20111230
Nem todos os anos acontece, mas hoje dei comigo a fazer um balanço do ano que agora termina. E aconteceram muitas coisas, este ano. Regressei a Taizé (o meu paraíso na terra) depois de dois longos anos de interregno; fomos todos à Irlanda, numa daquelas viagens familiares que daqui a alguns anos se recordarão com enorme saudade; cumpri o sonho de ir a Santiago de Compostela a pé numa peregrinação memorável tanto pela experiência do encontro como pela excelente companhia; fui a Moçambique com (perdoem-me os outros) o melhor grupo de sempre, o que constituiu uma experiência de missão e de vida absolutamente irrepetível; e, last but not least, ganhei em definitivo uma nova filha com a vinda da Rita cá para casa.
Graças a Deus!
Todas estas viagens, todas estas experiências deixaram marcas. Profundas. De todas elas retenho fundamentalmente olhares e sorrisos e lágrimas e conversas e orações e silêncios e partilhas e cânticos e noites de luar e frio de rachar e calor de morrer e cheiros e alegria e saudades e vida e vida e vida... Tive conversas longas e profundas perante paisagens tão distintas como o norte da Europa e o sul de África, com pessoas tão diferentes quanto podem ser um dinamarquês que não voltarei a ver (em Taizé) ou um africano que não me sai da cabeça. Aprendi por isso muitíssimo ao longo deste ano. Principalmente que, qualquer que seja a nossa circunstância, na essência não somos assim tão diferentes uns dos outros.
E fiz amigos. E criei laços. E reforcei laços. E descobri pessoas, reencontrei outras, e redescobri-me e reencontrei-me noutras ainda. Chego ao fim deste ano com mais amigos daqueles que nem sempre temos o privilégio de conhecer, de conquistar. Daqueles a quem podemos ligar a meio da noite e sabemos que ficam felizes por estarem lá para nós, por poderem estar connosco, por nos poderem ajudar a crescer. Ganhei por isso mais motivos para me preparar para o encontro, como dizia o Principezinho.
Cativei e fui cativado, amei e fui amado.
Chego ao fim deste ano como gosto de chegar ao fim de cada dia: com a sensação que, feitas as contas, sou um pouco mais do que era quando me levantei. Assim, vale mesmo a pena!
Resta-me agradecer. Porque nada do que fiz teria o menor sentido se o tivesse feito sozinho. Porque nenhum dos lugares por onde passei seria mais que isso, meros lugares como tantos outros, se não estivesse agora recheado de olhares e sorrisos de pessoas absolutamente fantásticas.
Este já passou. Este foi, efetivamente, um ano diferente dos outros. Venha agora outro para que possamos contrariar as expectativas.
Deus seja louvado!
20111229
“No matter what anybody tells you, words and ideas can change the world.”
É o filme da minha vida. Sem dúvida. Não porque tenha uma história excecional, ou porque tenha atores excecionais. Apenas mudou a forma como me comecei a ver a mim próprio e, sobretudo, porque me disse como eu próprio poderia ser. Apercebi-me que poderia soltar amarras e que há um caminho para além do socialmente aceitável, que se pode ser respeitado como educador prescindindo das formalidades e da distância afetiva que muitos educadores acham essencial. O "respeitinho" é ainda muito bonito para muita gente.
Ontem fui com um dos meus filhos (o mais velho dos rapazes) ao Shopping. Enquanto andávamos lá vimos aquela que é uma das nossas melhores amigas. Tem a idade dele mas é uma das pessoas que mais admiro, que mais me ensina pela sua postura, pela sua doçura e pela sua tenacidade. Este ano fomos juntos a Moçambique e um mês de convivência diária apenas reforçou a admiração, que até sinto como mútua. Sei também que o meu filho a admira muito, que ela é uma das referências da sua vida. Cumprimentámo-nos mutuamente - com abraços, como faço com as pessoas de quem gosto - com toda a normalidade e seguimos as nossas vidas. No entanto, quando íamos para casa ela voltou à nossa conversa, E o meu filho, conservador como é, fez questão de, mais uma vez, me dizer que não entende a forma como eu me relaciono com algumas pessoas mais novas. Que eu deveria ter mais cuidado, que nunca tinha visto um professor da sua escola ter o tipo de relação que eu tenho com muitos alunos e que isso poderia ser mal entendido.
Sorri, claro. Este tipo de discussão não é novo na minha vida. Pelo contrário, desde que eu decidi prescindir desse tipo de barreiras que sou muitas vezes acusado de excessiva proximidade. Principalmente por aqueles que me são mais próximos, não sei se por preservação, se por preocupação. Provavelmente por uma mistura das duas.
A verdade, porém, é que, apesar de me porem sempre a ponderar se esta será mesmo a atitude mais correta, creio que já não conseguiria ser de outra forma. Em mais de vinte anos de contatos com malta nova nunca tive grandes problemas de mal entendidos de confiança - e quando tenho não deixo que se arrastem - sempre senti que os ganhos eram imensamente superiores às eventuais perdas e, mais que tudo, permitiu-me crescer com os outros, qualquer que seja a sua idade. Por vezes corro riscos, claro, e o mais sério é o de por vezes não fazer uma avaliação correta da pessoa que tenho diante de mim com todas as dificuldades que isso potencia, mas quando isso acontece tenho normalmente uma voz amiga que, qual grilo falante, me alerta e me permite aperceber do que me era despercebido.
Quanto ao que os outros pensam... Sei bem que não sou uma ilha, por isso escuto sempre muito atentamente os grilos que, graças a Deus, abundam na minha vida. E pondero sempre as suas opiniões.
Contudo, se desse sempre ouvidos aos que me rodeiam provavelmente ainda hoje estaria no Bairro.
20111222
Não cresci propriamente sem eira em beira. Ou sem raízes. Mas às vezes penso que não andei longe disso. Não tenho memória de alguma vez me terem sido pedidas responsabilidades quando era miúdo, de me terem dado na cabeça ou de ter cometido asneira da grossa. A imagem que me ficou desse tempo foi a de constantes mudanças até aos 9, 10 anos com a consequente necessidade adaptação - sempre dificultada pela gaguez - e, sobretudo, de uma enorme solidão. Quando olho para trás é fundamentalmente isso que consigo ver: uma enorme solidão. É curioso, porque não sou filho único - e adoro os meus irmãos, com quem sempre me dei às mil maravilhas - nem sequer sou pouco sociável. Tive muitos amigos - os "melhores amigos" da infância não foram muitos mas foram bons - brincava muito, tinha muitas aventuras daquelas de sair de casa de manhãzinha e apenas voltar para almoçar ou então à noitinha, num tempo em que as férias eram mesmo grandes, e sempre gostei de rir e brincar.
No entanto...
Ainda hoje, com uma família grande que adoro, em função da qual vivo e até respiro, passo por alguns momentos de enorme solidão. Posso até estar rodeado de amigos - e eu estou sempre rodeado de amigos - posso até estar em casa com o maralhal todo, mas volta e meia pinta um solidão incrível, inexplicável, ofensiva até, porque tenho tudo o que de fundamental a vida deve ter. Não acontece muitas vezes, nunca é por muito tempo, mas incomoda-me sempre. E acontece normalmente nestas alturas do Natal e da Páscoa, ou então em Agosto, talvez porque nestas alturas entro um bocado em descompressão e tenho tempo para pensar aquilo em que normalmente não tenho tempo para pensar.
Agora algo que não tem nada a ver: comecei este texto para referir a minha proverbial dificuldade em enviar Boas Festas ou Parabéns seja a quem for - atenuada agora pelo Facebook, que que uso quase só para isso - e acabei por ir numa direcção completamente diferente. Acontece-me quase sempre. Ainda bem. Detestaria ter que pensar a sério no que aqui vou escrevendo. Por isso relembro a quem me lê que nada disto é para ser levado a sério.
20111220
Não gosto. De nenhuma delas. Mas entendo-as. A ambas.
Não gosto porque não gosto que digam mal de quem é importante para mim. O que não quer dizer que pense que são perfeitos. Longe disso. Quer dizer apenas que amo apesar dos defeitos, apesar da imperfeição, e não é raro descobrir que amo justamente pela humanidade que a perfeição lhes traz. Porque sempre que conheço alguém ou alguma organização perfeita torço o nariz. E descubro sempre que a sua pseudo perfeição não passa de uma fachada muito bonita para ver mas sem conteúdo, sem sumo, sem vida. E a Igreja não é assim. Não é perfeita, não é fachada, não é sem vida. Mais: é uma Igreja que viveu os seus piores momentos quando se julgou perfeita e exigiu a perfeição aos seus como se uma Igreja viva não fosse uma Igreja incarnada na vida e na história dos homens. Imperfeitos.
Percebo que sejam justamente os que não acreditam na Igreja que lhe exijam a perfeição. Percebo melhor que essa exigência venha dos que não têm fé que daqueles que conhecem Jesus e O tornam o seu modelo de vida. Porque uns regem-se por ideais humanos, nós regemos-nos por uma Pessoa. Que ama. Ponto final.
Percebo por isso ambos os cartoons. Porque a pedofilia e a ostentação são duas nódoas da Igreja que, durante anos, teimamos em esconder ou fazer de conta que não existem. Porque ambas - embora com uma dimensão muito diferente na consciência comum dos cristãos - são uma imagem muito triste de quem tem por missão levar Jesus aos outros. Porque ambas dificultam que sejamos nós próprios caminho para os outros.
Apesar de tudo, apesar de as entender, não gosto. De nenhuma delas.
20111215
Não conheço melhor forma de avaliar a minha amizade, senão a das lágrimas e dos sorrisos. Nada do que acontece com aqueles de quem sou amigo me é indiferente, me passa ao lado, passa despercebido. Quando muito, olho para o outro lado, invento uma laracha que desvie as atenções, ou então faço-me de muito ocupado. Quando estas coisas não resultam, então, paro, olho nos olhos, acontece uma permissão mais tácita que formulada e preparo-me para o que aí vem. Às vezes é bom, às vezes é mau, noutras é pior ou melhor que isso. Quando as coisas são verdadeiramente boas ganho o dia como se fossem minhas, rejubilo, pincho e louvo a Deus. Quando são verdadeiramente más, sou de lágrima fácil e desavergonhada, não digo nada e louvo a Deus (Job ensinou-me muito no que toca a louvar a Deus).
Entendo perfeitamente que isto possa parecer estúpido para quem está de fora. Exasperei já muitas vezes com a minha Catarina que nas coisas más sai tanto ao pai que dói. Perguntei-lhe inúmeras vezes se ela não tinha vida própria, se precisava das alegrias ou das dores dos outros para viver, numa tentatíva tão sem sentido quanto inglória de tentar que ela seja exatamente como é. Talvez fosse para evitar que ela tenha dias como alguns dos meus dias, ensombrados pelas dores que, sendo de outros, não me são alheias. É estúpido, porque se tiver a sorte do pai terá também muitos mais dias ensolarados pelas suas alegrias.
Hoje o meu dia anoiteceu.
De repente.
Deus seja louvado!
20111209
Hoje a Pat respondeu afirmativamente. Eu não consigo.
Pelo menos ainda não.
Não tenho ainda claramente definido o que sinto em relação a Moçambique. Ainda ontem falava com uma amiga acerca disso e, conscientemente, não consigo dizer, de caras, que voltaria lá. Tenho, deste lado do mundo, demasiadas coisas que me mantêm agarrado ao quotidiano, demasiados projetos inacabados, demasiadas coisas a fazer, e, ainda e fundamentalmente, demasiadas pessoas que me provocaram enormes saudades e das quais não estou ainda preparado para me voltar a separar.
Sei, contudo, que a questão de fundo não é bem essa. A verdadeira questão é que não sinto necessidade de partir. Adoraria voltar a viver o que juntos vivemos, adoraria voltara a partilhar o que partilhamos e como partilhamos, adoraria voltar a rezar e a chorar e a rir e a brincar com a candura, a inocência e a abertura com que todos o fizemos. Se fosse para isso, certamente que o faria. Só que para que isso acontecesse precisaríamos estar no outro lado do mundo, longe dos nossos, e isso seria um preço demasiado alto para mim, que já vivi tempo suficiente para saber que na vida tudo é novo. Todos os dias. E que nada se repete.
Prefiro agarrar-me ao que tenho. Prefiro a memória daquele extraordinário mês, prefiro a memória daquelas casas, dos terraços, das noites, das longas conversas ao luar, prefiro a memória daqueles que, daqui e de lá, montaram tenda cá por dentro e volta e meia me vêm revisitar.
Eu gosto da saudade. Aquece-me a alma ;-)
Não sou particularmente diferente de ninguém. Também eu tenho uma zona reservada a olhares alheios, a julgamentos alheios, a opiniões alheias. Também eu tenho partes de mim que não gosto de revelar, de dar a conhecer, de colocar nas mãos dos outros. Não porque desconstrua qualquer imagem que possam ter de mim - já referi algures por aqui que essa é uma das coisas boas da idade: percebemos que não podemos agradar a todos e aprendemos a viver bem com isso - mas, principalmente, porque não quero incomodar niguém, pertubar ninguém, principalmente aquelas pessoas que me vão conhecendo melhor.
Porque acredito piamente na nossa possibilidade de recomeçarmos sempre, todos os dias - por vezes até várias vezes ao dia - é frequente transmitir sinais confusos aos outros: ora pensam que sou melhor, ora pior do que efetivamente sou. Preocupa-me de modo particular a primeira hipótese. Porque quando os outros têm de nós uma imagem negativa só podemos subir, agora, quando sucede o contrário, o único futuro é a decepção, e isso é terrível. Por isso, quando tento baixar as expectativas normalmente pensam que me estou a armar aos cágados, a brincar aos humildes, e não acreditam.
Da última vez que isso me aconteceu dei comigo a perguntar-me se não seria eu a ter uma imagem errada de mim próprio. Nada disso. Apertando-me nos momentos certos, tirando-me o tapete, levando-me para além do meu limite, não sou mesmo flor que se cheire. E o melhor a fazer, mesmo, é tentar resistir.
Até à próxima.
20111129
Chorar em público
Por Miguel Esteves CardosoQuando sair este jornal, a Maria João e eu estaremos a caminho do IPO de Lisboa, à porta do qual compraremos o PÚBLICO de hoje. Hoje ela será internada e hoje à noite, desde o mês de Setembro do ano passado, será a primeira vez que dormiremos sem ser juntos.
O meu plano é que, quando me expulsarem do IPO, ela se lembre de ir ler o PÚBLICO e leia esta crónica a dizer que já estou cheio de saudades dela. É a melhor maneira que tenho de estar perto dela, quando não me deixam estar. Mesmo ficando num hotel a 30 passos dela, dói-me de muito mais longe.... Eu estou aqui ao pé de ti. Como tu estás ao pé de mim. Chorar em público é como pedir que nada de mau nos aconteça. É uma sorte. É o contrário do luto. Volta para mim.
http://jornal.publico.pt/noticia/28-11-2011/chorar-em-publico-23509804.htm
Não é a primeira vez que o amor entre o Miguel Esteves Cardoso e a Maria João me comove. Ao longo dos tempos tenho-o lido e acompanhado o seu sofrimento, as suas idas ao IPO, as suas cartas de amor públicas e publicadas. Parece-me incrível que este seja o mesmo MEC do Independente, dos livros com títulos desabridos, das dependências gastronómicas e alcoólicas. Um MEC que umas vezes era absolutamente genial e outras tremendamente snob, insultuosamente snob, a roçar a infantilidade. A realidade é que este amor, esta vulnerabilidade, esta capacidade de sofrer por quem se ama, pelo menos aos meus olhos,tem o condão de o humanizar e de o fazer subir uns valentes degraus na minha consideração. Não que isso tenha alguma importância para ele. Mas tem para mim. E, acredito, para todos os que sabem o que é sentir a dor de quem se ama.
20111125
Nada em mim é insignificante.
Absolutamente nada.
Nada em mim não se repercute naqueles que comigo vivem, que comigo contactam, que comigo dividem a azáfama do dia, que comigo tentam descobrir essa coisa efémera que é a felicidade. Não há gestos pequenos, não há palavras pequenas, não há atitudes pequenas, sem significado, sem consequências. Em mim tudo conta, tudo pesa, tudo significa.
E tudo me entra pelo olhar.
É espantosa a facilidade com que a vida me pode passar ao lado. Como posso passar ao lado das pessoas sem as ver, como posso passar ao lado das situações sem deixar que me salpiquem, como posso passar ao lado da vida dos outros sem que eles passem de figurantes de um filme que tem o meu próprio umbigo como actor principal.
Tudo porque, consciente ou inconscientemente, escolhi não olhar.
Acredito que o verdadeiro fundamento do AJUDA é justamente esse: educar o olhar. Fazer ver, fazer reparar, fazer notar que à nossa volta existem pessoas que vivem uma condição social diferente, que têm diferentes horizontes, diferentes limitações, e sonhos e expectativas e futuros que, à partida, sem que por isso sejam responsáveis, condicionam as suas vidas. E que, à partida, sem que por isso sejamos responsáveis, condicionam as nossas vidas. Mas que, à chegada, todos somos responsáveis pelas vidas uns dos outros.
Hoje acordei com esta vontade de reeducar o meu olhar.
Creio que é um bom desígnio para o Advento.
Talvez desta forma consiga reparar naquele que veio para me encontrar.
20111122
Há dias assim: loucos. Total e absolutamente loucos. Que normalmente se seguem a semanas igualmente loucas, que estas coisas nunca vêm sós. Acontecem sempre quando menos preciso delas, quando anseio por um pouco de tempo para fazer o que tenho mesmo que fazer sem ter que correr. Mas é inevitável. Parece que o vento assola justamente quando precisava que amainasse. E isso é sempre uma lição de humildade para mim. Quando penso que tenho tudo devidamente organizado, controlado até ao mínimo pormenor, quando vou adiando as coisas confiando que terei tempo para tudo, em suma, quando me armo aos cágados, é quando as coisas acontecem. Um telefonema, uma convocatória, um programa que não estava no programa mas ao qual não posso fugir e lá ando eu com as calças na mão, a contar os dias, as noites e as horas que vou roubar à cama.
Nestes dias assim, loucos, a minha adrenalina dispara para valores pouco aconselháveis. Sinto-me capaz de caminhar daqui até aos confins, sabendo contudo que meia dúzia de passos depois já não posso com uma gata pelo rabo, porque a adrenalina não mata mas mói e sei que daqui a pouco vai-me doer tudo.
Neste preciso momento anseio por um pouco de calma, por acabar o meu curso e me permitir ler um bocado ou fazer coisa nenhuma sem sentir culpa alguma por fazer coisa nenhuma. Anseio pelos meus livros, pelos meus filmes, pelos meus podcasts, pela minha música, pelos meus inúmeros artigos que, todos eles, me esperam impacientemente enquanto eu ando ocupado com outras coisas. Anseio por poder caminhar ou correr ou vegetar no sofá no final de cada dia de cabeça livre para a libertar ainda mais. Anseio por namorar, de mão dada, junto à Foz ou no Parque da Cidade. Anseio por umas boas sardinhas assadas - que este ano, por causa de Moçambique, foram escassas - na Casa Serrão, recheadas por uma boa conversa e seguidas por um excelente filme "arrebenta corações".
Anseio por isto tudo e muito mais. Mas ansiar mais não faz que me indicar o norte. Porque o caminho, esse, é sempre em frente. E, espero, sempre a subir.
20111117
Estou habituado a semear. É das coisas que mais gozo me dá, aliás. Colocar uma semente aqui, outra acolá, deixando a eventual germinação ao cuidado de cada um e do Mestre Tempo. Sempre que posso vou acompanhando - se possível à distância - a evolução da cultura. Sempre que o consigo, sem interferir. Às vezes é complicado não interferir, particularmente com aquelas pessoas de que mais gosto, ou que me são mais fundamentais. Noutras vezes descubro que é mesmo importante que interfira, que corrija, que é esse o meu papel, como com os meus filhos, por exemplo. A responsabilidade pela sementeira é toda nossa e até uma parte da colheita será também nossa.
O que já não estou muito habituado é a ser terreno para sementeira alheia. Pelo menos não por alguém mais novo que eu. O que aprendo com a malta mais nova - e aprendo muitíssimo, Graças a Deus! - advém mais da minha observação da sua atitude generosa e confiante perante a vida que propriamente da sua preocupação em semear. Por isso, dá-me sempre um gozo extraordinário conhecer alguém que gosta de semear e tem a capacidade de o fazer com inteligência, sensibilidade e, sobretudo, sagacidade. Que não revela tudo, vai deixando peças soltas, uma palavra, uma frase, um sorriso, que acabam por acampar cá por dentro e me incomodam, no sentido que me tiram do comodismo que me paralisa.
Apercebo-me que estou perante um semeador quando, depois de estarmos juntos, há algo da nossa conversa que me inquieta, me desassossega, me provoca ao ponto de me levar a questionar o próprio sentido da vida, ainda que seja para confirmar os valores que defendo. Dou por mim a tentar encontrar as minhas razões de acreditar, a justificar as minhas opções, a identificar os meus defeitos e qualidades e o que fazer com eles.
Durante todo este processo sorrio. Sempre. Porque alguém se preocupa em me fazer crescer.
20111116
Nunca fui adepto da repetição de momentos de felicidade. Vivo sempre muito intensamente as coisas na altura em que as devo viver e por isso tenho sempre alguma dificuldade em voltar a sentir o mesmo tipo de felicidade em contextos diferentes. Normalmente o que sinto é que essas alturas são pouco menos que flops: muito boas intenções, expectativas demasiado altas, mas depois um intenso sabor amargo na boca.
Mas há sempre excepções.
Raras.
Hoje aconteceu uma delas.
Estávamos todos. Nós. Apenas nós. Formalidades rapidamente ultrapassadas e revisitámo-nos a todos por algumas (escassas) horas. Juntos voltamos a rir e a chorar, juntos voltamos a rezar e a cantar, juntos voltamos a ser lobos e cordeiros, ainda que na maior das confusões.Voltamos a conseguir estar juntos sentindo-nos juntos, como se o tempo tivesse parado, como se nada tivesse mudado.
Já levo muitos anos disto, de convívios, de retiros, de momentos e acontecimentos especiais e contudo não é muito frequente acontecer o que aconteceu hoje.
Hoje foi, de facto, um dia diferente dos outros (Meu Deus! Há quanto tempo não cantava isto!!!)
Obrigado
O "nós" já se instalou há alguns dias, desde que a data ficou definida. Mesmo nos corredores, quando nos cruzamos, a atitude é outra, o sorriso é outro, também porque a cumplicidade é também outra, agora que foi revivificada.
E como eu gosto disto!
Nestas alturas tenho sempre O Principezinho como companhia: deitei-me ontem a pensar no reencontro, acordei a pensar no reencontro, e mesmo na eucaristia que, coincidentemente, tivemos juntos, já lá estava o reencontro e as trocas tinham ganho um novo sentido.
Esta antecipação do reencontro é o que mais nos tornará uns dos outros. Irá com certeza haver um tempo em que mal nos recordaremos, em que a vida vivida açambarca o presente relegando o passado para o passado, de tão preocupados estaremos em preparar o futuro. Irá haver um tempo em que parece que tudo passou e este "nós" não foi mais que mais um dos imensos grupos que em alguma altura fizeram parte da nossa vida. Irá haver um tempo em que pensaremos que o que passou passou e ficou definitivamente passado.
Mas iremos ter momentos. Sempre. Iremos ter memórias. Sempre. Iremos ter alturas em que fecharemos os olhos e recordaremos aqueles dias como fazendo parte do Top Ten da nossa vida. E agarrados a essas memórias virão olhos e sorrisos e lágrimas e dádivas e entregas e partilhas e corações infindáveis com orações infindáveis e até a saudade daqueles dias em que nos faltavam tudo e todos... excepto o "nós". Porque ninguém vive o que vivemos, ninguém partilha o que partilhamos, ninguém é de alguém como nós fomos de todos sem que se conquiste o privilégio de habitar para sempre algures dentro de cada um de nós. Num lugar apenas nosso.
20111114
Parece contraditório para quem me acompanha mais assiduamente na vida, mas para mim é muito importante estar. Pode não ser fisicamente perto, ao alcance da vista, mas estar, partilhar, ser, para as coisas boas e menos boas, é fundamental.
Há uma frase no filme preferido da minha maisquetudo que explica isto, onde a intérprete principal afirma que as pessoas se apaixonam porque precisam de quem testemunhe a nossa passagem por cá.
É verdade: ter com quem conversar, com quem partilhar, ter alguém com quem temos passado, vivemos o presente e sonhamos o futuro, é absolutamente fundamental para a minha sanidade mental e sentimental. É uma sorte, eu sei, ter alguém com quem a vida a dois seja possível, com todas as suas vicissitudes, as suas cedências e os seus compromissos. É uma sorte ter ao nosso lado alguém com a inteligência, a sensibilidade e a capacidade de amar necessária para superar o que nos vai acontecendo na vida, que muitas vezes divide o bom e multiplica o mau.
É uma sorte mas também convenhamos que não é apenas sorte: é paciência, é calma, é trabalho, e é, fundamentalmente, amar muito, ainda que não incondicionalmente. É amar assumindo um compromisso necessariamente recíproco, caso contrário é doença e faz mais mal que bem.
Eu tenho essa sorte. Deus seja louvado!
20111111
É sempre má ideia quando penso que sou a medida de todas as coisas. Sem o saber, inicio uma querela que me coloca contra o mundo, contra todos os outros, e convenço-me que apenas eu marcho com o passo certo.
E quando dou por mim...
Desde que me lembro que gosto muito de desporto. Qualquer que seja a actividade. Já pratiquei futebol, voleibol atletismo, judo, karaté, natação, musculação, de tudo gostava e em tudo tinha um desempenho mediano, como sempre acontece com quem não se dedica a sério a uma especialidade. Mas era inconcebível para mim que não aproveitasse todos os momentos para "puxar pelo cabedal". Quando me casei causava-me alguma impressão que a minha maisquetudo não estivesse para aí voltada. Mais: que preferia passar esse tempo a mexer na terra, a cuidar de plantas e a enfeitar jarras. E eu insistia que o desporto é que lhe fazia bem. Com o tempo, foi-me fazendo perceber que aquilo que o desporto me dava, ela conseguia-o à sua maneira e que forçá-la a fazer o contrário era reduzi-la a mim.
E percebi que sou a medida de coisa nenhuma.
Vou aprendendo esta lição. Ainda cometo as minhas camelices neste campo. Quando me distraio, ainda me arvoro em descobridor da pólvora seca debaixo de água e falo como se fosse dono da verdade e possuidor da forma certa de fazer todas as coisas. Mas vou caindo em mim com maior frequência e vou aprendendo a concluir que a minha é apenas uma das formas de ver as coisas e nem sempre é a mais correcta.
Nem sequer para mim próprio.
20111104
Ainda anda cá por dentro o que me disseram: "a frase "estamos juntos" é mesmo a tua cara."
Acredito muito que o nós, quando temos a sorte de encontrar as pessoas certas, vale muito mais que a soma dos eus. São incontáveis as vezes em que me deixei levar pela confiança dos outros, pela sua aposta, pela sua certeza - que era apenas sua, não minha - que não as deixaria ficar mal. Acredito mesmo que o amor nos leva para lá do nosso horizonte, como cantam os Santos e Pecadores.
Mas em mim nada é assim tão linear. Apesar de viver em função do nós, são muitos os momentos em que anseio estar só, comigo e com os meus devaneios, desfrutar sem culpa do enorme prazer que é para mim caminhar sozinho enquanto a cabeça passeia sem destino. São muitas as alturas em que procuro afincadamente a tranquilidade, a paz de espírito, o poder ser eu e apenas eu como se apenas eu contasse para mim. São muitas as ocasiões em que me apetece armar-me em Forrest Gump e sair não correndo como ele porque já não dá para isso, mas caminhando sem me preocupar com o que vem a seguir, e andar, andar, andar...
E no entanto...
Hoje a minha mais-que-tudo tem Dia de Reflexão e dorme fora de casa. E eu, totó, apesar de ter os filhos todos em casa, sinto a falta da sua voz, do seu cirandar, da sua manifesta incapacidade de descansar enquanto não está tudo devidamente organizado e que, quase sempre, me irrita solenemente.
Afinal, parece que todo aquele desejo de estar só, comigo e com os meus devaneios, se esfuma assim que tenho a oportunidade de o fazer e que apenas é bom enquanto desejo, possibilidade, nunca enquanto realidade.
Afinal, parece que aquele desejo de estar só é muito bom conquanto tenha alguém para quem voltar, para me acolher, para me levar para além do meu horizonte.
Afinal, parece que o "estamos juntos" é mesmo a minha cara.
20111102
Sempre que eu digo a alguém que não sinto uma necessidade particular de estar fisicamente junto das pessoas de quem gosto ninguém me entende. Se calhar nem eu próprio, mas enfim. O que é um facto é que não é muito importante para mim falar todos os dias com as pessoas, acompanhar os seus passos minuciosamente, estar permanentemente com elas para alimentar esse amor.
Com os meus pais e os meus irmãos, por exemplo. Vivemos a poucos quilómetros uns dos outros e no entanto quase que nos encontramos apenas nas festas de aniversário uns dos outros - ou dos nossos filhos. Isso não quer dizer que não gostemos da companhia uns dos outros, ou que não acompanhemos - mais ou menos - como uns e outros estão. Nem que sintamos que em caso de necessidade basta um toque para nos juntarmos e sofrermos juntos ou rirmos juntos. Sabemos apenas que as nossas vidas seguiram caminhos na essência semelhantes mas paralelos e que por isso poucas vezes se encontram.
Gosto muito de conversar com pessoas inteligentes, que me interrogam, que me confrontam com as minhas próprias ideias e convicções e me obrigam a desmontar os lugares comuns nos quais me refugio demasiadas vezes. Aprendo sempre, quanto mais não seja a desmistificar-me e a não me levar demasiado a sério. Ainda agora, numa dessa conversas, perguntava-me se relativamente aos meus filhos também sentia esse desprendimento da distância. Respondi que não, que os filhos são um caso à parte, que todos sabemos que ter filhos é viver com o coração fora do corpo. Contudo, agora que a conversa terminou mas, como qualquer conversa que se preze, continua a vaguear cá por dentro, dou por mim a recordar que já disse aos meus filhos que não faço a mínima tenção que eles vivam lá em casa depois de adultos ou que eu viva em casa deles depois de velho.
Amo-os demasiado para impor a minha presença quando ela já não for necessária.
20111031
À medida que o tempo passa - e como eu gosto da sensação que o tempo passa! - vou sentindo que aquilo que me seduz na vida vai sendo diferente. Estou numa fase em que aprecio muito a calma, a paz, a serenidade. Não que as tenha agora em maior ou menor quantidade que antes, apenas as aprecio melhor, as saboreio melhor.
O novo livro do José Tolentino Mendonça começa justamente com essa calma, essa serenidade. Depois de ler as primeiras linhas fechei-o por não conseguir conciliar o que me ia na cabeça com o que lia. Acontece-me muito isso, particularmente com os bons livros que, apesar se por vezes terem poucas páginas, são os que me levam mais tempo a ler... e a degustar, como um bom Porto. A interrogação maior que me assaltou logo naquelas linhas - e que ainda agora vai vagueando cá por dentro - é o que me impede de, nesta altura, sentir aquele tipo de paz, de harmonia: se o meu interior, se o meu exterior.
A resposta não é difícil, mas incomoda.
20111026
Uma das coisas que aprendi em Moçambique foi que o meu olhar por vezes incomoda. Nunca tinha pensado nisso dessa forma. É certo que para mim o primeiro impacto das pessoas está sempre ligado aos seus olhos, se sorriem, se têm vida, se são vazios, alegres ou baços. É natural, por isso, que tenda a olhar fixamente para as pessoas, que tente ler nos seus olhos o que lhes vai na alma. Para mim o olhar é o mais claro indicador da beleza de uma pessoa, e para o caso nem sequer é importante se é homem ou mulher. Há olhares que me despertam logo à partida para um tipo de beleza interior que transborda e torna todo o exterior mais especial. Outros, porém, não me dizem nada, e costumam ser fatídicos: pessoas com olhares mortiços têm que se esforçar muito para me agradarem. E há também olhares frios, absolutamente gélidos, que me intimidam sempre, que me levam a pensar meia dúzia de vezes antes de dizer o que quer que seja, com cujos donos tento ser cordial mas de quem não sou amigo. A não ser que se transformem.
Ainda ontem, numa animada conversa com as minhas filhas - uma pró-praxe e outra que não tinha pachorra para aquilo - eu lhes dizia que nunca aceitaria ser praxado na faculdade porque nunca aceitaria não olhar as pessoas nos olhos. Para além de não perceber a barbaridade das humilhações públicas - algo com o qual seria impossível compactuar, nem sequer por omissão - nunca na vida me senti de tal forma subalterno que não pudesse olhar ninguém nos olhos. Mesmo quando cometo as maiores camelices, mesmo quando sei que não tenho razão, mesmo quando tenho que pedir desculpa, é absolutamente fundamental olhar nos olhos de quem magoei. Porque só assim consigo transmitir até que ponto necessito do seu perdão.
20111025
Lá tenho eu que voltar aqui.
Já me falta pouco para acabar o livro e como história não é grande coisa. Curiosamente, acho-o bem mais útil como manual de bíblia que como ficção. A sensação que tenho é que José Rodrigues dos Santos empenha-se em demasia em justificar as ideias do Tomás perante uma demasiado crédula Valentina que nunca se preocupou em pensar a sua fé. Realmente, creio que uma católica um bocadinho mais afirmativa, mais convicta da sua fé, menos cabeça de vento e menos maria-vai-com-as-outras, que pudesse dar alguma luta ao historiador - não tanto na informação mas nas conclusões que tira a partir delas - apenas enriqueceria a história. Provavelmente estragaria a leviandade do Tomás Noronha, mas um bocadinho de contraditório enriquece-nos sempre, e aquelas constantes interjeições dela tiram-me do sério. É preciso nunca ter pensado a sério em Jesus e na fé que se professa para se espantar com o facto de ele ser judeu.
Mas também não se pode exigir muito ao autor porque provavelmente os católicos que ele conhece são justamente aqueles que, quando muito, vão à missa ao domingo, e nunca se comprometeram a sério com a sua fé. Não que isso seja defeito para ninguém - aliás, ser cristão também não é virtude, é escolha - mas sempre é mais permeável quem vive na superfície.
Contudo, apesar de, mesmo eu, com toda a minha ignorância na matéria, conseguir identificar alguns (para não dizer muitos) erros crassos a olho nu e sem grande esforço, não tenho gostado do processo de intenções que alguma igreja tem levantado. Nem acredito que o José Rodrigues dos Santos tenha qualquer intenção de ferir susceptibilidades, ou dizer mal seja quem for - embora termos como "fraude" sejam demasiado fortes e desnecessários e apenas contribuam para o aumento do "ruído", mas enfim.
Acredito que aquilo que, por via do Tomás Noronha, o autor escreve, resulta mesmo da sua convicção que fez uma importante descoberta que a Igreja e os teólogos em particular se empenharam a esconder, e isso anda muito longe da verdade. O que é um facto é que eu próprio me perguntei algumas vezes porque nunca houve um empenho maior em divulgar estas informações. Sei que seria complicado, mas no limite contribuiria para o desenvolvimento de uma fé madura, mais consciente e menos superficial. E evitaria que agora tivéssemos que justificar em vez de explicar a verdade com calma e com tempo.
20111022
Comecei ontem a ler o Último Segredo, do José Rodrigues dos Santos. Li já quase todos os livros dele, faltando-me apenas, por falta de tempo, O Anjo Branco. Gosto muito do seu estilo, que me torna sempre dependente ao ponto de pegar nos seus livros e apenas os deixar quando os acabo. Aprendo sempre alguma coisa, também porque gosto da pesquisa que ele faz e da forma como a mistura com a história. Para mim é uma espécie de Dan Brown para melhor, com mais rigor, com melhor escrita, com uma maior mestria na gestão das suas histórias. Não o considero, contudo, um grande escritor, daqueles profundos, que nos mexem cá por dentro, que tem a capacidade de nos pôr a questionar as nossas opções de vida.
Este O Último Segredo retoma o tema dos documentos e conclusões supostamente escondidas pelo Vaticano, cheio de organizações super secretas compostas sempre por católicos obscuros que podem contar com um sanguinário que está disposto a obedecer a alguém em nome da fé cega numa qualquer instituição. Os acontecimentos sucedem-se a partir de uma qualquer medo que uma suposta verdade seja finalmente revelada e que faça com que a Igreja se desfaça como um castelo de cartas.
Creio que faria muito bem a estes escritores - e, por maioria de razão, a muitos católicos que entram em frenesim com estes livros - que fizessem um bom curso de catequese ou uma licenciatura em Ciências Religiosas antes de se darem ao trabalho de escreverem estes livros ou de panicar com eles. Uma boa meia-hora com o Prof. Franklin e a primeira coisa que com certeza aprenderiam era a desmistificar a Bíblia com todos os seus números e enredos históricos e ironias e histórias chocantes e milagres e palavras que significam algo de muito diferente, que antes de serem escritas foram contadas por pessoas do seu tempo - e um cristão tem que viver sempre no seu tempo, caso contrário é um lunático - com a sua cultura, com a sua própria circunstância, com a sua forma de ver as coisas, com o seu olhar particular sobre o mundo, porque eram justamente isso: pessoas, que por vezes até o faziam no meio de verdadeiras crises de fé.
Não ver a Bíblia como tendo sido escrita por pessoas - inspiradas por Deus, é certo, mas que eram fundamentalmente pessoas - é não perceber nada de Jesus Cristo, é não perceber que Deus se fez homem, pessoa simples de entre as pessoas simples, justamente para nos ensinar que é na medida em que conseguimos abraçar essa radical simplicidade, é na medida em que conseguimos ser-para-os-outros e viver uma vida de serviço, que justificamos a humanidade que nos diviniza.
Enquanto teimarmos ver a Bíblia como um livro sagrado, intocável, inquestionável, fundamentalista, enquanto nos negarmos, nós próprios, a mergulhar de espírito aberto nas suas páginas, sujeitamo-nos a que venha um qualquer profeta dos tempos modernos e nos consiga dar a volta em duas penadas. O que já seria grave se quem ficasse a perder fosse "apenas" o próprio. O que acontece muito, infelizmente, é que a confusão se gera normalmente entre aqueles que têm a responsabilidade de testemunhar, na vida vivida, o Deus no qual acreditam.
E aí quem fica a perder somos todos nós.
20111020
Dizia hoje a uma amiga que ela estava a falar com o rei da sublimação.
Há dias assim, em que os acontecimentos se encadeiam uns nos outros, como se fossemos instrumentos de uma sinfonia conduzida por uma maestro atento a cada um de nós. Hoje de manhã, ao pequeno-almoço, o João, o meu filho mais novo fez-me pensar no passado. Nessa viagem que fiz num tempo que era simultaneamente curto e longo, pesei vários acontecimentos provocados por várias decisões que tomei e que tiveram implicações graves tanto para mim como para aqueles que me amam. Questionei se hoje as voltaria a tomar, sabendo das suas consequências para todos nós e surpreendi-me ao pensar que talvez voltasse a repetir os mesmos erros. Não porque não tenham tido importância ou repercussões sérias, não porque não me sinta mal por causar mal, e estou muito longe de pensar que as minhas decisões foram as melhores. Teria que ser maluco ou muito inconsciente para o fazer e (já) não o sou.
O que acontece é que a questão de fundo não é essa. A questão de fundo é que as decisões que tomei naquela altura e naquelas circunstâncias estiveram em sintonia com quem eu verdadeiramente sou, com todas as imensas falhas, com todos os imensos defeitos que fazem parte de mim. Eu sou assim. Intrinsecamente assim. Por isso, se aquelas circunstâncias se voltassem a repetir o mais provável é que as minhas decisões seriam as mesmas. Até porque na altura foram devidamente pensadas e assumidas.
Naturalmente, acredito muito na nossa capacidade de mudarmos, de nos irmos aperfeiçoando à medida que o tempo passa e vamos deixando que a sabedoria vá tomando conta de nós. Contudo há uma parte de nós que por muito que nos esforcemos continua a ser aquela que nos define, que faz de nós quem realmente somos, que faz com que eu seja este Zé e não um outro Zé qualquer. E naquela longuíssima viagem que empreendi no curtíssimo tempo do pequeno-almoço tive a alegria de sentir que, pelo menos, tinha sido eu, que não me tinha "vendido", que os meus defeitos são meus.
Não é fácil aceitar-me tal como sou. Não é fácil tentar integrar em mim um passado que muitas vezes preferia que não tivesse acontecido, umas circunstâncias que gostaria que tivessem sido outras, uma infância que pretendia mais feliz, um todo outro que, contudo, não é o meu. Não é fácil. Ainda hoje passo algum tempo no meu "sótão" a lidar com velhos fantasmas, a remexer em gavetas e a tentar ver o meu presente integrando o meu passado. A tentar assimilar todas essas peças tentando fazer um puzzle que dê lugar a algum futuro. Tenho a sorte de estar rodeado de muitas pessoas que me dão o tempo, o apoio, o carinho necessários para que eu me possa arrumar.
Ao mesmo tempo, contudo, a sensação profunda que tenho é que nada disto é realmente importante. O meu Deus, Aquele no qual acredito e amo é justamente Aquele que chamou Zaqueu sem lhe perguntar pelo passado, restaurou a dignidade à Samaritana mesmo conhecendo o seu passado, e que, acredito, me acolherá querendo saber para onde quero ir sem me perguntar de onde eu venho.
Tal como dizem os brasileiros: "quem vive de passado é museu."
Assim seja ;-)
20111019
Tenho alturas em que sinto claramente que Deus tem os olhos postos (também) em mim.
Quem me conhece de perto, mesmo de perto, sabe que tenho uma grande tendência para me armar aos cucos. Que quando as coisas me correm bem por muito tempo, quando vou tendo algum sucesso, algum reconhecimento,começo a embarcar em mim, a ficar cheio de mim e a dar espaço à arrogância. Como estou rodeado por pessoas que me conhecem bem, autênticos grilos falantes, sou muitas vezes corrigido, mas o verdadeiro perigo é quando não ligo patavina ao que me vão dizendo. Às tantas estou mesmo obcecado com a minha própria visão das coisas e não consigo ver um palmo para além do meu nariz, ou do meu enorme umbigo.
É nestas alturas, justamente nestas alturas, que sinto que Deus intervém na minha vida. E quase nunca de uma forma agradável. Normalmente actua através de um qualquer acontecimento que me faz cair em mim, ver as minhas enormes limitações, e assumir que preciso de um bom banho de humildade.
Foi isso que aconteceu entre ontem no final da tarde e hoje de manhã. O meu grilo falante alertou-me para a forma como falei, demasiado senhor de mim, demasiado arrogante, demasiado certo do meu ponto de vista. Acusei o toque e fiquei a remoer cá por dentro, como sempre, aliás.
Hoje acordei com uma má notícia no e-mail e pensei no que acontecera ontem. Alguns dirão que não tem nada a ver, que foi coincidência, que um caso não tem nada a ver com o outro. É uma forma de ver as coisas. Não é aquela que eu escolho. Eu escolho tentar ver a minha vida, o que me vai acontecendo, de bom ou de menos bom, como fazendo parte de um caminho. Que precisa muitas vezes de ser corrigido, que precisa sempre de ser afinado, que preciso, eu próprio, de me colocar em sintonia com o que o Pai espera de mim. Não é uma questão de superstição do tipo: se me portar bem terei apenas coisas boas. Não é isso. É tentar ver a minha vida com os olhos de Deus.
Porque sei que quando não sou capaz de o fazer, a minha vida é bem mais feia.
E não é para isso que sou cristão.
20111016
Apesar de ambos nos amarmos, sabemos que somos diferentes. Muito diferentes.
Num dia destes, enquanto via - via efetivamente, não lia - o que vou colocando nos meus blogues, dizia-me que eu parecia um adolescente, com questões que já não deveria ter na minha idade, com tentativas de respostas que já não deveria dar.
Sorri, como sorrio sempre que me faz esse tipo de críticas. E respondi como sempre respondo, com a verdade mais lapaliciana que conheço e mais digo porque é frequentemente esquecida: tudo tem custos. Se queres alguém na tua vida que dê um pouco de ar fresco à enorme seriedade e responsabilidade que usas em toda a tua vida, tens necessariamente que lidar com algumas infantilidades fora de tempo e de moda.
Será esse, possivelmente, um dos nossos "segredos". Somos ambos muito diferentes, fizemos percursos quase opostos até que a vida - Deus? - nos colocou frente a frente. Desde esse dia, ainda que por vezes fisicamente longe um do outro, nunca mais concebemos uma vida a solo: começou por ser um dueto, depois um trio, e agora anda perto de uma banda filarmónica. Conscientemente, nunca deixamos que a solidão tomasse conta de nenhum de nós, de nenhum dos nossos, e vamos revezando-nos mutuamente no apoio que, alternadamente, vamos precisando e pedindo sem pedir.Durante as muitas vicissitudes que a vida se encarregou de nos apresentar lá fomos conseguindo dar colo umas vezes, pedir colo noutras, e refugiarmo-nos no colo do Pai quando estávamos ambos demasiado cansados para suportar o que quer que seja. `s vezes é fácil entendermo-nos, noutras, porém, temos que recorrer a uma enorme lupa, uma lanterna bem potente e doses incomensuráveis de pachorra para conseguirmos deslindar um ponto em comum. Mas lá vamos conseguindo, às vezes sabe Deus como, mas lá vamos conseguindo. E o gerúndio aqui é absolutamente fundamental porque um casamento nunca se consegue definitivamente, nunca há aquela altura em que nos sentamos no sofá, descalçamos os sapatos e nos instalamos na vida com a sensação que agora tudo está conseguido, nada poderá estragar o esquema. No dia em que ambos fizermos isso, o céu cair-nos-à em cima da cabeça.
Mas como dizem numa velha aldeia gaulesa a norte da Armórica: amanhã não vai ser a véspera desse dia.
20111014
Ontem, depois de ouvir o discurso do Primeiro Ministro, fui estudar. O dia fora enorme e intenso, às 21.30 tinha duas reuniões ao mesmo tempo - uma do jornal da paróquia outra da Pastoral Familiar - pelo que não tinha tempo a perder: ainda poderia aproveitar uma boa meia-hora. No meu livro de Teologia Espiritual - é a cadeira do momento - tinha algo assim: "Neste processo de transformação a fidelidade do crente é posta à prova: crer, na total escuridão; amar, no abandono; esperar, contra toda a esperança."
Bingo!
Pensei imediatamente naquilo que ia lendo no twitter à medida que ia estudando, os ecos do discurso, o desespero de algumas pessoas, a falta de lata de outras, a prontidão com que muitas se dispuseram a insultar o nosso Primeiro e a mãe dele, a convocação para inúmeras manifestações. Pensei que enquanto estava essa malta toda a vociferar contra a situação - é um direito que se lhes assiste - estava eu a aproveitar uma folga para estudar depois de um dia intensíssimo que só terminaria depois da uma da manhã. Pensei que se trabalhasse mais meia hora para além do meu horário de trabalho passaria a sair bem mais cedo, a ter fins de semana de dois dias e mais tempo livre, o que nem era assim tão importante porque adoro o que faço. Pensei que o melhor era voltar ao estudo e ao trabalho porque o tempo urge e é necessário é batalhar pela vida e não esperar que a vida tome conta de nós.
Sei bem que há pessoas a passar por enormes dificuldades. Que há muitas famílias a quem sobra mês no fim do dinheiro, que há pais e mães no desemprego e em desespero porque não têm onde conseguir dinheiro para dar de comer aos filhos. Sei-o porque contacto com eles, falo com eles todas as semanas, conheço os seus filhos e já decorei as suas caras de fome e roupas esfarrapadas. Mas nunca os vi em qualquer manifestação e muito menos a faltar ao emprego para ir fazer berrarias. O seu maior desejo, nesta altura, era ter um trabalho, era poderem trabalhar mais meia hora, ou uma, ou meia dúzia, que lhe restituíssem a dignidade de poder voltar a sustentar a família.
É duro, eu sei.
Lidei durante muitos anos com empresas e empresários, com exploradores de mercedes cuja falta de escrúpulos envergonharia qualquer ditadorzeco africano. Conheci alguns que não pagavam salários alegadamente por falta de dinheiro mas faziam gala em exibir aos funcionários as fotos das férias paradisíacas. Conheci também maus funcionários, que faziam tudo para não fazerem nada, sempre com esquemas para sacarem mais dinheiro ao patrão, à segurança social, ao diabo a quatro. Nesse meio já vi de tudo, já tive que engolir de tudo, já me revoltei contra tudo e não tenho ilusões.
Por isso nesta altura apenas tenho pena dos que querem efectivamente trabalhar e não conseguem.E esses andam demasiado ocupados a procurar trabalho, nem que seja em biscates, e não têm nem tempo nem dinheiro para manifestações.
Tenho dito
20111011
Detesto as ligações, às claras ou não, de alegria, festa, divertimento, com o álcool. Quando a minha filha chegou à faculdade teve que levar com n avisos da minha parte a alertá-la para esse verdadeiro flagelo. Ainda na semana passada, enquanto ouvia mais um podcast do "O Amor é", o Prof. Júlio Machado Vaz falava nisso, no perigo do álcool institucionalizado, de tal forma enraizado na nossa sociedade que tudo o que é importante tem que ser bem "regado" porque senão não fica baptizado como deve ser.
Apesar de gostar de beber, com muita moderação, não posso com bêbados. Acho verdadeiramente inacreditável as cenas degradantes das praxes e da Queima das Fitas, das noites, onde malta nova se arrasta e se deixa arrastar porque bebeu uns copos a mais. É um negócio com uma margem de lucro verdadeiramente inacreditável onde as pessoas ganham verdadeiras fortunas à custa da miséria e do descontrolo alheio.
Todos os sábados levanto-me bem cedo para ir levar uma das minhas filhas à GNR do Porto para a equitação. A quantidade de copos de plástico e de lixo e de garrafas partidas e de coisas vomitadas naquela zona àquela hora é revoltante. Por todo o lado, naquela zona, àquela hora, vemos restos de tudo, absolutamente tudo, porque os meninos e meninas nem sequer se dignam a enfiar o seu próprio lixo nos sítios adequados para o efeito. Por todo o lado, naquela zona, àquela hora, vemos um batalhão de funcionários a varrer tudo, a lavar tudo, numa operação que, calculo, não deve ficar nada barata.Por todo o lado, naquela zona, àquela hora, vemos colegas a arrastarem outros colegas perdidos de bêbados, miúdos e miúdas que ainda deviam estar ainda sob a alçada dos pais nas cenas mais degradantes e mais nocivas para a sua própria saúde.
Eu, que até gosto de um bom vinho, de uma boa aguardente, ou de um bom single malt, não consigo perceber como ninguém se preocupa em acabar com este verdadeiro flagelo.
Não posso com bêbados. Seja porque motivo for.
20111010
Daily Quote:
Leaders are not what many people think – people with huge crowds following them. Leaders are people who go their own way without caring, or even looking to see whether anyone is following them.
John Holt
Nunca fui um líder. Nunca o consegui ser. E nunca o quis ser. Sempre foi muito incomodativo para mim quando me apercebi que de alguma forma davam demasiada atenção ao que eu dizia, ao que eu escrevia, e me tornavam numa espécie de guru, que eu detesto. Não quero ter - não posso ter - esse tipo de responsabilidade em cima dos ombros. Não tenho a consistência necessária, as certezas absolutas e firmes, a despreocupação pelos outros que um líder tem que ter. Ando demasiado aos apalpões do terrenos, meio sem saber qual o caminho, sempre sem respostas definitivas, sempre com a dúvida à flor da pele, sempre na procura do melhor caminho, e, por isso, sempre a recomeçar qualquer coisa depois de descobrir que afinal o caminho era outro.
Adoro conversar a profundidade, detesto a conversa de chacha, de elevador, pura perda de tempo e puro desperdício. E nunca escondo de ninguém as minhas imensas fragilidades, até porque me são bem mais importante que as minhas certezas. Se há característica que me distingue é justamente essa: a da assumpção plena e de cabeça erguida que as minhas certezas são quase todas elas, passageiras, sempre contestadas, sempre discutíveis e discutidas.
E é muito raro, é raríssimo, não querer saber o que os outros pensam de mim, o que os outros sentem em relação a mim, aquilo que desperto neles, se sou problema ou solução, se sou motor para avançar ou marcha a ré. Sempre que esqueço isto, sempre que não me preocupo com estas coisas, é sinal que estou demasiado convencido de mim, demasiado cheio de mim, que estou a ficar demasiado longe do que quero de mim.
Não tenho por isso os instrumentos necessários para ser líder do que quer que seja.
Deus seja louvado !
20111007
20111006
Devo ser dos poucos que não gosta particularmente dos I qualquer coisa. Isso nunca me impediu, contudo, de admirar o Steve Jobs, como admiro outros fundadores de impérios como a Google, o Facebook, a Microsoft... São pessoas cujas vidas nos ensinam muita coisa: como aproveitar as oportunidades, como não ter medo de avançar sozinho, ignorando os velhos do Restelo, como se pode correr muitos riscos e ainda assim triunfar, como cair e levantar para aprender a cair melhor.
Hoje, enquanto vinha para cá, ouvia uma excelente peça que passava na TSF acerca do Steve Jobs, das suas dificuldades financeiras quando estudava, dos sacrifícios que fazia para não gastar as poupanças de uma vida dos seus pais, da sua escolha por estudar caligrafia, porque era bela e antiga apesar de aparentemente não servir para nada - e que, afinal, lhe cultivara o gosto pelo belo que tão profundamente marcou toda a Apple.
Quando nós olhamos para estes verdadeiros magnatas dos tempos modernos temos tendência para pensar que nasceram com o rabiote voltado para a lua, que são especialmente bafejados pela sorte ou pelos deuses, ou então que são sobredotados e, por isso, pouco têm de comuns mortais. Quase nunca é assim: são pessoas dotadas, sim, mas fundamentalmente esforçadas, aplicadas, que fazem das fraquezas forças que não se permitem pensar pela cabeça dos outros nem desistir dos seus objectivos por dá cá aquela palha. E é justamente por isso, por serem comuns mortais, tal como nós, que podemos e devemos aprender com eles.
Recordo-me muitas vezes do choque que apanhamos todos na faculdade quando nos foi dito que os Evangelhos não tinham sido escritos por super-homens ou anjos mas por pessoas comuns, pequenas até, aos olhos dos outros homens. Não podia ser. Porque haveríamos então de seguir o que tinha sido escrito por pessoas tão comuns e simples como nós? Como respeitar então as escrituras se não tinham sido escritas por pessoa especialmente abençoadas por Deus? Descobri afinal que é justamente nos simples e pelos simples que Deus se nos dá a conhecer todos os dias. E que se formos bem sucedidos nessa árdua tarefa de sermos, nós próprios, simples, podemos ajudar outros a escrever, na sua vida e na dos outros, a sua própria Boa Nova.
Confundimos muitas vezes, demasiadas vezes, sabedoria com poder, sucesso com ostentação.
Até por isso, pela forma simples como se vestia, aprendi com Steve Jobs.
Que descanse em paz.
20111004
Não posso afirmar, em boa verdade, que tenha orgulho em mim. Quando olho para a minha vida vejo, isso sim, muitos motivos de orgulho nos meus, naquilo que eles conseguem... apesar de mim. Agora já não, porque nestes últimos anos cresci e serenei o espírito, mas houve uma altura em que o que mais temia era que aqueles que me amam descobrissem quem eu sou e que, por isso, deixassem de me amar.
Apesar de tudo, uma das coisas de que me orgulho, porque sempre fez parte de mim quaisquer que fossem as circunstâncias, é a minha vontade de ir sempre mais longe. Quase nunca é na direcção que alguns esperariam, mas o Mestre Tempo tem revelado que é na direcção certa. Esse desejo muito íntimo, muito meu, muito latente, de ser cada vez mais foi o que me permitiu sair do bairro, ter uma verdadeira fixação por aprender com tudo e com todos, e, acima de tudo, desenvolver uma boa dose de resiliência - que não poucos entendem como sendo loucura, e talvez com razão - que me tornou num sempre-em-pé.
Outra consequência dessa vontade de ir sendo cada vez mais é a minha propensão para me ligar a pessoas que, não sendo propriamente fáceis, são no entanto imensamente ricas. O melhor exemplo é, naturalmente, a minha mais-que-tudo, que por vezes me tira do sério como mais ninguém mas a quem devo quase tudo o que sou e tenho. Gosto naturalmente de pessoas complicadas, exigentes, que me desafiam a ir mais longe e às quais não posso, por este motivo ou por outro, dizer não.
Afinal, são elas que me levam mais longe.
20110930
Quando digo que gosto de envelhecer olham-me de lado. Numa cultura que endeusa o novo, o eternamente novo, bonito e saudável, de sorriso estúpido na boca, nem que seja à custa de toneladas de silicone, próteses dentárias e fortunas que colocariam um país africano no Primeiro Mundo, gostar de ficar velho soa a imperdoável anacronismo.
Paciência!
Uma das coisas boas da passagem do tempo é justamente a de nos podermos dar ao luxo de sermos quem somos. Podermos dizer o que nos vai na alma tendo apenas o cuidado de não magoar aqueles de quem gostamos mas com o desassombro de quem vai sabendo o que quer graças às escolhas que se foi fazendo ao longo da vida.
Este desassombro - que por vezes é pelos outros tido como "cara de pau", "granda lata" ou "convencido como o caraças". Paciência! - é o que me permite dizer por exemplo que me sinto muito feliz quando sinto que faço alguém feliz, que contribuo de alguma forma para que o dia de alguém seja mais sorridente, ou para que um qualquer problema seja ultrapassado. Pode parecer meio totó - paciência! - mas sinto nessas alturas que, se quiser, se estiver atento, e, sobretudo, se não me armar aos cágados - o que também por vezes acontece - posso ser um bocado da face e das mãos de Deus para os outros.
E isso deixa-me verdadeiramente feliz.
20110927
Quando estávamos em Moçambique passei os primeiros dias a tentar explicar que eu sou naturalmente sossegado. Normalmente quem contacta comigo não fica com essa impressão: ando sempre com a minha guitarra às costas, sorrio muito, gosto muito de ambientes descontraídos e bem dispostos e volta e meia digo até algumas larachas para gente rir. Não é, contudo, por muito tempo. Quando estou rodeado de pessoas, sejam elas amigas ou não, o meu ambiente natural, onde me sinto mais confortável, é num canto qualquer, sossegado, a olhar, a ver e a ouvir quem me rodeia. Apesar de estar só não me sinto só, nada disso. Vou vendo uns e outros, ouvindo uns e outros, lendo uns e outros. E sorrio muito, à medida que os vou vendo e descobrindo. Sempre.
No início, esta minha forma de ser causou alguma confusão, mas cedo confirmaram que eu sou mesmo assim. Gosto muito de pensar, de dialogar comigo próprio, de me colocar em causa, de saber exactamente o que sinto quando sinto e porque sinto. E isso apenas pode ser feito com um certo recolhimento. Tento sempre, contudo, não me fechar aos que me rodeiam, estar atento a eles, às suas necessidades, às suas alegrias e tristezas. É através desse olhar aos outros que eu me encontro comigo próprio, me confronto, tento estabelecer a minha medida justa de ser, tento até encontrar a medida do ser de Deus, que se me revela naqueles que me rodeiam. E tento crescer, nos outros e com os outros.
Ás vezes consigo, outras não, mas tento sempre.
20110923
andaimes
Voltei a senti-lo ontem.
Tivemos aqui a entrega dos diplomas do ano passado e voltei a senti-lo ontem.
Como a nossa presença na sua vida é fugaz! Bastam alguns dias de distância, uma mudança de paradigma, os olhos postos num qualquer outro futuro, e tudo muda. O olhar, o sorriso, a cumplicidade, tudo é feito agora de uma forma mais distante, mais fria, muito mais impessoal.
É normal que assim seja. Arriscaria a dizer até que é bom que assim seja. Temos que ter a capacidade de avançar, de continuar caminho, de fazermos nossas outras vidas e de sermos nós próprios vidas de outros. Tudo isso seria impossível de acontecer sem essa capacidade de avançarmos, transportando as nossas memórias, integrando-as naquele que queremos seja o nosso futuro.
A nossa tentação de nos estabelecermos no cimo da montanha, montarmos a tenda e apreciarmos a paisagem é enorme. Queremos sempre guardar as pessoas que nos são mais queridas, os momentos mais marcantes, as experiências mais profundas de forma a vivermos delas, da sua eterna e constante repetição. Quando o fazemos esquecemos que apenas nos ligamos a outros porque em algum momento da nossa vida nos fomos desligando dos nosso pais, dos nossos amigos da infância, dos nossos primeiros professores, e que todos eles, uns mais outros menos, fazem parte agora do património que constitui o que verdadeiramente somos. E que se tivermos sorte nos voltaremos a ligar a umas outras pessoas que terão um papel tão importante e tão fundamental na nossa vida como o tiveram aqueles de quem tanto nos custa desligar hoje.
Quando olhamos para um edifício vemos apenas o que está acima da superfície. Vemos a sua cor, a sua beleza, o tempo que por ele já passou. Se gostarmos verdadeiramente desse edifício até nos podemos dar ao trabalho de o conhecer melhor e investigamos os seus alicerces, a planta que o tornou possível, conseguindo até adivinhar a ideia do arquitecto quando o concebeu. Podemos ver quase tudo o que tornou aquele edifício possível. Excepto uma coisa sem a qual a construção não seria possível: os andaimes. Estavam lá desde o início da construção, acompanharam toda a construção, foram a última coisa a ser retirada terminada a construção. Apesar de imprescindíveis, não há contudo qualquer registo da sua presença. Colocam-se quando ainda não há nada para apreciar e são retirados para não esconder o que é para ser apreciado. No final, ou são entulho ou então, na melhor das hipóteses, servirão de suporte a uma outra obra.
Sempre que penso em andaimes penso no Sr. Vicente. Marcou-me muito,pelo que dizia, pelo que não dizia, pelo prazer que tinha em servir os outros. Ensinou-me muito, principalmente a beleza de ser andaime. A determinada altura os nossos caminhos separaram-se e nunca mais nos vimos. Soube há alguns anos que ele tinha falecido e não me tinham dito nada. Chorei baba e ranho.
Por vezes gosto de pensar em mim como andaime.
Se no fim mais alguém o fizer, já valeu a pena.
20110921
Leio e oiço muitas vezes que o melhor mesmo é não nos envolvermos, não nos incomodarmos, fazermos de conta que o que ouvimos e vemos não é nada connosco. Assobiamos e passamos ao lado.
Não, obrigado. Não consigo, não quero, não se faz, não tem nada a ver comigo. No dia em que isso acontecer, internem-me, que eu já não faço nada aqui.
Incomoda-me? Ainda bem, porque eu tenho mesmo a tendência para me acomodar, refastelar, vegetar, o que quer que seja, e por vezes preciso mesmo de uma qualquer abanão que me faça avançar.
Comove-me? Ainda bem, porque me move ao encontro do outro, daquele que comigo todos os dias partilha um pouco de si e leva em troca um pouco de mim.
Poderia eu, porventura, trocar estas formas de estar e de viver e fazer de conta que não era nada comigo?
Não consigo.
Ainda bem.
Estou vivo.
20110920
Lembrei-me hoje de uma coisa que sempre dizia aos meus filhos quando eram pequenos: "o não consigo não existe." Ainda na semana passa ouvi da boca do Nuno algo parecido, mas melhor: "existem apenas dois tipos de pessoas: os que conseguem e os que nunca tentaram."
Vem isto a propósito da conversa que acabamos de ter, eu a minha mais-que-tudo, durante o habitual périplo que costumávamos ter e tentamos retomar. Mais uma das nossas filhas entrou esta semana para a Faculdade. Não houve stress nenhum, entrou na primeira opção, no local onde queria, sem o mínimo constrangimento ou dificuldade. O mau da coisa é que quando soubemos o resultado dissemos "ah e parabéns e tal" sem fazermos nenhuma festa, nada de especial. Apercebemo-nos disso apenas quando contamos aos amigos e estes nos dão os parabéns e dizemos que temos muita sorte, e quem lhes dera ter uns filhos assim, e nos deixam inchados como perus em véspera de Natal.
É triste. Eu acho triste. Claro que é o resultado de muitos anos de trabalho, de canseiras, de tentar educar o melhor que se pode, de abdicar de muita coisa secundária para que eles possam alcançar o essencial com esta facilidade.
Mas ainda assim é triste.
Logo tenho que lhe dar um beijinho
Vem isto a propósito da conversa que acabamos de ter, eu a minha mais-que-tudo, durante o habitual périplo que costumávamos ter e tentamos retomar. Mais uma das nossas filhas entrou esta semana para a Faculdade. Não houve stress nenhum, entrou na primeira opção, no local onde queria, sem o mínimo constrangimento ou dificuldade. O mau da coisa é que quando soubemos o resultado dissemos "ah e parabéns e tal" sem fazermos nenhuma festa, nada de especial. Apercebemo-nos disso apenas quando contamos aos amigos e estes nos dão os parabéns e dizemos que temos muita sorte, e quem lhes dera ter uns filhos assim, e nos deixam inchados como perus em véspera de Natal.
É triste. Eu acho triste. Claro que é o resultado de muitos anos de trabalho, de canseiras, de tentar educar o melhor que se pode, de abdicar de muita coisa secundária para que eles possam alcançar o essencial com esta facilidade.
Mas ainda assim é triste.
Logo tenho que lhe dar um beijinho
20110915
Não sou particularmente fã de reencontros. De grupo, nomeadamente. Sei que invariavelmente têm lugar, acontecem sempre, particularmente depois de uma experiência de comunidade forte, como foi a de Moçambique, é a de Taizé, Compostela, Colónias, etc. Apesar disso, quase nunca falto. Nem faço sacrifício algum em ir. Mas vou preparado.
Ontem tive um desses momentos: um jantar de Moçambique com as nossas famílias. Foi bom estarmos juntos, foi bom darmos rostos aos nomes das pessoas de quem tínhamos saudades, foi muito bom voltarmos a jogar ao lobo. Mas foi apenas isso: bom. Nada que se compare com a experiência extraordinária, arrebatadora, que tivemos em Moçambique. E que, por isso, tudo teria mesmo que saber a pouco.
É por isso que ofereço alguma resistência a estas tentativas de reencontro. Gosto muito de os ver, de voltar a estar com eles, e, particularmente em relação aos que não andam cá, tenho mesmo que aproveitar estas alturas para os poder rever. Mas o tempo para conversarmos é sempre muito curto, já se passaram muitas outras coisas entretanto, a própria disponibilidade mental é outra, e acabamos por ficar com demasiadas conversas a meio, arranhando a superfície, mas não ousando ir mais longe que isso. Prefiro sempre, por isso, escolher as alturas para voltar a conversar, olhos nos olhos, com mais calma, mais de encontro e menos, muito menos, de circunstância, que é algo que eu detesto.
Creio que nestas coisas, como noutras, a idade e a experiência são muito importantes. Apesar de me ser sempre muito difícil passar de um estado a outro, já consigo fazer o luto de algumas experiências e pessoas de uma forma mais integrada e, se calhar, menos dolorosa. Já vivi o suficiente para perceber que a vida se encarrega de colocar no nosso caminho aquelas pessoas que são importantes para nós, nem que seja à distância de um click.
Claro que continuo, todos os dias, à espera dos seus sorrisos, dos seus olhares, das suas mensagens, dos seus "faces".
Mas já consigo esperar sentado.
Calma e pacientemente sentado.
É a idade!
20110909
Alguém me perguntava, num destes dias, se era muito mau não conseguir transmitir aos outros muito do que se passou lá, naquela terra de fim do mundo. Eu sorri e respondi que não, não era muito mau. O que se passa é que há coisas que aconteceram durante aqueles dias que são impossíveis de se transmitir.
Como é que se transmite, por exemplo, que, apesar de estarmos longe como o caraças daqueles que amamos, apesar das saudades que nos cortavam por dentro, apesar do cansaço acumulado, estamos felizes por termos o privilégio de estar naquele lugar, naquela altura, com pessoas fabulosas? Como é que se explica aos outros a explosão de pura alegria que meia dúzia de canções pimbalhescas faz sentir enquanto se arruma uma cozinha, a forma como as defesas de cada um vão dando lugar à partilha, a maneira como estávamos atentos uns aos outros, como sentíamos que as dificuldades, as alegrias, as saudades, as pequenas vitórias e derrotas diziam respeito a todos e cada um de nós?
Não consigo ver esta foto sem sorrir. Muito e muito cá por dentro. Quando cheguei à cozinha e vi como dançavam, a alegria com que o faziam, sem pruridos de qualquer espécie mas dando largas à alegria, como o fizeram de uma forma absolutamente espontânea, como estavam todos, juntos, uns nos outros, apercebi-me que aquela parte da missão - uma das que mais temia - tinha sido um sucesso completo. Apesar de serem pessoas muito diferentes, apesar de estarmos já, naquela altura, perto do fim da missão, apesar dos avisos que nos fizeram que iriam haver alturas em que estaríamos cansados uns dos outros, ali estavam eles, a dar largas à alegria que sentiam por estarem juntos.
Como se fala aos outros desta alegria?
Como se fala aos outros da alegria que eu próprio senti, naquela altura, por ver como os meus meninos estavam bem?
Não se fala.
Tão pouco se guarda.
Não se faz nada.
Com o tempo aprendemos que há coisas assim.
Que são para serem nossas.
Por pura incapacidade de as fazermos sentir aos outros.
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