Qualquer pessoa de bom senso poderá afirmar que esta alteração de comportamentos, ainda que seja uma consequência de uma sociedade que persiste em viver apoiada no medo do futuro, não será de todo negativa. Principalmente se as dificuldades nos derem a capacidade de redirecionar o nosso olhar para aquilo que é verdadeiramente importante. E, no Natal como na vida, o importante é o Menino, que vem ao nosso encontro.
Habituados que estamos às efémeras sensações
provocadas pela espuma dos dias, chegamos a um ponto em que nos deixamos
interpelar com maior facilidade pela “notícia” que, ao que parece, o burro e a
vaca não estiveram na gruta com Jesus, que com o facto de o nosso Deus se ter
feito de tal forma pequenino que quis precisar de se refugiar nos nossos
cuidados. Nós, que vivemos na era da informação, que andamos atentos a tudo o
que se passa à nossa volta e do outro lado do mundo, perdemos a capacidade de
nos espantarmos com aquilo que é verdadeiramente significativo para a nossa
vida: Deus acampou no meio de nós.
Mesmo para aqueles que não têm fé, o
nascimento de Jesus não é irrelevante. De facto, todos os valores que qualquer
pessoa razoável defende, particularmente no mundo ocidental, enraízam nesse
acontecimento de absoluta simplicidade e despojamento. Por muita irritação que
provoque a todos aqueles que prefeririam que assim não tivesse sido, se Deus não Se tivesse feito Menino, haveria
palavras cujo significado permaneceria perfeitamente vazio de sentido.
Palavras como solidariedade, dignidade, humildade, que são em si muito mais que
meras palavras, espelham ações efetivas,
atitudes quotidianas, opções de vida, nas comunidades cristãs espalhadas pelo
mundo. De uma forma que escapa ao entendimento de muitos, aqueles que as
praticam preferem ficar no anonimato, permanecer fora das luzes da ribalta,
agir no silêncio do compromisso com os outros, acolhendo-os nas suas vidas como
os pastores acolheram o Menino: na simplicidade do seu trabalho, na
disponibilidade dos seus corações.
Podemos, e devemos, por isso, colocar uma questão
que nos é tão incómoda: como é que chegamos aqui? Como é que nós, cristãos,
permitimos que a celebração do nascimento do Menino Deus se transformasse numa
correria desenfreada que tem como fim último comprar coisas? Como pudemos
colaborar ativamente para se desvirtuar, como se foi desvirtuando, um
acontecimento que nos deveria levar a agir em sentido contrário, a olhar para
os mais humildes, a estar com os mais indefesos? Como é que nós, que noutros
dias até conseguimos escapar à lógica consumista em nome de uma sobriedade de
vida que nos é pedida, não conseguimos resistir à tentação de fazermos
exatamente o que todos fazem?
Ao longo deste ano, em conversa com várias
crianças e jovens, apercebi-me que muitos deles, apesar de pertencerem a
famílias católicas, não tinham presépio em casa. Seja porque dá muito trabalho,
seja porque não passam lá muito tempo, seja porque a Árvore e o Pai Natal
ocuparam o seu espaço, o que é um facto é que o Menino Jesus, nesses lares,
continua com os seus pais à procura de um espaço onde possa ficar. De porta em
porta, de coração em coração, aquela Família de Nazaré continua a não encontrar
um lugar, ainda que singelo, em casas recheadas de ausências.
Alguns dirão que se trata apenas de uma
tradição, que não passarão de meros bonecos vazios de significado. Que o que
importa verdadeiramente são as ações. Esquecem contudo que, para além das
ações, nós vivemos também de sinais, de tradições, de símbolos que nos
identificam e com os quais nos identificamos. Que esses sinais, essas tradições
e esses símbolos fazem parte da nossa herança cultural e religiosa que importa
preservar e transmitir àqueles que verdadeiramente amamos pois resultam da
escolha que Deus fez de vir ao nosso encontro. E que, se não os assumirmos como
nossos, rapidamente serão substituídos por outros sem sentido, sem significado,
como substituímos o Presépio pelo Pai Natal porque simplesmente não conseguimos
viver sem símbolos, sem tradições… sem sinais!
Na nossa Paróquia recomeçamos, nos últimos
anos, a celebrar convenientemente o Natal. Não apenas nas nossas casas, com as
nossas famílias - que isso já o fazíamos, e muito bem - mas em comunidade,
saindo do conforto dos nossos lares, do aconchego dos nossos e enfrentando o
frio noturno para rumarmos à nossa Igreja Matriz. É uma Missa do Galo sempre
muito bela, muito festiva, muito alegre, que nos ajuda a reconhecermo-nos uns
nos outros e a formarmos Igreja. Para os que não o podem fazer – este tempo
pode ser implacável para com os mais novinhos e os mais idosos – existe sempre
uma oração para se fazer, em família, antes do início da Ceia.
Quantos de nós o fazemos? Quantos de nós, no
meio daquela feliz azáfama familiar ou dolorosa solidão (sim, há quem passe o
Natal na maior solidão!), nos lembramos que é o Seu nascimento que celebramos?
Quantos de nós paramos para rezar antes daquela refeição? São pequenos sinais, pequenas celebrações,
pequenos gestos, insignificantes aos olhos de muitos, nem sempre bem entendidos
por tantos outros. Mas são um testemunho vivo e importante que, tal como o
fizeram os pastores e os reis, tal como o fizeram os animais que estavam no
estábulo, tal como o fizeram tantos homens e mulheres antes de nós e outros
continuam a fazer, também nós queremos acolher Jesus no meio de nós.
E Ele não veio senão para ser acolhido por
nós para que possamos, nós próprios, ser um dia acolhidos pelo Pai.
Feliz Natal
Zé Armando Pinho
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