que, envergonhados, deslizavam
sob a penumbra e se sentavam, fixando os
seus olhares algures no chão do improvisado refeitório. Agora, passadas escassas
semanas, já se contaram setenta refeições, servidas numa só noite, na Mesa de
São Pedro.
É muita gente, convenhamos!
Demasiada!
Por todos os motivos.
É muita gente, convenhamos!
Demasiada!
Por todos os motivos.
Esta é uma daquelas ações que preferíamos todos que nunca
tivessem que acontecer no meio de nós, e que ansiamos que algum dia tenha que fechar
por falta de utentes. Sendo um ato de pura disponibilidade – de tempo, de
trabalho, de bens, de entrega pessoal – não deixa, contudo, de ser um ato que envolve alguma dor: a dor natural de quem
é íntimo da necessidade absoluta de ser servido une-se, como que
paradoxalmente, com a dor de quem serve e se confronta com o sofrimento que os
seus olhos refletem. A Mesa de São Pedro não é, por isso, um ato de
caridadezinha piedosa de pessoas que têm que encontrar forma de ocupar as suas
vidas: é tempo roubado ao tempo para dar a quem precisa, é o arregaçar das
mangas e passar das palavras aos atos, é fazer alguma coisa que de alguma forma
consiga romper com o intolerável ciclo descendente que a vida reservou para
alguns de nós.
A mesa sempre foi, para Jesus, um lugar especial. Sendo o
espaço da confraternização (com + frater = junto do irmão), foi por isso
pretexto de milagre quando Jesus transformou a água em vinho; lugar de
escândalo quando comia com os excluídos; lugar de serviço quando lavou os pés
aos discípulos; lugar de entrega absoluta quando celebrou a Última Ceia… Assim
pretende ser, de alguma forma, a nossa Mesa de São Pedro. Necessariamente
limitada às capacidades de cada um, prefere imitar Jesus e ignorar o escândalo
que ainda é proferido à boca fechada e empenhar-se no serviço e na entrega ao
outro como forma de contribuir para a restauração da dignidade daqueles que,
porventura, terão dificuldade em encontrá-la neste período tão difícil das suas
vidas.
Não sendo uma iniciativa agradável - nunca o poderia ser,
quando temos que lidar com o sofrimento alheio – a Mesa de São Pedro pretende
ser uma resposta, concreta e definida, ao inquietamento que o outro nos
provoca, desinstalando-nos e forçando-nos a abandonar a nossa zona de conforto.
Infelizmente, não acreditamos que a necessidade se esgote em pouco tempo. Por
isso, precisamos sempre de ajuda, estamos sempre abertos ao contributo de todos
aqueles que preferem fazer a opinar.
As portas continuam abertas.
Zé Armando Pinho
Celebrar o Natal (O Poço 201212)
Parece que este será um Natal um pouco fora
do comum. A palavra crise foi a mais dita e escrita ao longo deste ano, todos
estamos com receio do ano que vem e aqueles que ainda veem sobrar algum
dinheiro ao fim do mês preocupam-se mais em poupar que em gastar o pouco
disponível em coisas que farão parte do baú das recordações antes ainda do Ano
Novo.
Qualquer pessoa de bom senso poderá afirmar que esta alteração de comportamentos, ainda que seja uma consequência de uma sociedade que persiste em viver apoiada no medo do futuro, não será de todo negativa. Principalmente se as dificuldades nos derem a capacidade de redirecionar o nosso olhar para aquilo que é verdadeiramente importante. E, no Natal como na vida, o importante é o Menino, que vem ao nosso encontro.
Qualquer pessoa de bom senso poderá afirmar que esta alteração de comportamentos, ainda que seja uma consequência de uma sociedade que persiste em viver apoiada no medo do futuro, não será de todo negativa. Principalmente se as dificuldades nos derem a capacidade de redirecionar o nosso olhar para aquilo que é verdadeiramente importante. E, no Natal como na vida, o importante é o Menino, que vem ao nosso encontro.
Habituados que estamos às efémeras sensações
provocadas pela espuma dos dias, chegamos a um ponto em que nos deixamos
interpelar com maior facilidade pela “notícia” que, ao que parece, o burro e a
vaca não estiveram na gruta com Jesus, que com o facto de o nosso Deus se ter
feito de tal forma pequenino que quis precisar de se refugiar nos nossos
cuidados. Nós, que vivemos na era da informação, que andamos atentos a tudo o
que se passa à nossa volta e do outro lado do mundo, perdemos a capacidade de
nos espantarmos com aquilo que é verdadeiramente significativo para a nossa
vida: Deus acampou no meio de nós.
Mesmo para aqueles que não têm fé, o
nascimento de Jesus não é irrelevante. De facto, todos os valores que qualquer
pessoa razoável defende, particularmente no mundo ocidental, enraízam nesse
acontecimento de absoluta simplicidade e despojamento. Por muita irritação que
provoque a todos aqueles que prefeririam que assim não tivesse sido, se Deus não Se tivesse feito Menino, haveria
palavras cujo significado permaneceria perfeitamente vazio de sentido.
Palavras como solidariedade, dignidade, humildade, que são em si muito mais que
meras palavras, espelham ações efetivas,
atitudes quotidianas, opções de vida, nas comunidades cristãs espalhadas pelo
mundo. De uma forma que escapa ao entendimento de muitos, aqueles que as
praticam preferem ficar no anonimato, permanecer fora das luzes da ribalta,
agir no silêncio do compromisso com os outros, acolhendo-os nas suas vidas como
os pastores acolheram o Menino: na simplicidade do seu trabalho, na
disponibilidade dos seus corações.
Podemos, e devemos, por isso, colocar uma questão
que nos é tão incómoda: como é que chegamos aqui? Como é que nós, cristãos,
permitimos que a celebração do nascimento do Menino Deus se transformasse numa
correria desenfreada que tem como fim último comprar coisas? Como pudemos
colaborar ativamente para se desvirtuar, como se foi desvirtuando, um
acontecimento que nos deveria levar a agir em sentido contrário, a olhar para
os mais humildes, a estar com os mais indefesos? Como é que nós, que noutros
dias até conseguimos escapar à lógica consumista em nome de uma sobriedade de
vida que nos é pedida, não conseguimos resistir à tentação de fazermos
exatamente o que todos fazem?
Ao longo deste ano, em conversa com várias
crianças e jovens, apercebi-me que muitos deles, apesar de pertencerem a
famílias católicas, não tinham presépio em casa. Seja porque dá muito trabalho,
seja porque não passam lá muito tempo, seja porque a Árvore e o Pai Natal
ocuparam o seu espaço, o que é um facto é que o Menino Jesus, nesses lares,
continua com os seus pais à procura de um espaço onde possa ficar. De porta em
porta, de coração em coração, aquela Família de Nazaré continua a não encontrar
um lugar, ainda que singelo, em casas recheadas de ausências.
Alguns dirão que se trata apenas de uma
tradição, que não passarão de meros bonecos vazios de significado. Que o que
importa verdadeiramente são as ações. Esquecem contudo que, para além das
ações, nós vivemos também de sinais, de tradições, de símbolos que nos
identificam e com os quais nos identificamos. Que esses sinais, essas tradições
e esses símbolos fazem parte da nossa herança cultural e religiosa que importa
preservar e transmitir àqueles que verdadeiramente amamos pois resultam da
escolha que Deus fez de vir ao nosso encontro. E que, se não os assumirmos como
nossos, rapidamente serão substituídos por outros sem sentido, sem significado,
como substituímos o Presépio pelo Pai Natal porque simplesmente não conseguimos
viver sem símbolos, sem tradições… sem sinais!
Na nossa Paróquia recomeçamos, nos últimos
anos, a celebrar convenientemente o Natal. Não apenas nas nossas casas, com as
nossas famílias - que isso já o fazíamos, e muito bem - mas em comunidade,
saindo do conforto dos nossos lares, do aconchego dos nossos e enfrentando o
frio noturno para rumarmos à nossa Igreja Matriz. É uma Missa do Galo sempre
muito bela, muito festiva, muito alegre, que nos ajuda a reconhecermo-nos uns
nos outros e a formarmos Igreja. Para os que não o podem fazer – este tempo
pode ser implacável para com os mais novinhos e os mais idosos – existe sempre
uma oração para se fazer, em família, antes do início da Ceia.
Quantos de nós o fazemos? Quantos de nós, no
meio daquela feliz azáfama familiar ou dolorosa solidão (sim, há quem passe o
Natal na maior solidão!), nos lembramos que é o Seu nascimento que celebramos?
Quantos de nós paramos para rezar antes daquela refeição? São pequenos sinais, pequenas celebrações,
pequenos gestos, insignificantes aos olhos de muitos, nem sempre bem entendidos
por tantos outros. Mas são um testemunho vivo e importante que, tal como o
fizeram os pastores e os reis, tal como o fizeram os animais que estavam no
estábulo, tal como o fizeram tantos homens e mulheres antes de nós e outros
continuam a fazer, também nós queremos acolher Jesus no meio de nós.
E Ele não veio senão para ser acolhido por
nós para que possamos, nós próprios, ser um dia acolhidos pelo Pai.
Feliz Natal
Zé Armando Pinho
20121218
Quase que aposto, de olhos fechados, que sorris neste momento. Como o criador sorri quando se depara com a criatura. Sim. É (também) a pensar em ti e no que conversamos que estou agora aqui. Também mas não só. É sobretudo porque, depois do que conversamos, depois do que li, pensei que não era justo eu esconder-me dos olhares alheios enquanto me regozijo com a exposição alheia. Porque sabemos ambos que é disso, afinal, que se trata: expomo-nos nas palavras para que consigamos, por entre letras, por entre dentes, descobrir os sentimentos (ou, se tivermos muita sorte, que nos descubram os nossos).
Mas é também porque te li e gostava de te dizer que, apesar do medo do mergulho, também tu és uma história abensonhada. Ainda com muito de sonho, é certo, ainda com muito de medo, de procura, de projeto, de avanços e recuos, de tactear para tentar chegar, de dúvidas e mais dúvidas, e de confrontos - por vezes penso que os teus últimos anos têm sido essencialmente confronto! Mas tem sido também uma história abençoada. Pelo que espalhas, pelo que transmites, pelo que enriqueces e desinstalas.
E depois há a "nossa" história. Totalmente incomum, aparentemente desigual, como se tivesse apenas um sentido quando, na realidade, todo o sentido é sentido desde (quase) sempre. Uma história que, tal como nos livros de Carré, tem reviravoltas, tem partidas e chegadas, enlaces e desenlaces, e fins nunca à vista. Feita de cumplicidades e entendimentos e frequentemente mal entendida, mas que sobrevive, agora de uma forma diferente.
Porque na vida, à medida que o tempo passa, tudo é diferente.
20121119
Tenho-me deliciado com o último livro do José Tolentino Mendonça: Nenhum Caminho Será Longo. Adoro quando encontro nas palavras aquilo que sinto há muito tempo e nunca consegui exprimir adequadamente. É um livro que tenho vindo a saborear, com muito calma, pausadamente, profundamente, como convém. E que me tem levado a revisitar - ainda que apenas cá por dentro - novos e velhos amigos à medida que o vou lendo.
Quem me conhece sabe como prezo a amizade. Como tenho vindo a aprender a vivê-la, solta, sem amarras, completamente livre, como deve ser. E também como por vezes é mal entendida, confundindo-se liberdade para ser e para estar com desinteresse. A amizade, que tenho a sorte de ser quotidianamente demonstrada, alimenta muito do que são os meus dias e torna o meu quotidiano muito mais feliz.
No entanto, tenho que confessar que não é a amizade que me sustém, mas o amor. Ainda ontem, ao final da tarde, fomos todos jantar ao McDonald's. Foi mais uma oportunidade de construção desta coisa complexa e por vezes complicada que é a família. Intercalamos conversas sérias com brincadeiras parvas, rimos como inconscientes para logo de seguida nos solidarizarmos uns com os outros, falamos de tudo e de mais alguma coisa, voltamos a perceber que todos somos, efectivamente, parte de todos, que ninguém é supérfluo, que ninguém é dispensável.
A noite, no entanto, não acabou sem uma outra componente muito nossa: uma boa discussão. Que, contrariamente ao que muitos porventura pensam, não abala o que somos enquanto família mas, pelo contrário, consolida, cimenta, ajuda a perceber a importância que a vida de cada um tem para todos, que o futuro de cada um tem para todos, que não há vidas separadas, não há um "é comigo" mas tudo "é connosco".
Na página 15 do "Nenhum Caminho Será Longo" podemos ler que "o regime dominante do amor é o do tudo ou nada". Não tenho qualquer dúvida. Por muitos e bons amigos que tenha - e tenho a Graça de os ter -, por muito que eles sejam fundamentais para me alegrarem os dias, é na Isabel e nos meus filhos que deposito todo o meu ser.
Arrisco tudo?
Claro que sim.
Mas amor sem "tudo" não é amor.
É amizade.
É diferente.
20121107
Pela minha net quotidiana abundam os velhos e novos amigos. Aproveito para os revisitar, ainda que apenas deste lado do ecrã. À falta de melhor - e o melhor seria estarmos novamente juntos, olhos nos olhos - fico feliz por saber que vão estando bem, que vão trilhando os seus próprios caminhos, com maiores ou menores dificuldades, como é natural. Volta e meia lá vem algo mais pessoal, mais dirigido a mim, e eu fico feliz, claro! Apesar de saber que o meu papel é semelhante ao dos andaimes, sabe-me muito bem saborear uns miminhos.
Ainda há pouco tempo conversava acerca desta "distância", controlada e voluntária, que me esforço por manter particularmente para com aqueles que, sendo importantes para mim, devem ganhar autonomia. E isto tanto é válido para os meus filhos como para os meus amigos mais novos, como até para os meus pais. Creio que sempre tive a consciência que facilmente crio dependências mútuas. Quando gosto de alguém tendo a permitir que ocupemos demasiado tempo um no outro, não me sai da cabeça, e qualquer coisa é um bom pretexto para pensar como reagiríamos a um acontecimento, como discutiríamos um assunto, como resolveríamos um qualquer problema. Durante demasiado tempo como que alimentei esta dependência mútua, até que me apercebi, a (muito) custo, que não era bom para ninguém. E aprendi então a desligar, a dar asas, a acompanhar à distância, a ficar atento aos pequenos sinais que me vão permitindo saber se as coisas estão a caminhar.
Mesmo contra a minha vontade.
20121104
Empanquei logo na página sete, na aceitação serena dos limites como segredo profunda da amizade profunda. Depois disto, que li já lá vão dois dias, não consegui ler mais. A aceitação serena dos limites! Não foi agora que lá cheguei, com este trecho, mas fico sempre muito feliz quando vejo esparramado numa página a confirmação do que vida já se encarregou de me demonstrar. Na amizade profunda há uma partilha do ser, tal como é, sem subterfúgios, sem nada na manga, em joguinhos. É muito o WYSIWUG (o que vês é o que tens), típico da informática dos primeiros tempos, que não vivia tão embrulhada na fantasia. E eu gosto disso. Gosto de não ter que me preocupar com o que se diz ou pensa, explorando os limites de cada um, descobrindo os limites de cada um. Gosto da abertura, da possibilidade de corrigir e ser corrigido sem aquele medo de ficar acorrentado ao que foi dito. Porque isso é o que separa a amizade profunda: um On e Off que pode ser feito a qualquer momento, mas que, por escolha própria, sem qualquer constrangimento de espécie alguma, se escolhe não fazer. A amizade profunda tem que ter asas, tem que ter espaço, tem que ter autonomia, tem que dar lugar à certeza da autonomia da vontade de estar.
Por isso a lua
Por isso o salivar
Por isso a presença constante (mas serena) da ausência
20121030
Enganei-me. Lamentavelmente! E enganei. Ainda mais lamentavelmente! Pensei - e espalhei - que bastaria ver-te por aqui, ler-te por aqui, ir sabendo, por vias travessas, da tua vida, das tuas aventuras e desventuras, das tuas noites mal dormidas, do imenso trabalho que te envolve, do que te torna feliz e te desespera. Pensei que bastaria roubarmos tempo ao nosso tempo para trocarmos alguns sms e nos sentirmos novamente juntos, íntimos na amizade profunda que nos une. Pensei até que bastariam algumas promessas de encontros e desencontros para alimentar a esperança de voltarmos a sorrir olhos nos olhos, de voltarmos a partilhar aquelas conversas sobre tudo e sobre nada que apenas temos com quem verdadeiramente confiamos, com quem verdadeiramente gostamos.
Enganei-me. Lamentavelmente! Vejo as tuas fotos no Face e sinto saudades dos nossos olhos, das nossas conversas, dos nossos sorrisos.
Há coisas que nunca poderão ser substituídas.
Ainda bem.
É um bom motivo para voltarmos a estar efectivamente juntos.
20121017
Nos dois últimos anos testemunhei várias experiências de pobreza. Estive em Moçambique, onde a necessidade tem contornos que estão muito longe do imaginário daqueles que a tudo assistem alapados no sofá. Aos moçambicanos falta tudo, absolutamente tudo, a começar pela consciencialização dessa falta, - por isso são tão alegres (atenção: alegres, não felizes, que isso é outra coisa completamente diferente!) Não têm comida, não têm roupa e, fundamentalmente, não têm educação. Foi lá que confirmei que nos podemos habituar a comer e a vestir o que calha mas que se não nos ensinarem a aspirar mais alto, viveremos toda a vida a viver como calha. A educação é absolutamente fundamental para conseguir dar o salto.
Mas não foi apenas lá, em terras de África, que testemunhei a miséria profunda. Este ano, no Domingo de Páscoa, fui no compasso. Visitei casas miseráveis onde vivem pessoas para quem o desespero é visita quotidiana, com a consciência plena que são o lixo que varremos para debaixo do tapete. Pessoas que vivem miseravelmente, cujas reformas não chegam nem para pagar a sopa do jantar, quanto mais para pagar os medicamentos que os impediriam de cair aos bocados nos últimos anos das suas vidas. Quase as mesmas pessoas que agora aparecem todos os dias na nossa Paróquia para poderem comer uma sopa quente e irem mais aconchegadas para a cama. E só não são as mesmas porque muitas delas não têm capacidade para chegarem à Mesa de São Pedro.
Gostava de poder dizer que estas são histórias de vida, mas são tudo menos história. São vidas vividas, efectivas, omnipresentes, numa pequena vila mineira a 6 kms do Porto. São vidas vividas junto à nossa porta, na nossa rua, na nossa própria família. Hoje, infelizmente, a miséria não é um eufemismo. É uma realidade dura, nua e crua, que se aloja debaixo da almofada e contribui para que as nossas noites sejam negras.
20121016
Aconteceu-me já muitas vezes. A última foi na semana passada, numa das nossas reuniões da Pastoral Familiar, lá na Paróquia. Disse algo como isto "sou muito menos teórica que o Zé". Sei bem de onde vem esse epíteto, que, não pretendendo ser insultuoso, também não tem qualquer pretensão a ser o seu contrário. Porque gosto de coisas de que mais ninguém gosta, como gosto de ir ao fundo das questões e de encontrar respostas para as minhas imensas perguntas e entendi que a melhor forma de o ir conseguindo é estudando e lendo - ainda que essa seja a forma de me levantar novas questões - porque a partir de determinada altura da minha vida percebi que só poderia descansar a cabeça na almofada se seguisse esse, que é o meu caminho, sou frequentemente visto como um ser lunático, um sonhador, um idealista que não se rege pelas leis da física.
E às vezes sou.
No entanto, por muito que estude estas coisas da fé, por muito que as tente entender, por muito que procure razões de acreditar, nunca esqueço que é na simplicidade que O encontro. Muitas vezes ando entretido com os meus botões, fechado no meu raciocínio, e um qualquer sorriso de uma qualquer pessoa, um qualquer gesto de um qualquer perfeito desconhecido, desbloqueia-me os sentidos e volto a despertar para o que verdadeiramente interessa: a vida vivida. Sem tretas.
20121010
Lentamente, como quem não quer a coisa, vai-se reinstalando a necessidade de escrever. Vou aprendendo com o tempo a irrelevância da vontade nestas coisas da minha escrita. Não adianta nada sentar-me ao computador, não adianta nada puxar pela cabeça, não adianta nada pensar que "já não escrevo nada há tanto tempo!" para que as coisas funcionem. A minha excrita vive muito de sensações, de procuras e desejos, e, fundamentalmente, de necessidades. Há alturas em que tenho mesmo de escrever, nem que seja sarrabiscando numa qualquer folha de papel. Noutras, porém, o tempo é outro, é de busca, de recolha, de ler, ler, ler, ver, ver, ver, preparar e voltar a preparar, delinear e projetar. Nestas alturas funciono como uma esponja, como um esfomeado que tudo recolhe para comer, sem qualquer critério, onde tudo o que vem à rede é peixe. Depois, já cheio, enfartado, começo a sentir necessidade de processar, de escolher, de separar o trigo do joio para ficar com aquilo que realmente vale a pena.
Lentamente, como quem não quer a coisa, esse tempo vai chegando. Ainda bem. Não gosto da sofreguidão de viver. Gosto muito mais da reflexão. É a minha praia.
20121004
Não me lembro de desejar tanto um fim de semana. E alargado, ainda por cima!
tenho andado num ritmo completamente estúpido.Não há outro termo, mesmo. Reuniões em cima de reuniões, ensaios em cima de ensaios, listagens e mais listagens, como se o mundo acabasse já amanhã. O curioso é que, no início deste ano, nos prometemos mutuamente a abrandar o ritmo, a fazer as coisas com mais calma e, sobretudo, nunca mas nunca marcar nada ao Domingo. Pois sim! Há sempre um Encontro de não sei o quê, um ensaio, um conjunto de pessoas que conta com a nossa presença para fazer algumas daquelas coisas que passada uma semana ninguém se lembra.
Hoje, o que me apetecia mesmo era descer a Avenida e recuperar forças junto à Foz enquanto o sol se ia deitar. No entanto, o que me espera é ir a pé daqui até à Casa da Música, apanhar aí o Metro e deixar-me levar quase até casa, onde me espera uma francezinha. Depois lá terei que ir com a ganapada lá de casa ver Os Azeitonas, que eles já falam nisso há 15 dias.
Mas o melhor mesmo é que amanhã, como não é dia de Missa, sei que, sem necessidade nenhuma, vou acordar para aí ás 6 da manhã sem conseguir dormir mais e depois vou andar a penar o dia todo.
Estou mesmo a ficar rabugento!!!
E a idade ;-))))
20120926
Descobri hoje este fantástico Gus.
Para além da realidade pura e dura, poucas coisas me abanam como uma BD ou um cartoon bem feito. Desde o eterno Major Alvega - que este ano revi numa feira do livro usado no Algarve - ao sempre presente Calvin - que tanto me ajudou a entender os meus filhos - até à crítica mordaz que agora que acompanha todos os dias na minha leitura dos blogues, fascina-me a arte e o engenho de abanar consciências com meia dúzia de pinceladas. Calculo que deva dar muito trabalho, mas mistura-se a leveza de um desenho com a profundidade do incómodo. E presta-se, naturalmente, a muitas leituras.
Como acontece com quase tudo em mim, olho para estes desenhos e pergunto-me como os poderei utilizar nas minhas catequeses, nos meus Dias de Reflexão. São muito ricos, alguns controversos, atraem muito a atenção e são, sempre, um bom ponto de partida para uma qualquer discussão.
Sei que hoje o Gus vai andar cá por dentro a moer-me a cabeça.
Já ganhei o dia ;-)
20120925
Hoje tive a prova que vivemos tempos perigosos. Pela primeira vez fui bombardeado com uma teoria da conspiração, uma visão apocalíptica do futuro, que mistura terceira guerra mundial com a vinda de Jesus sobre as nuvens para reinar em todo o seu esplendor. Não estou a brincar. Foi assim mesmo. E o autor dessa visão nem sequer é um daqueles sem abrigo meios marados que vemos em filmes americanos: pelo contrário, é um senhor normal, de meia idade, dotado de uma base cultural sólida, pelo que pude perceber com fé, mas que, aparentemente, se sente confuso com toda esta situação.
Eu também não ando propriamente descansado. São muitos os "ismos" que vão renascendo das cinzas ressuscitando velhos fantasmas e inquietando espíritos. Todas estas brincadeiras de comparar ditaduras e fome a sério - como a que os nossos pais viveram - com a situação actual em que ninguém quer abdicar de privilégios pode, um dia destes, dar para o torto. E o mal é que ninguém liga aos pequenos sinais de verdadeiro desespero daqueles que nunca tiveram os privilégios, e que são os sofredores do silêncio, quanto mais não seja porque ninguém os ouve. Não me preocupam nada aqueles que vão para as manifestações com a mesma leveza com que vão para os bares ou cafés - dão dois berros, eventualmente atiram algumas garrafas e acham que têm uma grande história para contar aos amigos - mas aqueles cujo desespero os leva a cometer verdadeiras loucuras. E conheço pessoalmente muitos a viver estes dramas.
Eu acredito sempre no futuro. Mesmo quando nada o faz prever, mesmo quando tudo aparenta ir em sentido contrário, acredito muito nos pequenos gestos e atitudes que vão dando sentido à nossa vida. Mas por outro lado, nunca tive grandes ilusões. São tempos perigosos, estes. E ou mudamos o rumo dos acontecimentos, ou a coisa pode ficar preta.
20120919
Não sou muito dado a coincidências, que para mim são, normalmente, pequenos sinais. De Deus, naturalmente! Por isso, acredito que deve ter u significado qualquer o facto de eu ter lido apenas um livro aos meus filhos - creio que a todos - durante toda a sua infância: O Principezinho. Pareceu-me uma boa forma de os introduzir na vida vivida, nas pequenas desilusões e alegrias, na procura do autêntico - ainda que muitas vezes ridicularizado - no olhar atento ao que nos rodeia. Não fiz grandes palestras filosóficas - ainda tentei mas eles não mo permitiam - e deixei aquilo a pairar neles. O que é facto é que, ainda hoje, conseguimos identificar todos algumas das situações do livro que têm correspondência na vida e isso ajuda-nos a sintonizar uns com os outros.
Uma das partes do livro que mais me acompanha neste percurso é a do cativar. São muitas as vezes em que, tal como a raposa avisou, me visto interiormente para a visita de alguém que prometeu vir. Apesar de muitas vezes essa espera ser em vão - todos vamos tendo vidas muito ocupadas, Graças a Deus! - sinto sempre que valeu a pena. Só a expectativa de estar com quem gosto, só o antecipar o prazer de uma boa conversa, permite-me revisitar quem gosto e voltar a saborear o passado. Mesmo não estando juntos por causa das vicissitudes da vida, vamos estando juntos naquela parte da vida que os cientistas - prisioneiros do temo e do espaço- fingem não existir mas que é aquela que, justamente, nos define enquanto pessoas: a alma, o espírito, o "cá por dentro".
E quando alguém habita o "cá por dentro", não há longe nem distâncias, como dizia Bach (o Richard, não o Johann, claro!)
20120905
Sou católico, acredito na ressurreição mas não na reencarnação. Porém, justamente porque sou cristão, acredito que, se tivermos sorte, nos deixarem e, principalmente, se tivermos quem nos ame o suficiente para nos ajudar, podemos renascer muitas vezes.
Faz hoje sete anos foi justamente isso que me aconteceu. Vivera alguns ofuscado pela luz, como uma traça, protagonizando um filme que não era o meu, num clamoroso erro de casting que quase acabava com tudo. Assumira muitos papéis, pintara muitas cores - nem sempre as mais claras e bonitas - tentando por todos os meios que a verdade, aquela que nos confronta do outro lado do espelho, tardasse a chegar.
Faz hoje, precisamente, sete anos, que me foi permitido recomeçar. Mais uma vez. Como se não tivesse havido ontem, como se tivesse feito um reset, como se o passado fosse apenas uma história mal amanhada. Apesar de o ser apenas fora de mim, apesar de todos os dias eu fazer questão de não me esquecer do que (não) sou capaz, foi muito importante sentir-me acolhido, acarinhado e levado a ultrapassar-me.
Não acredito na reencarnação mas acredito muito na capacidade quase infinita de cada um se obrigar a refazer. Mas acredito também que ninguém o conseguirá sozinho. Porque naqueles breves momentos em que nos olhamos ao espelho e nos confrontamos com a nossa própria verdade, se não tivermos quem acredite em nós e nos estenda a mão, seremos os primeiros a duvidar se tanto esforço vale a pena.
20120903
"Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua terra." Lc 4
Volta e meia há frases, sentimentos, percepções, que acampam cá por dentro, que se instalam por algum tempo e persistem na procura de uma resposta, fazendo o seu próprio percurso, quase autonomamente, indiferente à minha própria vontade. Não são coisa passageira nem consequência de vazio mas, pelo contrário, são ânsia de caminho, consciência profunda de uma procura incessante de perceber qual o meu lugar ou melhor, para mim que tenho fé, de tentar perceber o que o Pai me chama a ser.
Há já algum tempo que desisti de ser profeta na minha terra. Com muita dificuldade, confesso. Nunca é fácil para mim não partilhar a alegria que sinto quando finalmente descubro o sentido de uma leitura, de uma passagem bíblica, de um qualquer aspecto da liturgia que demorei a perceber. Não é fácil resistir à tentação de espalhar aos quatro ventos - a começar, naturalmente, lá por casa - aquilo que vou descobrindo e que vai dando cada vez mais sentido à minha fé, à minha vida. Mas é incomensuravelmente mais difícil fazê-lo sem que me olhem com a mesma estranheza com que me olhariam se tivesse chegado de Marte. E , invariavelmente, a mensagem não passa. E, pior ainda, a sua credibilidade vai-se perdendo.
Nos primeiros tempos do meu curso partilhava tudo com tal entusiasmo que nem me apercebia que ninguém ligava puto ao que dizia. Fui-me apercebendo, lentamente - eu às vezes sou mesmo lento a perceber as coisas - que o melhor mesmo era ir resistindo a essa ânsia de partilha. E fui calando. O castiço é que alguns anos mais tarde a minha mais-que-tudo fez um curso de catequese e vinha sempre toda entusiasmada contar-me o que aprendera, como se fosse para mim uma grande novidade, sem nunca se ter apercebido que era justamente aquilo que eu tentara partilhar quando eu próprio o tinha descoberto. Quando tinha sido eu a dizê-lo era irrelevante; quando foi outra pessoa, era significativo.
O curioso é que eu próprio tendo a fazer a mesma coisa. Uma das minhas filhas está no quarto ano de medicina e sabemos todos que vai levar muito tempo lá em casa até passarmos da filha para a médica. Sempre que ela falar vamos recordar as suas asneiras, os seus defeitos, as suas dificuldades, que servirão sempre como travão para a credibilidade que ela, como médica, certamente terá. Tenho a certeza que será uma excelente médica fora de casa - tem a sabedoria a sensibilidade e o bom senso para isso - mas em casa terá sempre o lastro de ser minha filha.
É triste, não é?
É triste, não é?
20120827
Para mim, essa coisa de os filhos terem idade é treta. Não é que eu os veja sempre como bebés, como se tivessem nascido há quinze dias, nada disso. É que os vejo sempre como meus filhos, e isso não tem idade, vai para além de qualquer conceito de tempo.
Nada, absolutamente nada há de mais importante para mim que os meus filhos. Até acredito que eles nem sequer notem isso, mas não há momento algum na vida deles que me passe ao lado, que me escape, que me seja indiferente. Não há acordar, trejeito, olheiras, má disposição, canto ou alegria que eu não note, que eu não leia. Posso não dizer nada, posso não tocar no assunto, posso fingir que não aconteceu ou que não é nada comigo, porque eles precisam do seu espaço, de conquistar a sua autonomia, de aprender a lidar com as coisas boas e más da vida, mas a verdade é que, como qualquer pai, sou completamente açambarcado pelas suas vidas.
E tenho um enorme prazer nisso.
Aos pouquinhos, muito lentamente, ansiosamente (no meu caso), vou fazendo com que a vida volte ao seu estado normal, a ter um pouco mais de ritmo, de azáfama.
Eu gosto das férias. Pelo menos dos primeiros cinco dias. Depois a coisa já começa a ficar complicada. Não sei bem o que fazer e organizo tudo o que há a organizar, antecipo movimentos, faço esquemas e mais esquemas, arrumo a casa (ou seja, o meu computador) e leio e vejo o que noutras alturas não tenho tempo para ver ou ler. E olho para o relógio e ainda é manhã.
Naturalmente, quando partilho isto com alguém, olham-me de lado. Então se o fizer cá em casa a primeira coisa que me perguntam é se gosto assim tão pouco de estar com os meus, se preciso de me refugiar no trabalho. Mas na primeira oportunidade são eles a reivindicarem o seu próprio espaço e ao seu desejo de sair com os amigos.
Mas a questão não é essa. Eu adoro os meus, todos os dias, não apenas nos dias de férias. Mas a verdade é que ao fim de 15 dias já estamos todos um bocado fartos uns dos outros e ansiosos por rever os nossos amigos e voltarmos às nossas rotinas. Será pouco politicamente correto dizer isto mas, pelo menos cá em casa, é a verdade. Se não jantarmos juntos dois dias seguidos parece que a casa está demasiado vazia, mas também temos alturas em que valorizamos um pouco de espaço entre nós. Não creio que haja algo de negativo nisto. Acredito que amar tem muito mais a ver com disponibilidade que com omnipresença, muito menos quando essa presença é uma espécie de imposição, ainda que meramente tácita.
20120803
Acordo qualquer coisa mais tarde - não muito, sou um homem das manhãs - mas com muito mais calma, tomo o pequeno almoço pausadamente, com alma, saboreando, tomo o meu duche com calma, saboreando-o, passamos uns pelos outros e sentamos, conversamos, rimos, tocamos e cantamos, com calma, saboreando-nos mutuamente. São isto, essencialmente, as nossas férias. Não apostamos muito em correrias, aeroportos, aventuras, que constituem quase o nosso quotidiano normal, mas no oposto: estando, com calma, uns com os outros. Para muito é esquisito - mesmo os meus filhos têm alturas em que não o entendem muito bem - mas para nós é essencial. Um tempo de reencontro, de verdadeiro descanso ativo, de desfrutamento, de recuperação de tudo aquilo que foi sendo adiado pelo natural correr dos dias.
Espanto-me quando me apercebo que estamos apenas no terceiro dia de férias. O tempo agora não corre, vai passando, lentamente, como convém a quem se ama.
Deus seuja louvado!
20120718
Tivemos, hoje, uma daquelas nossas deliciosas conversas que, mais uma vez, terminaram com o (para mim já costumeiro) "és um bocado estranho!"
Sorrio. Não o considero nem um insulto nem um elogio. Sim, sou estranho. Desde que me conheço que encaixo em todo o lado... e em lado nenhum. Desde miúdo que sou visto pelos meus como sendo um bocado estranho: sonhador, com a cabeça na lua, como se não pertencesse a este mundo, como se não estivesse nem aí. Depois, no bairro, continuei a ser estranho para muitos: alinhava nas brincadeiras mas não era muito asneirento, não me metia em confusões, nunca quis nada com drogas, nem tabaco, nem bebidas, o que, convenhamos, era muito estranho para aqueles que constituíam o meu pequeno mundo. Depois, na capela, continuei a ser estranho, fui-o no JUP e, mais tarde voltei a sê-lo no RH+. Que apesar de tudo foram os sítios onde pude ir sendo mais eu, à medida que me ia descobrindo e construindo. Sem nunca deixar de privilegiar o meu espaço. os meus momentos e, mais importante, a minha própria visão da realidade. Sempre vagueante, sempre pouco exata, sempre com poucas ou nenhumas certezas.
Acredito sempre que gaguejar é muito importante para mim. Permitiu-me aceitar a inevitabilidade da diferença e, ainda mais importante, pensar que, face à gaguez, todas as outras diferenças eram perfeitamente secundárias. Permitiu-me aprender a lidar, com relativa facilidade, com as opiniões alheias, às vezes mal intencionadas, com os meus próprios limites, aceitando-os com a naturalidade possível. E, no fim de contas, liquidou à partida aquele deseja que muitos têm de se acizentarem, de se tornarem invisíveis, iguaizinhos àqueles que admiram. Caladinho até poderia passar despercebido, mas cedo compreendi que mal abrisse a boca garantia a atenção dos que me rodeavam. Para o bem e para o mal.
Sim, sou estranho, gosto de coisas muito estranhas, demasiado pequenas para a maioria dos que me rodeiam, mas que preenchem os meus dias. Levei algum tempo a perceber-me, a descobrir-me, a encaixar-me nos meus limites. Creio que não levei tanto a tentar ser feliz, a tentar descobrir nesses mesmos limites motivos de verdadeira felicidade. Em tempos tive um cão que para se deitar fazia meia dúzia de círculos em torno de si mesmo e depois lá se deitava, em paz. Por vezes acho-me parecido com ele: também eu circulei em torno de mim mesmo até encontrar o meu lugar.
Começo a sentir que estou perto.
Cada vez mais estranho.
Cada vez mais em paz comigo mesmo.
20120712
Há momentos da vida que se assemelham estrondosamente com um filme de Woody Allen: tudo se passa num só dia, num só espaço, que se vai transformando arrastando nessa transformação os que nele habitam. Vamos sendo os mesmos intercalando-nos a nós próprios com os outros nós que alternadamente nos habitam e desabitam e que tentam ganhar o seu lugar numa intensa batalha corpo a corpo, olhos nos olhos. Há, nestes dias, uma enorme amplitude térmica emocional: conhecemos a alegria do reencontro e a tristeza da despedida, a constante presença e a saudade da separação, o reencontro do terraço e a despedida, ainda que efémera, de uma lua que todas as noites volta para nos permitir que dela nos apropriemos. Tudo é contraditório, tudo é contido, tudo é dito e vivido entre dentes, como se temêssemos que as nossas próprias sombras se afastassem definitivamente de nós próprios e nos deixassem ali, sós, desamparados, numa procura nunca acabada. São raros, estes momentos. Ainda bem! Infelizmente! Eu sei lá qual das duas é a mais indicada. Por um lado, ainda bem, porque, coisa rara ente nós, por vezes até as palavras incomodam de tão desadequadas. Por outro lado, infelizmente, porque são os momentos com esta intensidade que ficam guardados, quantas vezes contra a nossa própria vontade, no mais fundo de nós próprios.
20120705
Nunca fui homem para grandes cálculos. Perante as coisas mais importantes, simplesmente fecho os olhos e deixo-me ir, não sem alguma preocupação, mas com muita confiança. Claro que não sou diferente de ninguém, claro que tenho medo que as coisas corram mal - e às vezes corre mesmo mal - mas sempre fui mais de acolher e trabalhar com o que a vida me vai dando que de correr atrás dela.
Acredito há muitos anos que somos tão mais felizes quanto melhor nos conhecermos e conseguirmos encontrar a nossa própria maneira de ser e de fazer. Fui descobrindo que sou muito mais feliz - e melhor - a cumprir planos que a delineá-los, a confiar em quem saiba mandar e coordenar, que a cumplicidade me é muito característica e que por isso visto com facilidade uma camisola e por ela me esfalfo alegremente e sem contabilização de custos pessoais. Que me envolvo muito nas coisas, que as faço por puro gozo e tenho alguma dificuldade em distinguir o que é trabalho do que é lazer e por isso , e normalmente não estou nada preocupado com o destino da viagem mas empenhado em desfrutar da viagem. E que não é preciso muito para que me deite todos os dias mais ou menos feliz porque o meu dia valeu a pena.
Evidentemente, tudo isto me torna pouco autónomo. Costumo dizer a uma das minhas filhas - igualzinha a mim - que somos como os barcos com motor fora de bordo. E não há mal nenhum nisso. Temos é que ter um especial cuidado em nos rodearmos das pessoas certas.
E nisso tenho tido muita sorte
20120702
Eu acredito que escolhemos aqueles que amamos. Quando partimos para a aventura, todos os dias renovável. todos os dias renovada, de partilhar a vida com alguém, devemos ter a capacidade de escolher, com um misto de razão e de coração, aquela a quem nos vamos entregar. Não basta a razão, mas também não basta o coração, assim como nem sempre amar chega para segurar uma relação.
Há na vida, contudo, aqueles a quem devemos amar, sem nunca terem sido escolha nossa. São os laços familiares que nos unem, para o bem e para o mal, e é com eles que temos que viver. E aprender a amar. E aqui a coisa é um bocadinho mais difícil. Temos que passar por cima de defeitos, de gestos e atitudes, temos que saber engolir sapos, aprender a olhar para o outro lado, por cima das coisas, e tentar encontrar nas pessoas motivos para serem amadas. Apesar de tudo. Porque não é preciso gostarmos de alguém para o amarmos. Gostar é algo instintivo, natural, apelativo, tendencial. E mais superficial. Mais volátil. Amar implica sair de mim, do que prefiro, do que eu gostaria que acontecesse e ir a encontro de alguém engolindo em seco. É mais difícil. Por vezes, muito mais difícil. E nem sempre é claro se vale a pena.
Sempre pensei que escolhíamos os do futuro e herdávamos os do passado. No entanto, tenho vindo a aperceber-me que não é bem assim. Que, de certa forma, também o futuro - a parte mais importante do futuro - se nos escapa pelos dedos fora. Os meus filhos começam a escolher aqueles que amarão pela vida fora. Com quem construirão(emos) o futuro, com quem partilharão(emos) a vida. São mais pessoas para aprendermos a amar, de uma forma totalmente diferente, de uma forma totalmente nova. Veremos o nosso amor, até aqui quase exclusivo - a ser partilhado por outros pais, a ser dividido - e não venham com histórias, a sensação é que o nosso amor é mesmo dividido - com outros, por outros, em favor de outros, aliás como deve ser, porque foi para isso que os educamos. Ainda agora, à vinda para aqui, conversávamos que as certezas eram nenhumas: vamos reagindo, vamos afinando posições, refazendo pensamentos, acomodando sentimentos que vão sendo, paulatinamente, um pouco menos estranhos.
Não é coisa fácil, esta de amar.
20120626
Tudo seria incrivelmente mais fácil se não existissem despedidas.
Se pudéssemos viver sempre na presença
à mão de semear
pronta a colher
daqueles que, ao longo do percurso,
vamos permitindo que nos amem.
Tudo seria incrivelmente mais fácil se pudéssemos armar as tendas.
Isolados do resto do mundo,
viveríamos como se o mundo se esgotasse neste nós
que tão laboriosamente construímos,
mutualmente cheios de nós mesmos
alimentando-nos da imensidão que nos une.
Tudo seria incrivelmente mais fácil se ficássemos quietos,
no nosso canto
num terraço que tem um nome
num luar que tem um nome
numa capela que tem um nome
unidos por uma série de farrapos (cada um deles com um nome)
como se não existisse ontem nem amanhã.
Tudo seria incrivelmente mais fácil.
No entanto...
Se não estivéssemos sempre prontos a partir
se não estivéssemos sempre prontos a despedirmo-nos
se não estivéssemos sempre prontos a deixar que nos amem
se não estivéssemos sempre prontos a carregar as nossas tendas às costas
se não estivéssemos sempre prontos a alimentar-nos da imensidão
a abdicarmos do nosso canto
a partilharmos o nosso luar
a refazer a nossa capela com os farrapos de alguém
nem sequer saberíamos como é amar,
nem sequer saberíamos como são difíceis as despedidas
porque não saberíamos o que é amar
de tão entretidos que estávamos
no nosso pequeno mundo
20120625
Dizia ontem que pensava que, por volta desta idade, já me sentiria diferente. Mais adulto, mais maduro, mas aquilo que é suposto que um homem quase nos cinquenta e pai de 5 filhos seja - que. aliás, nunca percebi mito bem o que seria. Mas sempre esperei pelo click que me identificasse mais com aquele que todas as manhãs vejo do outro lado do espelho.
Pois sim! Ainda na véspera do S. João, enquanto ia, sozinho, a pé, da Ribeira para o Rosário, enquanto via e ouvia as pessoas que andavam de um lado para o outro, enquanto antecipava a festa que iria fazer com os meus daí a pouco, sentia-me pouco mais que um adolescente. Galgava os anos que me separam daquela noite (há já 27 anos!!!!) em que conheci a minha-mais-que-tudo e sentia ainda o frenesim que sentia sempre nesta longa noite quando corria todos os bailaricos da Ribeira até à Foz como se não houvesse amanhã. Poucas horas depois, já num desses bailaricos de bairro, em Miragaia, rodopiávamos os dois ao som de uma valsa miseravelmente tocada por uma banda abaixo de pimba, felicíssimos da vida. Era S. João!
Creio que, apesar de tudo, entre o lado sério e sombrio da vida e o lado sério mas festivo da vida, tenho conseguido escolher este último. Tive a sorte (a Graça de Deus) de ter as pessoas certas à minha volta que sempre me impediram de passar muito tempo a curtir mágoas e sempre me empurraram para o futuro. Quem, como eu, tem filhos, sabe que o futuro é o único caminho e que a fé e a confiança que tanto desejamos que eles encontrem têm em nós as suas raízes profundas.
Marcou-me muito uma frase que ouvi numa qualquer telenovela: "quem vive de passado é museu" (fica melhor com sotaque brasileiro). Não querendo esquecer o meu passado, vivo o presente de peito aberto e sempre apostei muito no futuro.
Até porque o Deus em quem acredito nunca quis saber de onde venho mas para onde quero ir.
20120621
Dizia eu, há uns dias atrás, numa daquelas minhas fases completamente desbocadas, típicas da minha descompressão, que na vida nada é muito sério. Que normalmente pensamos em demasia nas coisas, nas suas consequências, mas que, se tivermos fé, percebemos que nada de muito mau nos pode acontecer.
Foi (quase) sempre isto que senti ao longo da minha vida. Particularmente desde que descobri e decidi transpor para a minha vida a confiança num Pai que me ama. No entanto, também eu tenho um imenso historial de noites sem dormir porque a cabeça escolhe a pior das alturas para fazer prognósticos e estabelecer cenários possíveis de futuros impossíveis. Como se confiasse de dia e desconfiasse de noite. Como se confiar fosse mais uma decisão racional e não tanto uma adesão interior.
Acredito que ter fé é acreditar apesar de tudo. É confiar que, apesar de instintivamente tudo me empurrar para o outro lado, apesar de todas as evidências, todos os sinais de alarme, todos os conselhos pedidos e escutados a quem me ama, a derradeira decisão é minha e tomo-a depois de me escutar, depois de conversar comigo mesmo e com a minha imensa interioridade. Por isso, ter fé tem que partir de uma decisão minha, racional, voluntária, de me entregar ou então, pelo menos, de não me fechar ao que o amor pode fazer em mim. Tal como quando me apaixono por alguém, tenho que permitir que entrem na minha vida, que me revolvam as entranhas, dêem nova cor a uns dias e cubram de cinza outros. Mas nada disto é possível se eu não dou o primeiro passo de abertura, de vontade de me entregar (também por isso não acredito na inevitabilidade da infidelidade). Depois sim, deixo-me envolver, deixo-me mexer, deixo-me moldar, deixo que o Amor actue em mim sem comos nem porquês, acreditando que nenhum problema é demasiado sério, que nenhuma decisão é absolutamente definitiva porque tenho sempre alguém pronto para me dar a mão.
E acredito que essa confiança absoluta, quase irracional , é a Graça da fé.
20120613
Sou uma pessoa de palavras. Escritas, normalmente, que é a minha forma de expressão preferida, mas também proferidas ou cantadas. Adoro uma boa conversa, adoro uma boa prosa - com a poesia tenho uma relação mais difícil - adoro uma boa canção que consiga conjugar na perfeição melodia e letra. Calma e propensa à interioridade, de preferência.
Mas vivemos cada vez mais na e da imagem. E admiro profundamente a capacidade que alguns iluminados têm de, com meia dúzia de sarrabiscos, a partir de ideias simples, nos transmitirem discursos inteiros. Parece-me que são esses os que falam, verdadeiramente, a linguagem do nosso tempo.
Estas fotos despertaram imediatamente a minha atenção (e o "imediatamente" aqui é tudo menos inocente!) Exigindo não mais que um olhar, ainda que de relance, foi capaz de me interpelar a ponto de me transportar ao meu passado (os Pink Floyd foram uns dos meus companheiros de jornada), à importância fundamental do "outro", à ânsia que todos temos de, necessariamente imersos na multidão, podermos ser nós, ao direito a sermos de um azul puro e cristalino num imenso vermelho (esta foi clubística).
Bastou que alguém se tenha dado ao trabalho de dar um outro tom a um simples tijolo.
Creio que por vezes nos falta isso: darmo-nos ao trabalho, ainda que diminuto, de darmos um outro tom ao que nos rodeia.
20120610
Não acredito na culpa dos outros.
Não acredito em inocentes em causa própria.
Acredito em pessoas.
Acredito que somos responsáveis pelo que dizemos e pelo que escolhemos não dizer;
acredito que somos responsáveis pelo que fazemos e pelo que escolhemos não fazer,
acredito que somos responsáveis pelo que escondemos daqueles que amamos, daqueles que nos amam (principalmente daqueles que nos amam!) e até de nós próprios, quando já não reconhecemos aquele que vemos do outro lado do espelho.
Acredito que somos capazes de suster, por tempo indefinido, uma mentira, acreditando piamente nela, indiferentes às evidências, indiferentes à realidade, indiferentes à verdade, apenas porque não podemos mais.
Acredito que nos arranjamos sempre as melhores desculpas, as melhores justificações, os melhores e mais nobres motivos para as nossas falhas, para os nossos fracassos.
Mas acredito, sobretudo, que no final de cada dia, nem que seja por um segundo, nem que seja por distracção, nem que seja por cansaço, nem que seja por omissão, que todas as desculpas, todas as justificações, todos os nobres motivos, se revelam absolutamente inócuos face à inabalável, inalienável e imperdoável certeza da nossa própria responsabilidade.
É (também) por isso que acredito em pessoas.
Não é meu... mas gostava ;-)
Tens um GPS próprio para me procurares. Reconheces-me nos olhares, na forma como me aninho, nos sorrisos, não sempre iguais, não sempre igualmente intensos. Conheces-me descalça, fugida, desertora ao próprio tempo. Sabes-me em sofrimento, em lágrima escondida, em silêncio crónico. Ouves-me respirar, vives a tensão em que fervilho por vezes, rebentas em versos certos nas alturas erradas, sorris e sabes que estou nos meus dias.
Há um lugar que apenas nós conhecemos, descalços, mais eu do que tu, porque eu fugia e tinha vontade de sentir o chão fugir comigo. Tu não, nunca fugias. Sabias onde me procurar. Debaixo da lua, num tempo só nosso, no lugar que apenas nós conhecemos. Tal como o conhecemos. Desenhamos mapas, juntos, fazendo a única viagem que se permite a um homem fazer, ao cento de nós mesmos, deixando o risco no penhasco da defesa, criando a presença num vazio ainda não extinto, enredados numas mãos que não procuravam prender, mas desejar em liberdade. Foste querendo de mim, mais do que aquilo que queria ou conseguia. Pedindo os sentimentos à alma. Traçavas os mapas e eu temia que te perdesses. Em caminhos pouco acabados, naqueles que começava a percorrer. A medo. Com medo. Sabia-lo.
Fazes-me falta. No silêncio partilhado. Na cumplicidade em que só a amizade cabe. Na forma agora gravada em oco, cheio, vivo. Voltávamos, quase sempre, no dia seguinte. Curiosamente nunca me despedi daquele lugar. Fecho os olhos e estamos lá nós. Recordados. Abraçados. Na incerteza da única certeza de nos termos. De nos irmos conquistando. Nunca tivemos presenças mal nutridas um no outro, pelo menos assim o sinto, mesmo quando o banal tomava conta de nós. Sempre estivemos. Sempre. Para sempre. Nas memórias dos lugares que voam sobre nós. Nas memórias dos lugares que habitamos um no outro. Num lugar que só nós conhecemos. Aquele que, em certeza, está e estará, sempre, para sempre, em nós.
Talvez voltes ao terraço mais cedo do que eu, talvez te lembres de mim.
Fazes-me falta.
http://entrevirgulasdobradas.blogspot.pt/2012/06/tens-um-gps-proprio-para-me-procurares.html
20120608
De uma forma ou de outra, todos tememos a saudade. Sabemos que é bom sinal, sabemos que nos liga aos que amamos, sabemos que nos traz a recordação de momentos, conversas, partilhas que nos visitam regularmente. Mas no fundo ninguém gosta da saudade. Porque a saudade é a presença na ausência, é o mal menor, é o consolo possível face ao desejo do impossível. De boa vontade trocaríamos a presença naqueles que nos marcaram pela presença daqueles que nos marcaram.
Não há saudade sem sofrimento, sem um aperto no coração, sem o desejo quase insano, quase incontrolável, de repetir aquilo que sabemos que é irrepetível.
Já nos disseram muitas vezes que não devemos voltar aos lugares onde já fomos felizes.
Esqueceram foi de dizer que a saudade não tem a ver com lugares mas com as pessoas com quem estivemos nesses lugares, com quem ouvimos uma canção, com quem partilhamos um luar, com quem conversamos barbaridades absolutamente banais ou verdades absolutamente íntimas e profundas, absolutamente nossas.
E que ao longo da vida iremos sempre ter canções e luares e conversas banais e íntimas que nos farão viajar no tempo,que nos farão parecer absolutamente parvos aos olhos de quem não percebe aquele sorriso vindo do nada.
20120604
Os últimos dias foram ricos em celebrações: duas bodas de prata e uns votos perpétuos. Se os dois primeiros vão sendo mais ou menos comuns - o meu grupo de amigos está nesta fase, agora - nunca tinha ido a uns votos perpétuos. Dizia ontem, em tom de brincadeira (ou tanto ou quanto estúpida, mas enfim...) que ainda não tinha visto o noivo.
Durante a cerimónia, muito bonita e com a Sé de Coimbra quase cheia, questionava-me muitas vezes, em silêncio, o que levará hoje uma mulher bonita, inteligente e arejada a professar os votos perpétuos. Não lhe faltariam pretendentes se assim o desejasse, não faltaria emprego, tal é a sua capacidade de entrega, não lhe faltariam inúmeras possibilidades de felicidade no aconchego de um lar, na família que ela quisesse constituir.
Mesmo eu, que tenho fé, que estudo as coisas da fé, que ando sempre à procura das razões de acreditar, que todos os dias tenho a sorte de contactar com uma data de Irmãs que são verdadeiro testemunho de entrega aos outros - nem todas, é certo, mas a grande maioria é-o - tenho alguma dificuldade em entender. Tendo sempre a considerar que quem faz essa opção foge sempre de alguma coisa, esconde-se sempre de alguma coisa, quer sair de casa, fez qualquer asneira, um namoro que correu mal, uma qualquer rejeição... é estúpido, eu sei, mas é-me igualmente inevitável este tipo de considerações.
Mas felizmente a vida não permite que me fique por aqui. Pessoas como a Ir. Ana colocam-me no devido lugar com uma facilidade imensa. Recordam-me que a radicalidade da vida em Jesus é ainda possível, recordam-me esse encantamento total e absoluto que conduzem a uma entrega total e absoluta, quase anacrónica, mas tão importante.
A simples existência da Ir. Ana, a qualidade do seu contacto com toda a malta nova, a sua entrega incondicional, falam, ainda que sem palavras, muito mais de Jesus que qualquer discurso, que qualquer homilia, que qualquer curso de catequese. Nem precisaria de fazer nada. Nem precisaria de dizer nada. Bastava olhar para ela e deixarmo-nos interpelar pelo seu sorriso para darmos graças por um Deus se faz vida assim.
20120530
Agora mesmo fiquei muito feliz com a boa notícia da Maria João e do MEC: http://jornal.publico.pt/noticia/30-05-2012/desmorrer-24625658.htm
Nunca conheci ninguém que não deseje, profundamente, por vezes inconfessadamente - até para si próprio - um grande amor, alguém com quem partilhar a vida, o testo da sua panela, aquela pessoa com quem tudo passa a ganhar um novo sentido. Os anseios profundos de liberdade, de gozar a vida, de aproveitar tudo ao máximo, rapidamente dão lugar ao enfado, ao mais do mesmo, ao vazio profundo quando se chega a casa e se confronta com a própria sombra. Não nos completamos a nós mesmos sem o outro, sem aquele que nos serve de testemunha, de fiel da balança, de companheiro de conversas e vivências, de partilha profunda de tudo aquilo que a vida tem de mais profundo.
Há já muitos anos que espero, silenciosamente, pelo recrudescimento do amor de compromisso. À euforia sexual dos anos sessenta seguiu-se a euforia dos copos e, mais recentemente, a euforia do abismo. O que importa agora é a experimentação, a fruição das intensidades, o conhecimento dos limites, o esticamento desses próprios limites até ao inimaginável, ainda que isso implique viver o futuro com as marcas profundas no corpo e na alma. A minha experiência de sentar-e-conversar-a-sério leva-me a pensar que a maior parte deles se engana a si próprio. Que o que anseia é outro tipo de experimentação, de intensidade, de limites. Aqueles que saem de si e desaguam no compromisso com o outro, seja qual for a forma desse mesmo compromisso. Também por isso acredito muito nesta geração. Apesar das evidências, apesar daquilo que eles tanto se esforçam por mostrar, os sinais vão em sentido contrário: são cada vez mais os namorados de longa data que conheço, são cada vez mais aqueles que assumem abertamente o seu compromisso, são cada vez mais aqueles que, ainda que inadvertidamente, transmitem aos seus amigos que amar a sério vale a pena.
Acreditem quando afirmo que o amor comprometido, a dois, com futuro, vai voltar em força.
Eu acredito.
20120529
Por vezes, temos alturas em que as forças se unem para repararmos naquilo que é mais importante. Desde a semana passada que, por variadíssimas instâncias, aparentemente sem qualquer ligação entre si, tenho sido levado a recordar a amizade como o mais nobre dos sentimentos. Desde conversas sérias, longas e profundas - como a verdadeira amizade é - a programas de podcast, a encontros com amigos de longa data - eu sei, nunca nos reencontramos com os amigos de longa data simplesmente porque nunca nos separamos deles verdadeiramente - naquilo que tem constituído uma boa parte e uma parte boa dos meus dias.
Há muitos anos que considero a amizade o mais nobre dos sentimentos. Ainda ontem, enquanto escutava o Júlio Machado Vaz no seu absolutamente delicioso podcast, deixava-me navegar pelos (poucos) bons amigos que tenho, alguns de longuíssima data outros muito mais recentes, uns mais velhos que eu, outros bem mais novos, e todos tão importantes para o meu parco equilíbrio afectivo.
No domingo o Benjamim e a Goreti chegaram, quase sem aviso prévio, e como sempre, sentamo-nos em volta da mesa enquanto comíamos e falávamos de tudo e de coisa nenhuma, enquanto nos ríamos a bandeiras despregadas ou nos confessávamos assustados pelo estado da Nação. Tudo normal se esquecermos que já não estávamos assim, juntos, talvez há meia dúzia de anos. E que, como sempre, conversamos como se tivéssemos estado juntos todos os dias da semana passada, como se a vida não nos tivesse levado por caminhos diferentes, que no entanto volta e meia se vão cruzando.
São assim os amigos. Sem pruridos, sem cerimónias, sem bater à porta, sem pedir desculpa, sem nada na manga, sem perguntar se pode ser. Sabemo-nos uns dos outros. Sabemos para quem telefonar, com quem contar, a quem contar, qualquer que seja a hora, o dia, ou a questão. Sabemos que nem sempre gostam, nem sempre concordam, nem sempre nos dão palmadas nas costas, mas conhecem-nos o suficiente para distinguir a melhor altura para dar na cabeça ou afagar a cabeça.
O que seria de mim sem eles!
20120528
"...sabemos que pertencemos ao mesmo mundo:
o mundo dos que se amam e querem ficar de olho um no outro."
Há pessoas de quem não nos conseguimos esconder.
Há pessoas de quem não nos queremos esconder.
Há pessoas para quem nos queremos revelar, o mais rapidamente possível, o mais abertamente possível, para que possamos apresentar-nos tal como somos, simplesmente como somos, sem nada na manga, sem subterfúgios ou manchas.
Há pessoas para quem qualquer revelação não constitui surpresa porque algures, em qualquer momento, já nos conseguiram ler, voluntariamente, inadvertidamente, sem querer ou querendo-o, apenas porque sempre souberam que aconteceria assim.
Há pessoas com quem nos encontramos mal nos conhecemos, com quem nos descobrimos, com quem nos refazemos, com quem nos reconstruímos depois de deixarmos os cacos espalhados pelo chão.
Há pessoas por quem esperamos, sempre, com o coração inquieto, desassossegado, ansioso, porque sabe que vai mudar de lugar e passar a habitar, ainda que por momentos, noutras mãos.
Há pessoas que têm a sabedoria, a capacidade, o dom de perscrutar a nossa interioridade apenas com um olhar deixando-nos completamente à sua mercê. E felizes por isso.
Há pessoas que tornam os minutos menores à medida que vão tonando a nossa vida maior.
Há pessoas pelas quais louvo a Deus porque me fazem acreditar ainda mais n'Ele e na Vida.
20120524
Hoje, foi um dia...
Estava a arrumar o computador e vi-os. Uma série de textos que escrevia em Quelimane quando o sono teimava em não sobreviver ao chamamento muçulmano das 5 da manhã. Li, reli, e quase não me reconheci naquelas palavras. Meu Deus! Já foi há tanto tempo! Como sempre acontece - cada vez mais forte! - fiquei com uma saudade daquelas ruas, daqueles meninos, dos meus meninos, da nossa casa, do nosso "santuário" onde fomos tão nós e tão felizes. Olho para aqueles textos como quem olha para uma pintura abstracta e tenta descortinar o que ia na cabeça do autor para ter feito tal coisa.
Hoje, foi um dia...
Tive que me resignar. Que deixar que, tal como acontecia em Quelimane depois daquelas chuvadas que tudo encharcavam, a poeira de cada um assentasse, que ficasse na soleira da porta, de permitir que cada um a sacudisse e voltasse ao que era... antes. À medida que o tempo passa começo-me a interrogar quem éramos verdadeiramente: se aqueles que eram um só, se estes que, salvo alguns fugazes momentos, é cada um por si. Somos ambos, claro. As circunstâncias é que são outras. Mudaram. E nós com elas.
Hoje, foi um dia...
O que lá se passou, o que lá passamos, juntos, isso ninguém tira. Se calhar, daqui por uns anos alguém dirá que aquela era a melhor versão de si, a que vive para os outros, a que se esquece de si mesmo, dos seus caprichos, destas pequenas niquices que teimam afogar o nosso melhor. Eu tive sorte, porque estive lá. Tive esse privilégio. E o melhor de tudo é que tivemos a capacidade de transmitir aos outros, aos nossos meninos, a nossa melhor parte.
Hoje, foi um dia...
E estas saudades que são cada vez mais fortes...
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