20151231
serenidade, alegria, verdade e liberdade
Também eu não costumo escapar aos balanços de fim de ano. Nem o desejo, em boa verdade. Se nos tempos normais gosto de me sentar e dividir o tempo, e analisar o que eu e o tempo nos temos provocado mutuamente, no final de cada ano - e quem está no ensino tem mais que uma sensação de final de ano... e oportunidade de recomeçar - essa tarefa é absolutamente dominante. Passo-me em revista, revisito caminhadas e conversas e partilhas e dores e alegrias, voltando a sentir muitas delas, alternando sorrisos e suspiros, peso gestos e atitudes, volto a penitenciar-me por alguns, a orgulhar-me por outros, e chego à invariável conclusão que estou mais velho... e que isso não se nota nada. Continuo a sonhar, por vezes contra todas as probabilidades, continuo com a mesma dificuldade em me situar dentro dos parâmetros exigidos para quem tem a minha idade, continuo a não reconhecer quem está do outro lado do espelho, apesar das dores nas articulações, das insónias cada vez mais frequentes, do cansaço generalizado cada vez mais instalado.
Este ano teve a particularidade de me abalar as estruturas, de me questionar ainda mais que o normal, de ter que tomar decisões de fundo, de me desconstruir e de continuar a tentar - quase com cinquenta anos! - perceber quem sou e para onde quero ir. Como todos os que lidam comigo, acreditava que por esta altura já ia sendo tempo de ter mais juízo, de calçar mais vezes as pantufas, de me ir instalando cada vez mais confortavelmente, não no sofá - que isso eu faço na perfeição! - mas na pessoa que vou sendo. Não sei se é por ter muitos filhos, não sei se é por trabalhar muito com malta nova, não sei se é por ter uma alma que anda sempre à procura não sei bem de quê, mas o facto é que estou longe de conquistar aquela serenidade interior que sempre associei à sabedoria profunda. Em boa verdade, não sei se alguma vez chegarei lá, ou se a sabedoria profunda apenas estará ao alcance de quem percebe que chegou a algum lugar. Enquanto eu tiver esta permanente sensação que estou algures a meio caminho do que quer que seja, não creio que me vá permitir muito mais do que tem sido. Que não tem sido pouco, convenhamos.
Creio que nesta altura do campeonato posso afirmar que vivo sob a égide do amor. Apesar do elevado nível do pirosismo desta afirmação, não consigo encontrar outra que defina minimamente este estado permanente de Louvor e Graças a Deus, e à vida, e a todos os que me acompanham nesta jornada. Vou percebendo de forma cada vez mais nítida como faço parte de um todo muito maior que eu, nas múltiplas atividades que me preenchem a vida, nos múltiplos encontros que vou tendo, nas múltiplas partilhas que vou vivendo e que fazem com que eu seja uma espécie de parque de campismo e dentro de mim se armem tendas e acampem, e permaneçam. Indefinidamente. Indelevelmente.
Normalmente, nestas alturas, faço balanços, não projeções. Talvez porque me é muito mais fácil avaliar o que se passou, onde falhei e onde fui bem sucedido, que encetar compromissos que, por muito gerais que sejam, sei que me sairão furados. Há, no entanto, um compromisso que terei que assumir: o de não prometer - ainda que tacitamente - o que poderei não conseguir cumprir. Creio ter sido esta a grande lição deste ano.
"It takes two to tango", e "It ain't over till the fat lady sings" talvez sejam os grandes ensinamentos que fazem a ponte entre 2015 e 2016. A ver vamos.
PS: 2015 foi o ano em que escrevi mais... e em que fui mais vezes lido (cerca de 30 000 visualizações). A parte da escrita é normal: preciso de escrever quando me enervo, estou confuso, tenho medo, confio, partilho e aprendo, cresço e aprendo, faço asneira e me penitencio, quando tento o que quer que seja, estou maravilhado e grato, e rio e choro, tenho orgulho em quem quer que seja, e louvo e dou Graças, quando estou apaixonado, quando amo, quando (me sinto) vivo... 2015 foi pródigo em tudo isto; A parte dos leitores é assustadora. Mesmo! Lamento, Miguel Sousa Tavares, mas sou dos imbecis que escrevem para si próprios. E por isso esforço-me por, e vou conseguindo desligar-me de quem me lê, não pensando nas suas reações ou sentimentos que daí possam despoletar. Ainda que isso me possa trazer alguns dissabores.
20151226
À medida que vou envelhecendo, parece que um certo Natal vai envelhecendo em mim. Lembro-me com alguma nostalgia de uma véspera de Natal em que era quase hora da ceia e eu ainda estava na baixa do Porto, mergulhado num trânsito caótico, feliz da vida enquanto todos à minha volta estavam com ar desesperado. Na altura, Natal era também muito isso para mim: confusão, compras, movimento, música no ar e luzes a piscar. E depois, já em casa, era aproveitar a magia a que apenas os filhos emprestam ao Natal, com a sua felicidade extrema, com os seus gritos de alegria, com a sua inocência que, uma vez partida, já não regressa da mesma maneira. A nossa felicidade era a antecipação da sua felicidade, a nossa alegria era o gozo prematuro da sua alegria, a nossa maior prenda de Natal eram as suas prendas de Natal.
A determinada altura a vida impôs um outro tipo de condições. Os presentes já não eram bem os desejados mas os possíveis, e com isso o Natal começou a ser por mim vivido com um certo amargo de boca e com algum sentimento de culpa. Por muito que apele à racionalidade, há facetas em mim que nunca se hão de deixar de se sobrepor ao raciocínio lógico, e, por muito que me dissessem ou tentassem fazer-me sentir que não tinha importância nenhuma, a mágoa não deixa de existir apenas porque sim. E o Natal, a partir daí, ganhou uma outra cor, que acabou por se juntar ao crescimento dos filhos e à perda daquela magia que antes tinha.
Recordo com muita saudade um Natal de há dois ou três anos atrás em que fui convidado para cantar numa das estações do Metro do Porto. Acompanhado de uma data de miúdos do Primeiro Ciclo do Colégio, fomos para a estação da Casa da Música e cantamos durante duas ou três horas para as pessoas que passavam a caminho das suas vidas. Eu, que, como sempre acontece, acedi a custo a participar naquela iniciativa, descobri nela uma outra maneira de saborear o Natal, estampada nos olhares quer dos miúdos que cantavam comigo, quer nos dos transeuntes que paravam, sorrindo, para nos escutar.
O Natal, sem esta componente de entrega mútua e de celebração litúrgica, faz hoje muito pouco sentido para mim. Talvez esteja a ficar velho. Ou a precisar de netos ;-)
PS: nunca escrevi tanto, nunca tive tantos leitores (30000 visualizações) como ao longo deste ano. A escrita é normal: preciso de escrever, principalmente quando estou confuso, em dificuldades, agradecido, preocupado, calmo, nervoso, com problemas, durmo mal, como bem, converso, me arrependo, faço asneiras, partilho, estou apaixonado, amo... 2015 foi um ano repleto disso tudo e de muito mais; os leitores assustam-me. Sempre. Mas vou ficando cada vez melhor em esquecê-los quando escrevo. Ainda que isso me possa trazer problemas.
20151221
Nunca mo tinham perguntado assim, de forma tão clara e direta, tão olhos nos olhos, tão alma na alma, suspendendo as palavras até que ecoasse a minha resposta: "gostas do que vês quando te olhas ao espelho?". A pergunta, como qualquer boa pergunta, não era bem uma pergunta mas uma necessidade de constatação. Antecipávamos ambos, pelo que nos conhecemos, a resposta, e seria uma enorme surpresa se tivesse sido outra. Foi justamente porque sabíamos a resposta que a pergunta tinha sido feita. E foi devidamente dada.
Nunca me considerei definitivo. Em nada. Em ninguém. Em nada porque desde muito novo que me habituei a reconstruir a minha paisagem quotidiana. De cada vez que mudava de casa - e foram muitas - mudavam também os cheiros e os toques e os sons e as vistas e agarrava-me ao que permanecia, apesar de tudo, eu e (fugazmente) os meus. Em ninguém porque com as casas vinham os vizinhos e os amigos e os colegas da escola e os professores e os amigos, e tudo isto era definitivo... até à próxima vez.
Sempre me considerei provisório. Em tudo. Em todos. Em tudo porque fui obrigado a desenvolver aptidões que rapidamente se ajustassem ao que me envolvia. Era preciso cantar? Canta-se. Era preciso tocar? Toca-se. Era preciso fazer rir? Palhaça-se. Rapidamente e em força, que amanhã é um outro dia e - nunca se sabe! - um outro lugar. Em todos porque todos sempre foram mais. Mais estáveis, mais inteligentes, mais consistentes, permanentes. E ser provisório é viver intensamente. Tudo. Sempre. Que amanhã é outro dia. Um outro lugar. Um outro alguém. E não há sequer tempo para causar uma segunda impressão.
Até que fui pai. E descobri como posso ter o imenso dentro de mim. E aprendi como posso ser o imenso para alguém.
20151220
Para muitas pessoas que me conhecem, tenho um terrível defeito: sou um péssimo pagador de promessas. E, mesmo para mim, é um bocadinho difícil entender porquê. Nesta altura, convém referir que não prometo apenas quando estou atrapalhado. Nem prometo apenas em voz alta. Nem prometo apenas aos outros. Ou até especialmente aos outros. Antes de mais, para que a promessa tenha alguma hipótese de concretização, começo por me prometer a mim mesmo. Algo assim do tipo "não voltarei a ligar" ou então "não imporei mais a minha presença" e por vezes até "vou fazer de conta que não existe". Tudo coisas bastante simples de prometer, que quase sempre dependem única e exclusivamente de mim, e que quase sempre beneficia outros para além de mim próprio. E, fundamentalmente, tudo promessas que quando prometidas fazem todo o sentido na minha cabeça. Repare-se que não prometo nada que à partida não posso cumprir, nem mundos e fundos, nem coisas que escapam ao meu alcance. Nada disso! Coisas simples e pequenas que devagar se vai ao longe.
Pois.
O pior é que nem devagar nem longe.
Acontece que o requisito fundamental não reside no facto de ter prometido mas de fazer ou não sentido. E há coisas que fazem todo o sentido numa determinada altura e não fazem sentido nenhum noutra. E estas eu tenho muita dificuldade em cumprir. Sim, eu sei. Já mo disseram muitas vezes. Já me chamaram a atenção imensas vezes. Até já me insultaram dizendo que assim não sabem com o que podem contar. Pois... Paciência! Se alguma coisa deixa de fazer sentido porque raio hei de eu ficar atado a algo que me faz sentir um palerma? Sempre que possível tento averiguar se essa falta de sentido por mim detetada não será antes uma maneira cómoda de evitar cumprir o que ficou prometido. E por vezes é. E nesses casos, apesar de não fazer sentido na minha cabeça, não tenho outro remédio senão impor-me o cumprimento do prometido. Mas nos restantes...
Esta minha forma de pensar e agir sempre causou um profundo desgosto no meu sogro. Ele sempre pensou que eu não era recomendável, muito por causa disto. Ele era justamente o oposto: uma vez a palavra dada, ia até ao fim. Custasse o que custasse. Prejudicasse ou não. Fizesse sentido ou não. Palavra era palavra. Ponto final. Tempos houve em que tentei com muita força ser como ele. Lamentei muito tempo por não o conseguir. E depois deixei de o querer. Talvez porque tenha encontrado uma outra forma de fazer sentido. A minha forma de fazer sentido. Que é muito menos prometer e muito mais lidar com o que a vida vai colocando nas minhas mãos. Que é muito menos planear e muito mais usufruir. Que, ao fim e ao cabo, é mito menos razão e muito mais coração. E confiança, já agora.
20151217
"É preciso construir boas memórias!" Recordei-o hoje à medida que caminhava quase no deserto, envolvido num amanhecer agreste, na margem de um mar ainda mais agreste, tendo apenas as memórias como companhia. Recordei-o a propósito da esplanada, hoje ainda mais despida, hoje sem nos ter como protagonistas principais, hoje sem as personagens secundárias que desfilavam à nossa frente sem verem ou serem vistas, hoje sem história, ou filme, ou enredo, tendo apenas as memórias por companhia. Recordei-o quando o mar me abordou, hoje mais que o costume, muito mais que o costume (estava revolto como nunca o tinha visto) e não tive quem me quisesse agarrar por causa de histórias de vertigens alheias, e tive apenas as memórias por companhia. Recordei-o ainda quando, totalmente imerso na paisagem que me rodeava e me invadia a alma, pensava numa partilha de Taizé e numa forma de descobrir Deus na natureza e aí O confirmar e aí ter a certeza da Sua presença e eu a pensar, na altura, como para mim Deus é pessoas e como estava tão longe dessa natureza encantada e como, hoje, essas memórias que tinha por companhia me ajudaram a entender melhor aquela partilha.
E recordei a nossa conversa de como as memórias nos pertencem para sempre e para sempre nos fazem companhia, de como é importante que deixemos que nos façam companhia, sejam elas boas ou más, porque as boas acalentam-nos a alma e com as más aprendemos a evitar o que me nada nos acrescenta. E pensei que, por muito tempo que viva, aquele percurso à beira mar que escolho fazer imensas vezes nunca mais será um mero percurso como tantos outros, porque tem recantos recheados de palavras e de olhares e de toques e de companhias e de solidões e por tudo isso e muito mais, de vida, de imensa vida. E concluí que, provavelmente, no futuro ou por aí perto, regressarei sempre àquele percurso à beira mar, quanto mais não seja para resgatar a minha alma por entre as memórias que aí foram sendo construídas.
20151216
"Se algum dia ouvir aquilo que o L ouviu, ninguém me volta a por a vista em cima." Disse-o a três pessoas. Apenas. As que interessava. Por motivos distintos. Completamente distintos. Porque são pessoas diferentes. Completamente diferentes. Porque, juntas, abarcam toda a vida. Todas as dimensões da vida. E assim já sabem o que não procurar. Onde não procurar.
"O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio." Li agora mesmo. Do António Lobo Antunes, na Visão. É isto, é justamente isto, o que não quero. Ele consegue ver uma coragem que eu não consigo, que eu não quero, que eu me nego ver. Prefiro outra. Prefiro gastar a minha vida ou, nessa altura, o que restar dela, numa qualquer terra de África ou da Ásia ou da Europa, ou de qualquer parte do mundo a torná-la verdadeiramente significativa para alguém. Assim, mato dois coelhos de uma cajadada: deixo-me gastar de forma digna (porventura resgatando-me a mim próprio) e evito os olhares piedosos dos que amo.
Disse que não sei o que é estar sozinho. É verdade. É, pelo menos, uma meia verdade. Não sei o que é viver sozinho, sem sonhos partilhados, sem futuros projetados, sem perspetivas a dois... ou a sete. Pelo menos! Não sei o que é decidir sem ponderar outros - ainda que pondere contra o que porventura desejariam - sem ter em linha de conta as suas próprias expectativas em relação a mim. Não sei o que é isso por que já o remeti para outras núpcias. Mas há sempre algo que sou que, por mais que o tempo passe, por mais que a vida molde, permanece. Sempre! Uma solidão intrínseca, profundíssima, quase sempre adormecida, que espreita nas menores oportunidades e é prontamente rechaçada pelos que me rodeiam. Mas que, acredito, se instalará de armas e bagagens em alguma altura da minha vida. Que venha longe!
20151215
Falamos hoje a primeira vez. Ao telefone! Desde 26 de Outubro que não escutava nada vindo dele. Desde esse dia que apenas o vi dormir, quando o fui visitar, mas ele estava tão cansado que nem conseguia abrir os olhos e nem deu conta que eu estava lá. Hoje disse-me que lho tinham dito. Ainda bem! Prometi-lhe que esta semana visita-lo-ia, com tempo para sentar, olhá-lo, ser olhado, e conversarmos o que temos a conversar. Com Tempo! Que eu pensei nunca mais voltar a ter junto dele.
Sou um homem de fé. Acredito em milagres. Não particularmente em luzinhas vindas do céu, particularmente dirigidas a alguém, mas acredito em milagres. Acredito que há pessoas boas e profissionais bons e sensíveis e inteligentes que estão atentos aos que deles necessitam e fazem tudo o que podem e sabem, não querendo saber nessas alturas das suas próprias circunstâncias. E acredito que Deus atua neles e por eles, por vezes até ao arrepio das suas próprias conveniências.
E acredito que o Jorge é um milagre. Não que tenha tido um olhar mais atento de Deus sobre si que sobre alguém que atravessava o mediterrâneo, mas porque tinha outros à sua volta que, em determinada altura, escolheram a sua profissão acreditando que poderiam salvar vidas e empenharam-se em salvar a vida do Jorge. E tinham condições físicas e materiais para o fazerem.
Importante mesmo, no entanto, não é se eu acredito ou não em milagres. Importante mesmo é que o Jorge, lentamente, ao seu ritmo, vai ficando melhor. E eu louvo a Deus por isso.
20151211
Acho sempre espantosa a volatilidade do meu olhar. Acredito algumas vezes que o que vejo é o que vejo e que as coisas são como as vejo. Que o azul é azul e o vermelho vermelho, que o belo que vejo apenas pode ser belo e toda a vida foi belo, que nada nem ninguém pode adulterar algo para mim tão evidente - naquele momento - como aquilo que vejo. E então ajo em conformidade, alicerçado na perceção evidente do meu mundo, que me é trazido pela clarividência do meu olhar.
Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida.
Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs geladas, cheias de sol, frias e feias. Quase todas as manhãs, gelado, cheio de sombras, frio e feio. A paisagem que ontem me serenava hoje inquieta-me, o silêncio que ontem me sussurrava hoje grita-me, as emoções que ontem me garantiam a certeza do caminho hoje atabalhoam-se.
As pouco habituais manhãs de sol quando esperamos chuva sabem bem mas deixam-me preocupado. Não acredito que a vida possa ser sempre sol nem que possamos escolher o tempo que faz. Ás vezes há sol, outras a chuva, e eu gosto de ambos, que alternadamente apelam à vida lá fora e ao recolhimento, num equilíbrio que me é tão desejado quanto precioso!
Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida.
Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs geladas, cheias de sol, frias e feias. Quase todas as manhãs, gelado, cheio de sombras, frio e feio. A paisagem que ontem me serenava hoje inquieta-me, o silêncio que ontem me sussurrava hoje grita-me, as emoções que ontem me garantiam a certeza do caminho hoje atabalhoam-se.
As pouco habituais manhãs de sol quando esperamos chuva sabem bem mas deixam-me preocupado. Não acredito que a vida possa ser sempre sol nem que possamos escolher o tempo que faz. Ás vezes há sol, outras a chuva, e eu gosto de ambos, que alternadamente apelam à vida lá fora e ao recolhimento, num equilíbrio que me é tão desejado quanto precioso!
20151208
Acredito que há amor que me ultrapassa. Acredito que todo o amor me ultrapassa. Ou então não é amor. Pode ser arrebatamento, ou paixão, ou obsessão desenfreada que nos tolhe os movimentos e o pensamento por alguns, breves, momentos - o que é um momento no espaço de uma vida? - e depois passa, eclipsa-se, acaba, como acaba o sol no final de cada dia, por muito quente que esse dia tenha sido. Mas não volta. Não permanece. Não fica, apesar de tudo, apesar de toda a racionalidade, apesar de todo o bom senso, ou mau senso, ou qualquer senso. O amor ultrapassa. Todo o senso. Mesmo o contrassenso. Aliás, estou convencido que todo o amor é contrassenso. Não faz sentido. Faz sentir, o que é absolutamente diferente. Para melhor! No amor não pesamos os prós e contras, como numa tabela de cálculo. Porque não há cálculo. Ou então, é um amor calculista. E já não é amor. Não sendo cálculo, terá que ser, assumidamente, risco. Não de engenheiro - não é cálculo - ou de arquiteto - nem sempre é bonito de se ver - mas de criança, mais sarrabisco que risco, muitas vezes tosco, muitas vezes às voltinhas, incontrolável, conduzido por causas superiores, que nem se sabe bem quem são e muito menos ao que vêm. Eu gosto da forma de amar das crianças. De cabeça. Sem comos ou porquês, descomplicadores ligados, vivendo o amor a toda a brida.
Não sou criança, eu sei. Mas, ainda assim, acredito que o amor me ultrapassa. Só assim o sei viver. Só assim o merecerei viver. Só assim continuarei na firme mas deliciosa ilusão que, apesar de tudo, jamais caminharei só.
20151207
"Está uma manhã fria e feia", escrevi. "Como eu", pensei sem o escrever. Estava, de facto. estávamos, ambos, eu e a manhã, frios e feios, sem qualquer réstia de sol que aquecesse. E o fim de semana até foi bom, tive o Juramento de Hipócrates da minha filha - que estava felicíssima! - deu para descansar e recuperar forças, deu para escrever algumas coisas, preparar outras, mas...
Há uma cena no "vamos dançar" em que o protagonista confessa a sua vergonha por sentir que lhe falta algo, apesar de ter tudo o que sempre sonhou. Como eu o percebo! Tenho dias em que o sol não me aquenta, em que me deixo ir abaixo, em que a acutilância desta sensação de perda me incomoda verdadeiramente. A ponto de moldar o meu dia. São dias em que me sinto uma sombra, em que pareço uma sombra, em que procuro a sombra, em que quero caminhar na sombra do corredor, e onde cada "biba" ou "bom dia" me soa a descabido. Em que o que mais me apetece - e já o fiz hoje - é pegar na guitarra, sentar-me ao fundo da capela, e deixar-me perder nela, nas suas cordas, nas memórias que elas me trazem, no recuo que elas me fazem sentir.
Hoje, daqui a pouco, tenho 24 Minutos ComTigo. Que vem mesmo a calhar com os eu recolhimento, os seus cânticos calmos e acolhedores, com o olhar a pousar nos miúdos à minha volta e a dar Graças por isso, com os amigos à minha volta e a dar Graças por isso. Depois irei ver o Jorge - que se lixe tudo o resto! Já vai sendo tempo de o ver, de o encarar, ainda que isso exija de mim a realidade de o encontrar estendido numa cama de hospital.
E que se lixe tudo o resto!
20151205
"Eu quero viver, sabes? Finalmente viver. Ir a um teatro, a um cinema, a uma exposição de arte, passear a sábado de manhã, escolher não passear ao sábado de manhã e ficar em casa, simplesmente ficando em casa. sem nada para fazer, saboreando o sem nada para fazer. Quero apanhar um comboio ou um avião no final de sexta e ir para um outro lugar e conhecer e viajar, quero estar de volta no domingo, a tempo de descansar e me preparar para a semana que se segue. Quero deixar de ter compromissos de fim de semana e de ter que estar sempre ocupado para os outros e pelos outros. Quero a minha carta de alforria, o meu grito do ipiranga. Adio-me há mais de trinta anos,tenho dez ou quinze para viver com qualidade, para sentir a vida a acelerar o pulsar do sangue e não os quero desperdiçar."
Escutei o que dissera, passei-o em revista, e suspirei fundo, concordando novamente. Em nada do que dissera escutara qualquer novidade. Mas vai ser uma surpresa do caraças. Para toda a gente. Particularmente para quem é mais próximo e ainda assim nunca sentou, nunca conversou, nunca se preocupou em escutar atentamente, cuidadosamente, os variadíssimos sinais que, afinal, apenas careciam de sentido para serem visíveis para toda a gente. Particularmente para aqueles que são mais próximos mas que a proximidade dilui a importância, o valor, o peso das palavras, desvalorizando-as, misturando-as com o passageiro do quotidiano, e que nem sequer se aperceberam que a determinada altura as palavras foram sendo menos frequentes, silenciadas, sem que ninguém lhes tenha sentido a falta. Mas também para aqueles - tantos! - que apontam e comentam e encontram o que querem encontrar, e vêem o que querem ver, e ouvem o que querem ouvir, ignorando os "olhe que não" ou "isso não é assim" em nome de uma qualquer pretensão de humildade que não existe, nunca existiu, mas antes insegurança, e consciência dessa insegurança.
Recordei o que dissera, voltei a passá-lo em revista, e suspirei fundo. Mais uma vez. Apercebi-me da tremenda batalha interior, percebi as noites mal dormidas, o sorriso sonhador que rapidamente intercalava com o olhar baço quem se sente perdido e dá lugar ao rosto fechado e determinado de quem sabe que vem aí borrasca. E se prepara para ela.
20151202
A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando acinzentado, mais nublado, mais turvado, e eu com ele.
Eu gosto de olhar. A fundo. Consigo esquecer os nomes e os lugares onde os nomes se tornaram nomes e as pessoas se tornaram pessoas, mas dificilmente esqueço um olhar. Disseram-me, em Quelimane, numa outra vida - já tive tantas vidas! - que por vezes o meu olhar é demasiado. Intenso, provocador, invasivo, contundente, incómodo, revelador... é vir o diabo e escolher. Não tinha essa ideia. Para mim, olhar sempre fora olhar. Apenas isso. Só depois me apercebi que para mim, olhar é muito mais que apenas olhar. Que serve para ver. Que serve para conhecer. Que serve para valorizar. Ou não. Não estou, no entanto, habituado a ser olhado. Perscrutado. Analisado. Revelado. Amado, até. Pelo olhar de alguém que não o meu. Incrivelmente, há novidades que ainda me são inteiramente novas.
A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando mais nublado, mais turvado, e eu com ele. Até que alguém me olhe. Atentamente. Amorosamente. E o dia ganha mais cor. E a vida recupera a tonalidade perdida. E eu com ela.
20151201
Aperto o casaco de Taizé até cima e ainda assim o vento gelado entra-me pelo pescoço dentro. Meto as mãos nos bolsos, na vã tentativa de manter as mãos quentes - logo as mãos, que neste tempo estão sempre geladas! - e acelero o passo. Hoje não vi ainda ninguém. Não admira. Lá para abril ou maio é que isto começa a ficar pejado de gente a correr, a passear, a estenderem-se como bacalhaus a secar. Por agora o frio ou a expectativa de chuva afasta a maioria das pessoas. Ainda bem! Lá para abril ou maio, à medida que os outros vão chegando, eu vou saindo. Não que tenha a mania, mas porque é sossego, o que procuro, e sossego é pouco compatível com algum tipo de pessoas. Viro a esquina para subir as escadas e deparo-me como senhor de calções. Já vi alguém. Arrepio-me ao pensar como pode alguém andar de calções com aquele vento gelado e sigo caminho. Ao fundo vejo, finalmente, o senhor idoso com o cão idoso e, como sempre quando me cruzo com eles, não consigo concluir qual deles tem mais artroses. Mancam ambos, sempre juntos, sempre ao lado um do outro. Calculo que se passearão mutuamente há alguns anos e pergunto-me o que acontecerá a cada um deles quando o outro já não puder caminhar. Mais adiante, a miúda do cão rafeiro passa por mim, música nos ouvidos, como sempre, vara na mão, como sempre - para que será? - rafeiro atrelado, como sempre. Atrás dela, a senhora do cão de água, já um velho conhecido tantas foram as vezes que me cheirou as pernas. Tantas como aquelas em que a senhora me pediu desculpa, provavelmente. Afinal passaram quase todos. Como todos os dias. apesar do tempo, apesar do frio, apesar da chuvinha, algumas vezes, passamos uns pelos outros quase todos os dias.
Nunca encontrei grande problema em fazer o que quase ninguém faz. Ou em dizer o que quase ninguém diz. Ou em ver o que quase ninguém ver. Talvez porque fale como quase ninguém fala e isso relativiza muito do que se possa dizer ou penar sobre mim. Quando encontro prazer em alguma coisa que não interfira com ninguém não me coíbo nada de a fazer. Esta atitude, que nem sequer é pensada mas instintiva, deu-me já experiências absolutamente fantásticas, difíceis de partilhar porque, na maior parte das vezes, as vivi sozinho. Não é fácil arranjar companhia para estar na praia debaixo de um chuva torrencial tendo a trovoada como pano de fundo, ou a tomar um banho no mar de Nazaré às 4 horas de uma madrugada de novembro ou deixar um jogo de futebol a meio no meio do bairro porque está na hora do ensaio... ou da catequese. Tive também que lamber muitas feridas, também vividos a um, seguindo intuições completamente erradas, indiferente às vozes ajuizadas que me berravam aos ouvidos para não ir por ali.
Creio que será o preço a pagar para ter memórias que valem a pena!
20151130
Ontem era dia de estudarmos juntos. Filosofia. O que, para a cabeça do meu-mais-novo é uma tremenda complicação. Ainda ontem me dizia que o sonho dele é trabalhar com motores. Montá-los e desmontá-los, perceber a fundo como funcionam e o que faz mover o quê. E que sonho mesmo era montar ele um carro de raiz, o carro dele, de princípio a fim. E fazê-lo com os filhos. Disse-o numa conversa como quem-não-quer-a-coisa, nem sequer se apercebendo que foi a primeira vez que me falou a sério dos seus sonhos de futuro que não envolvessem qualquer disparate adolescente. Mas ontem era dia de filosofia. De nós cegos, portanto, numa cabeça que encontra muita maior tranquilidade nas físicas e matemáticas e que fica à rasca quando tem que argumentar e consolidar posições. Ontem era sobre determinismos e liberalismos e livre arbítrios. E foi muito interessante. Falamos das nossas opções, das nossas responsabilidades pelas nossas opções, das nossas cada vez menores desculpas e justificações à medida que a vida vai decorrendo.
A determinada altura falei-lhe de uma conversa que tive há uns anos com um padre amigo. Acerca dos amores de padre, do celibato, do pretenso encerramento do coração a que os padres estão obrigados. ele dizia-me que em nada o seu celibato era diferente do meu. Que, tal como com qualquer pessoa, não conseguia impedir o seu coração de se apaixonar, não conseguia impedir a sua alma de intuir uma ligação profunda a alguém, que não conseguia deixar de se colocar a velha questão "e se..." e de se sentir encostado à parede com esses abalos sérios, de se sentir obrigado a tomar decisões, de ter a consciência que há decisões que não são definitivas porque vão sendo pensadas e reflectidas e geridas consoante as circunstâncias. E dizia-me ainda que até aquele momento a sua decisão tinha tido sempre o mesmo sentido, o da continuidade do compromisso, em nome do amor profundo que sentia por Jesus Cristo, que o enchia por completo, a ponto de não desejar ser outra coisa que não padre. Mas que, no seu íntimo, não excluía definitivamente que, a determinada altura, a sua decisão fosse outra.
Ontem, enquanto estudávamos, chegamos à conclusão que não controlamos o que sentimos no mais profundo de nós mesmos. Mas controlamos o que fazemos com o que sentimos. Controlamos as nossas decisões, as nossas escolhas, os nosso actos. "Seria bem mais fácil se tudo estivesse determinado à partida. Pelo menos a responsabilidade não seria nossa." Pois é, filho. Mas a autonomia é fundamental. E com ela vem a responsabilidade, e com ela vem a dificuldade de escolher, e com ela vem a certeza que nem sempre somos o que queremos, nem sempre somos o que os outros querem que sejamos, nem sempre somos o que deveríamos ser. Mas o importante é que saibas que, nessa tua procura, nesses teus encontros e desencontros, tens sempre com quem procurar e tens sempre para onde voltar para que possas parar e voltar a procurar. Nem que seja a propósito de uma aula de filosofia.
20151126
Sentamo-nos brevemente.A conversar. Para conversar. Tínhamos estado, momentos antes, à vez, com uma amiga comum, que conhecemos em circunstâncias muito diferentes, mas que nos atou a ambos com o mesmo laço. A determinada altura ela percebeu que quando falávamos, em momentos e lugares diferentes, de modelos, era um do outro que falávamos. E disse-nos. A ambos. Em momentos diferentes. Falou-nos da surpresa que tinha sido para ela referirmo-nos um ao outro em termos muito semelhantes. De amizade, de admiração, de modelagem alicerçada por um percurso de vida que, apesar de distante no espaço e no tempo, tem muitos pontos similares.
Foi mais um pretexto para nos sentarmos e conversarmos e partilharmos e voltarmos a aprender um com o outro. Poderia ser meu filho mas nem é como filho que o vejo, nem é como pai que me vê. Somos amigos, vamos sendo, cada vez mais, companheiros de caminho, com toda a cumplicidade que quem caminha sabe que se cria, e como frutifica.
Há uns tempos, numa formação para voluntários, foi-me pedido que referisse um caso de sucesso e um outro de frustração. No sucesso lá estava ele, o Fredo, que não me canso nunca de referenciar como exemplo de perseverança para quem anda nestas coisas. Se mais não fosse, ele já teria valido tudo a pena. De frustração, um outro, igualmente amigo, de outras caminhadas, que a determinada altura escolheu outros percursos que o conduziram inevitavelmente à morte: o Gusto. Um percurso que poderia ter sido outro, que tinha tudo para ser outro, que inclusivamente foi outro para os seus irmãos, mas que ele escolheu, e assumiu, de corpo inteiro, pelo menos até àquela noite em que nos encontramos, eu na carrinha amarela, ele na fila para a carrinha amarela, na estação de São Bento.
Na verdade, não há casos de sucesso ou de insucesso. Na verdade, não há casos. Há pessoas. Na verdade não metemos ninguém numa máquina de fazer felizes, não metemos pitadas aqui nem adicionamos condimentos acolá aperfeiçoando receitas infalíveis. Na verdade nunca deixo de ter o coração nas mãos, os olhos no céu e os pés na terra. São muitos os miúdos que me passaram pelas mãos que passaram depois pelas cadeias ou andaram a monte, a viver de esquemas que eu prefiro nem conhecer para que os possa acolher abertamente quando quiserem voltar a ser acolhidos. Na verdade é de pessoas que se trata, cheias de vida, cheias de passado, cheias de vícios, cheias de facilidades prometidas e de sonhos que rapidamente se transformam em desencantos e frustrações e motivos mais que maiores para viverem rapidamente. Na verdade, se podemos fazer alguma coisa - e é quase sempre a única coisa que podemos verdadeiramente fazer - é fazer-lhes sentir que, qualquer que tenha sido o seu percurso até aqui, o que importa é a partir daqui. Da sua resposta dependerá, muitas vezes, efetivamente, a sua vida. Perguntem ao Fredo. Ou ao Gusto. E escolham quem lhes pode responder.
20151125
Interrogo-me o que me faz carregar esta procura. Permanentemente! Uma vezes como se fosse um fardo, um fado, um destino, jamais satisfeito na sua plenitude, jamais saciado. Outras desafiador, motor, impulso, que me leva a tentar ir sempre mais longe, para além daqueles que acredito serem os meus limites, e que, quando corre, bem, me catapulta para um outro patamar. Uma procura que me é, antes de mais, interior, profundamente interior, que está cá antes de qualquer pensamento, antes de qualquer processamento lógico, antes de qualquer racionalização mas que me é tão ou mais natural que eu próprio, que provavelmente já seria antes de mim, porque desde que me conheço não me conheço noutra condição que não esta.
Questiono-me o que me faz sentir esta sintonia. Esta profunda sintonia. Esta sensação que tudo está, finalmente, no seu lugar, que todo o universo conspira para que eu encontre, finalmente, o meu lugar, para que eu, finalmente, sinta que pertenço, que estou por direito próprio, que sou por direito próprio, e não por concessão de alguém que acedeu a que eu pudesse estar, pudesse ser, por comiseração. Talvez seja o silêncio, talvez o mar, ou o olhar, a oração, talvez seja tudo isso, ou nada disso, talvez não me seja exterior mas venha do âmago, das entranhas, no lugar da alma, onde também habita Deus. Talvez por isso me serene o mar, e o silêncio da oração, e o encontro com o teu olhar... que me silencia a inquietude e me sacia a alma.
20151124
Já não sei caminhar sozinho. Já não consigo caminhar sozinho. Fazem-me companhia os que me habitam, que vão conversando comigo, que vão discutindo comportamentos e atitudes, que vão corrigindo palavras menos cuidadas, posturas menos sensatas, com as quais vou argumentando sucessivamente, escutando atentamente os seus argumentos, pesando-os, valorizando-os, até que eu possa fazer as minhas próprias conclusões. E decisões. E não me habitam apenas pessoas. Também tenho filmes cá por dentro e músicas e fotos e extratos de livros que ando a ler ou que já li e que volta e meia vou buscar para poder comparar, para poder escolher, para poder decidir sobre este ou aquele assunto, importante ou secundário, relevante ou supérfluo, que isso não importa para nada.
Nada do que faço ou digo ou leio ou vejo é em vão. Nada. Absolutamente nada! Nenhuma atitude, nenhuma conversa, nenhum alheamento, voluntário ou não, nenhum silêncio, nenhuma palavra, nada, absolutamente nada, deixa de te, em determinada altura, relevância para mim. Nem que seja por comparação. Pode não ser agora, pode não ser sequer daqui a um ano, posso recordar-me onde li, onde vi, onde ouvi, ou posso ignorar ou esquecer, mas o que é facto é que nada, absolutamente nada do que me acontece é irrelevante. E do que eu faço acontecer.
Em todos os dias de reflexão tenho diante de mim miúdos que não estão nem aí. Não querem saber das coisas de Deus, nem da fé, muito menos da Igreja, não querem saber de histórias da Bíblia nem da sua importância nas nossas vidas, não conseguem ver nas nossas discussões nada de útil ou minimamente importante para as suas vidas. Quando, como sempre acontece, entramos na capela, fecham-se no seu silêncio - que enganosamente temos o cuidado de interpretar como de respeito para que a sua indiferença não nos incomode - e desejam arduamente que aquele tempo acabe para que possam voltar para as suas brincadeiras, para as suas palermices, para a programação da noite dessa sexta feira, que isso é o que verdadeiramente importa. Houve um tempo em que isso me incomodou. Houve um tempo em que eu exigia atenção, e participação, e abertura, e estabelecia um "diálogo", arrancado a ferros, que, de certa forma, me justificasse. E o problema era esse. Justamente esse. Eu procurava era a justificação de mim, do meu papel, da minha importância naquele dia de reflexão.
Aprendi a semear. Apenas isso. Tento semear. Vou mondando a terra, ao longo do dia, uma erva aqui, uma pedra acolá, vou escutando, atentamente, o que um e outro dizem, a forma como dizem, a forma como conversam e brincam e jogam bola ou às cartas, vou brincando eu também, com eles, mondando a terra, lentamente. E lançando a semente. Não me preocupo já com vê-la crescer. Acredito que outros o hão de fazer, noutras circunstâncias, noutras vidas, quando as verdadeiras questões chegarem e eles se recordarem, não de mim, não daquele dia de reflexão, mas que algures, num qualquer dia, alguém que nem se recordam lhes falou numa samaritana e num encontro com Jesus num poço e da transformação que aí aconteceu. E nessa altura, sem o saberem, sem sequer suspeitarem, caminharemos juntos.
20151123
Serenar, organizar as ideias, ver, agir. Em conformidade.
Comecei ontem a ler um livro do Miguel Sousa Tavares. Como me acontece muitas vezes quando o leio, as suas descrições de um lugar dão-me uma vontade de, logo ali, naquela altura, fazer a minha mochila e partir para aquele lugar que ele tão bem descreve. Apetece-me ouvir os pássaros que ele ouve, estar no alpendre onde ele está, no pequeno apartamento que alugou num sítio que nem sei bem onde fica e escutar a noite como ele escuta.
Raras vezes, sou assaltado pelos "e se...": ... e se tivesse a coragem de partir? ... e se largasse tudo, de repente, sem comos nem porquês?... e se fizesse apenas o que me desse na real veneta sem ligar para as consequências?... e se vivesse, efectivamente, cada dia como se fosse o último?
Um dia destes, enquanto via uma apresentação da missão a Timor, tive que me levantar e procurar um outro lugar onde pudesse estar mais longe dos olhares dos que me rodeavam. Senti uma saudade imensa de Quelimane, daqueles miúdos, daquela forma de vida, daquela entrega total e absoluta sem pensar em mais nada, sem perguntar mais nada, sem desejar mais nada. Senti ma vontade tremenda de voltar a partir, desta vez por mais tempo, desta vez fazendo mais, desta vez sendo mais decisivo, desta vez não de visita mas armando tenda e habitando, no meio deles.
Paradoxal, não é? Querer partir apenas para chegar e ficar. Querer soltar amarras apenas para as poder voltar a prender num outro cais. Querer largar para poder voltar a agarrar.
No sábado recebi outra notícia tremenda: um amigo, de há muitos anos, descobriu por acaso que tem um cancro. Mau. Muito mau. Mais um abalo neste tempo que tem sido pródigo em abalos e que, como sempre me acontece em tempos de abalos, me remete para Job. E pensei logo no que faria se fosse eu. Se ficaria por cá a morrer aos pedaços ou se faria o que sempre intui que faria numa situação destas: iria morrer longe, como os elefantes. Sabia a resposta. Sei a resposta. E os meus também a sabem.
20151121
Vi-o sair, nitidamente mais cabisbaixo que o costume. "Então? Está tudo?" "Nem por isso." Pressenti o seu desejo de conversar, apesar de nunca termos trocado mais que palavras de circunstância numa qualquer reunião de pais das nossas filhas.
"Que se passa?" "A minha mulher morreu."
Nada nos prepara para ouvir isto, muito menos de chofre, muito menos numa conversa que não era suposto acontecer. A tristeza do seu olhar era agora indescritível, e eu perguntava-me como não pudera ver isso antes.
"Estávamos tão bem, agora... a nossa filha a trabalhar... tínhamos ido de férias em setembro... dia 22 morreu no hospital... cancro... sinto-me perdido em casa... sozinho..."
Parece que se acantonou de armas e bagagens por estes lados. Sonho com ela recorrentemente, penso nela mais que o costume, porventura mais que o que devia, como se fosse uma sombra permanente sobre o ombro. Sempre presente.
"...hoje não vou poder ir: morreu o irmão de um amigo e eu quero ir dar-lhe um abraço..."
Tem pesado nos meus dias, pairando, como uma nuvem, quase impercetível, quase inconsciente, mas presente, sempre presente.
"... parabéns, mano velho... hoje farias 51 anos..."
e a foto do Paulo, e a voz do Leonel, e as memórias de volta, passados tantos anos, inacreditáveis, ainda inacreditáveis, "o Paulo morreu", e a necessidade de estar lá, junto dele e de todos eles, que sempre me disseram tanto...
"... esperam que o Jorge acorde amanhã..."
e eu, calado como sempre que se fala do Jorge, a moer para dentro, como sempre que se fala no Jorge, a acordar ainda a noite é pequena, como sempre que se fala no Jorge e ele me faz companhia e me rouba o sono... Ainda ontem, estupidamente, pareceu-me vê-lo, de mochila às costas, como estupidamente me parecia ver o Paulo meses depois, e a Carmen, e o Gusto... como se eu sofresse de (mais) uma deficiência qualquer que me impossibilitasse de olhar a realidade e a conseguir vê-la tal qual ela é e não como desejaria eu fosse, não como a construção que faço a partir dela
20151118
Na semana passada, conversava com um dos meus filhos acerca de carros. Nós somos assim: conversamos de tudo e de nada, de fé e política, de convicções e diversões, de filmes e cartoons, de carros e jogos, de testes e filosofia... não temos uma cartilha de conversas importantes e secundárias, todos os motivos, todas as horas, todos os momentos, são bons para aprendermos juntos. Mas naquela altura era de carros que falávamos. Adolescente como é, cheio de "velocidade furiosa" na cabeça, contava-me o seu fascínio por eleanors, e mustangs e outros que tais. Eu contrapunha com classes E e series 5 e ele dizia-me - como me dizem todos eles - que eu estava a ficar velhote.
É verdade! Mas não é apenas isso.
As minhas benditas caminhadas matinais junto ao mar têm feito o seu caminho cá por dentro. Têm sido uma oportunidade para reeducar os sentidos. Logo que desço da avenida para junto ao mar o som muda com uma rapidez impressionante e fico apenas com o som das ondas, das gaivotas e do vento - o coaxar das rãs só lá para a primavera - vou-me apercebendo das subtis mudanças da paisagem, a progressiva descoloração dos arbustos, o lavar do mar pelo aumento de agressividade das ondas, até da mudança nas pessoas que passam por mim consigo reparar! É todo um mundo novo que eu andava a perder e que, lentamente, naquela hora matinal, vou tentando recuperar. E como gosto de o fazer!
Tenho uma visão recorrente de há muitos anos. Na verdade, não sei bem se é uma visão ou um sonho ou uma cena qualquer de um filme ou de um livro que acabou por ficar gravada na minha memória. Mas sei que aquela paisagem agreste à beira mar, elevada, com uma casa térrea no meio do nada e eu, devidamente acompanhado, fazem parte do meu imaginário de futuro, do meu projecto de futuro, se quiserem. E sobretudo, serenidade. Muita serenidade. Os meus livros que há décadas guardo para ler na velhice, a boa música jazz, clássica, folk... a minha guitarra. De tudo isso, apenas me falta o lugar... e a serenidade. Mas desta estou já a tratar. O lugar, a seu tempo, chegará.
20151116
Gostei sempre de filmes épicos. Aqueles em que se luta até ao limite das forças, contra todas as probabilidades, contra tudo e contra todos, sempre em nome do amor. Então se for com morte certa, se ficar apenas um para a história, melhor ainda. Com extraordinária facilidade sinto-me catapultado para o centro dos acontecimentos e também eu me vejo lá, orgulhosamente lá, a lutar sozinho, a morrer sozinho e, sobretudo - porque isto é o que verdadeiramente me seduz - a ser finalmente reconhecido como um herói por aqueles em nome de quem abnegadamente lutei.
É evidente que se o que me emociona é o reconhecimento final, a minha luta é tudo menos desinteressada. Até porque normalmente sou mais sensível a este tipo de epopeias quando estou mergulhado até ao pescoço em algum tipo de alhada da qual não consigo forma de me livrar de cabeça erguida. Então, nada melhor que um ato heróico que me faça tirar da mediocridade e elevar-me à justificadíssima, evidentíssima, condição de herói da humanidade. E é justamente esta sensação de viver na mediocridade que nos deve fazer pensar.
Se não me deixa de espantar que jovens ocidentais se sintam atraídos pela absoluta loucura que conduz aos atentados que tomam conta dos acontecimentos globalizados, interrogo-me acerca do estado psicológico e moral em que se deve encontrar quem se descobre seduzido por tamanha radicalidade. Eu até entendo o clima de nada a perder que lhe está subjacente. Perturba-me sempre, mas consigo entender a mecânica psicológica do suicídio. Sobretudo para quem tem fé, morrer não é, de longe, o pior que pode acontecer. A desesperança, o sem sentido, o sem futuro, o sem razão, sobretudo se quotidiano, sobretudo se solitário, consegue ser um inferno de horrores para quem o sofre. E viver assim é viver em terra árida. E viver assim é ficar permeável a uma qualquer ideologia, a uma qualquer promessa, a uma qualquer loucura que nos rouba de nós próprios e nos conduz à insanidade total. Pessoas assim, que sentem que nada têm a perder, são as mais perigosas de todas, porque acreditam que o melhor que lhes pode acontecer é morrer. E se morrer dentro dos trâmites do seu próprio código de honra - que para os de fora não faz qualquer sentido - melhor. Não tem a ver com virgens prometidas, não tem a ver com fanatismos de fé. Tem a ver com conquistar um sentido para a vida, que arrebate da solidão profunda em que se encontra e a substitua pela razão de viver.
Não acredito nada, absolutamente nada, que a melhor resposta seja com armas na mão e ameaças e proibições. Provavelmente até seria aquela que eu decidiria se estivesse em lugar de decidir, mas essa não é a resposta. É outra. Mais a montante, mais silenciosa, como silencioso é o percurso que os leva a chegar àquele desespero. A resposta só pode ser tentar dar sentido à vida, só pode ser impedindo a estrutura mental do "nós" que se sobrepõe aos "outros", só pode ser restituindo a dignidade a quem todos os dias sufoca à procura dela. E isso apenas se faz pela inversão do que nos tem guiado há gerações: a lógica do poder.
Acredito que é tempo de voltarmos à civilização do amor, da ternura, da disponibilidade, da atenção ao outro, à lógica do serviço ao outro, de o colocarmos no centro da nossa atenção. Soa mal, não soa? Soa a anacrónico, não soa? Soa a sacristia, não é? E ninguém quer isso, que fica mal, é tão pouco apelativo, tão pouco moderno! E afinal, nós, os cristãos, os católicos, estamos finalmente tão perto da modernidade, até temos finalmente um Papa fashion, iríamos agora recuar em nome de quê? De Jesus? Do Cristo? Que ideia!
20151112
No sábado, por entre reuniões de trabalho, almocei com gente tida como importante. No entanto, sentia-me completamente em casa. Como sempre acontece naquela família, tivera sido muito bem acolhido, sintonizo-me com a sua forma de ser e de estar, identifico-me com a sua forma de trabalhar e servir, e quando isso acontece, esqueço com extrema facilidade os cargos ligando-me apenas às pessoas. Na altura, enquanto a conversa vai fluindo, isso não me incomoda absolutamente nada: sorrio quando tenho que sorrir, concordo quando tenho que concordar, tento argumentar quando isso não acontece, como se estivéssemos verdadeiramente entre família, onde os cargos que se ocupam são sempre circunstanciais e perfeitamente secundários. O problema é que quando isso acontece tendo a preservar-me pouco, porventura a revelar-me em demasia, a cometer alguns erros - que apenas a mim me comprometem, no entanto - e nem sempre saio bem visto da coisa.
Mais tarde, quando passei a conversa em revista, quando revisitei aquele almoço, cheguei à inevitável conclusão que provavelmente teria ganho mais se tivesse sido mais comedido, se jogasse à defesa, se tivesse mantido algumas cartas na manga para as poder lançar quando melhor me conviesse. Mas, sinceramente, já não tenho idade nem pachorra para isso. Se nunca tive grande apetite para esse tipo de joguinhos, apercebo-me que à medida que a idade vai passando, me sinto cada vez menos disponível para esse tipo de fitas. Claro que tento sempre evitar o ridículo - às vezes sem o conseguir - tento sempre ter algum juízo, porque apesar de me sentir em família, não é propriamente a casa da mãe joana. Mas estou já uma fase da vida em que prefiro, de longe, ser aceite ou não pelo que sou, que investir no que gostaria que fosse, e muito menos no que os outros gostariam que eu fosse.
Principalmente no meio do nevoeiro.
20151111
...e de repente, depois de uma série de anos de calmaria, ondas vindas de vários quadrantes atingem-me o barco. Parece que tudo mexe, parece que nada mais será como antes, parece que os deuses se reuniram em conluio para me agitarem as águas e testarem as minhas escolhas. A nível pessoal, profissional e agora até a nível nacional, as verdades que ainda ontem o eram inquestionavelmente hoje são já ultrapassadas pela realidade que, apesar de incrédula, é indesmentível.
Conversávamos ontem ao jantar acerca da imprevisibilidade da vida e das nossas reações quando tudo parece escapar ao nosso controlo. E vamos sempre ter à incógnita do amanhã e ao Carpe Diem, que ainda ainda assim tem múltiplas interpretações: se há quem ache que o que importa é viver tudo hoje e com isso cometa as maiores loucuras, outros acham que o importante é a qualidade da marca que deixamos nos outros e com isso viva voltado para fora. De comum às duas visões, a premência da vida que teima em escapar-se-nos por entre os dedos e a deixar-nos um sabor amargo na boca sempre que desperdiçada.
A minha filha disse-nos ontem que tinha estado com a Lurdes, que se tinha comovido com a sua serenidade, com a sua sabedoria profunda, com a sua capacidade de entrega aos outros, apesar de lhe ter sido diagnosticado um cancro terminal há vários anos. Como tem acontecido ultimamente, fomos ter ao Jorge, que tem sido um abalo duro para todos nós. Outra filha minha disse que era muito confuso para ela quando pensava que mesmo que ele recupere e fique bom - um cenário cada vez menos provável - haverá pelo menos três semanas da vida dele que serão inexistentes para si. Outro filho disse que pela primeira vez na vida se tinha questionado a sério acerca do rumo que tinha tomado para si... escutava-os, como sempre, completamente embevecido, como quase sempre, completamente grato pelo que fomos construindo juntos ao longo da vida.
Há alturas em que tenho a noção clara que estou em viagem, apenas em viagem. Que não comecei aqui, que não vou acabar aqui, que o que se passa por aqui, o que é dito e vivido e sentido e desfrutado é a antecâmara de algo muito maior. Não me rouba a alegria nem a tristeza nem o choro ou o riso. Não me rouba a preocupação nem o gozo nem o desânimo ou a força. Não rouba vida à minha vida, que é composta de dias e semanas e segundos e anos e meses e minutos e até de um outro tempo sem tempo, que até acredito que é o tempo onde se passa aquilo que é verdadeiramente importante.
Mas dá-me a certeza que nada, absolutamente nada, do que sou, se esgota aqui.
Há conversas que nunca acabam. Poderíamos estar ali, uma vida toda, com o tempo todo, com o sol todo, e a brisa, e a paisagem, e tudo o que nos rodeia, que haveria sempre qualquer coisa que ficaria por dizer. E partilhar. e sentir. Quando, a custo, nos afastamos - e é sempre a custo que o fazemos - ecoa ainda tudo o que não foi dito. É o que dissemos que é passado em revista, uma e outra vez, num e noutro sentido, mas é no que ainda não dissemos que me detenho. Porque não foi dito. Terá sido condicionado? Terá sido voluntário? Talvez não tenha sido ainda o tempo de o fazer, talvez seja ainda cedo, talvez seja agora demasiado tarde, talvez ainda seja necessário mais caminho, talvez...
Provavelmente, seria mais fácil se as palavras não tivessem que ser ditas. Se tudo funcionasse por osmose, sem termos que fazer nada por isso, sem ter que ser escolhido e por isso pensado e decidido e deliberado, mas fluísse apenas, permitindo a certeza da evidência, clarificando com a certeza da evidência, sem mais nada a não ser o que é. Mas aí perderíamos o olhar e as alterações do olhar que respondem ao acelerado bater do coração, que reage ao súbito afloramento do sangue que impele as coisas desejadamente escondidas, involuntariamente reveladoras porque tomam conta do que preferiríamos que permanecesse escondido dos olhares alheios, tantas vezes até do nosso próprio olhar. E as palavras ditas têm esse péssimo hábito de ganhar vida própria quando menos o desejamos revelando mais que o que desejamos revelar, fazendo de nós tontos balbuciando uma qualquer desculpa alegando um qualquer mal entendido que se tornou demasiado bem entendido por todos.
Provavelmente, as palavras não ditas são as que permanecem, quando nos afastamos, e permanecem, apesar da distância que aumenta, e permanecem, impedindo que as nossas almas acompanhem os nosso corpos, e permanecem, apesar de... Talvez as palavras não ditas sejam aquelas que nos fazem caminho, nesta solitude acompanhada, que prepara o meu olhar para o teu olhar quando finalmente permitir que escutes tudo o que tenho para te dizer.
Provavelmente, seria mais fácil se as palavras não tivessem que ser ditas. Se tudo funcionasse por osmose, sem termos que fazer nada por isso, sem ter que ser escolhido e por isso pensado e decidido e deliberado, mas fluísse apenas, permitindo a certeza da evidência, clarificando com a certeza da evidência, sem mais nada a não ser o que é. Mas aí perderíamos o olhar e as alterações do olhar que respondem ao acelerado bater do coração, que reage ao súbito afloramento do sangue que impele as coisas desejadamente escondidas, involuntariamente reveladoras porque tomam conta do que preferiríamos que permanecesse escondido dos olhares alheios, tantas vezes até do nosso próprio olhar. E as palavras ditas têm esse péssimo hábito de ganhar vida própria quando menos o desejamos revelando mais que o que desejamos revelar, fazendo de nós tontos balbuciando uma qualquer desculpa alegando um qualquer mal entendido que se tornou demasiado bem entendido por todos.
Provavelmente, as palavras não ditas são as que permanecem, quando nos afastamos, e permanecem, apesar da distância que aumenta, e permanecem, impedindo que as nossas almas acompanhem os nosso corpos, e permanecem, apesar de... Talvez as palavras não ditas sejam aquelas que nos fazem caminho, nesta solitude acompanhada, que prepara o meu olhar para o teu olhar quando finalmente permitir que escutes tudo o que tenho para te dizer.
20151110
Na minha família de cientistas, os meus olham para mim com a mesma naturalidade com que se olha para um elefante vestido com um tutu cor de rosa. Volta e meia, enquanto eles estão a discutir enzimas e bactérias e outras coisas que tais, eu, meio para os provocar meio a sério, digo-lhes que encontro mais certezas nas coisas do Espírito Santo que naquilo que eles estão a dizer. Para além da natural provocação - que me dá um gozo especial quando os meus cunhados irlandeses estão cá (eles são mesmo cientistas!) - eles sabem que acredito naquilo que afirmo, e eu deixo que isso os escandalize.
Quando consigo provocá-los a ponto de discutirmos a sério, tenho o cuidado de substituir o Espírito Santo pela alma, o que, não sendo para mim a mesma coisa, permite no entanto despir a carga teológica da discussão e abrir caminhos comuns, defendendo a minha dama porque a verdade é que eu acredito mesmo nas coisas da alma, na importância da alma, na inevitabilidade da alma, que a essência do que somos e faz de nós as pessoas que somos está mesmo na alma. Claro que todos temos uma história de vida e condicionantes psicológicos e aportes físicos e sociais que nos vão construindo e desconstruindo sucessivamente numa séria de processos encadeados que têm o seu quê de racional como de circunstancial e que, apesar dos nossos esforços, têm tanto de programação como de improvisação, Graças a Deus, porque é justamente isso que torna a vida tão rica e tão desejável. Mas mesmo com tudo o que nos rodeia, mesmo com tudo o que vem de fora para dentro, há uma reserva que pensamos que nos diz apenas respeito a nós próprios mas que eu acredito que, pelo contrário, diz respeito aos outros: a nossa alma.
Claro que para falarmos da alma temos que o fazer num outro patamar que deixa os meus cientistas desconfortáveis. Aqui nada é palpável, nada é visível, nada é comprovável. Sentimos, sabemos que sentimos, por vezes até conseguimos racionalizar o que sentimos, mas atingimos sempre a margem do desconhecido, que pode ou não desembocar na escolha do caminho da fé. E aí é que o caminho se torna difícil para quem faz da racionalização e da observação e da comprovação o seu quotidiano, a sua vida, não raras vezes a sua razão de viver. Passar do que controlam através dos sentidos para a entrega da alma exige uma humildade que não lhes é permitida. E que lhes exige, por isso, uma capacidade de abandono e entrega ainda maior que ao comum dos mortais.
20151105
Existem muitas maneiras de sermos culpados. Basta procurar. É como numa operação stop: podemos ter tudo em ordem, pode o carro ter vindo da vistoria há duas horas, podemos ser o condutor mais cuidadoso do mundo, mas se o polícia acordou mal disposto não temos nada a fazer. Há sempre uma luz que pisca, há sempre uma luz que não pisca e devia piscar, há sempre um traço contínuo que se ultrapassa, há sempre um sinal que foi roubado mas devia estar lá e nós não o vimos. Há sempre uma maneira de sermos culpados.
Adoro escutar. Pela quantidade e, sobretudo, pela qualidade das pessoas que se abrem comigo, fui aprendendo que este deve ser um dos meus dons. Que me esmero em colocar em prática. Algumas vezes ainda fico demasiado absorvido pela data limite que o trabalho sempre nos impõe, mas tento ir ficando mais atento a quem se aproxima - ainda que ao longe - tento ir lendo nos olhares - ainda que se desviem - tendo ir disponibilizando um lugar para que, quem quiser, quando quiser, se quiser, se possa sentir acolhido. E quando chega a altura, paro tudo, nem que seja por breves minutos, nem que seja por alguns dias, e aquela conversa, aquela partilha, aquela preocupação, passam a fazer parte dos meus silêncios orantes, das minhas procuras interiores, habitando-me juntamente com quem se partilhou comigo.
It takes two to tango. E isso pode ser um problema. Porque existe uma verdade lapaliciana que defende que para existir quem escute é preciso haver quem queira partilhar. E isso pode ser um problema. E isso é um problema.
Existem muitas maneiras de sermos culpados.
Basta procurar.
20151104
"Ele estava ontem com questões existenciais. Pelas mensagens que lhe enviam, ele não sabe se não deveria alterar a sua rotina para ficar mais em consonância com a dor que deveria sentir."
Sorri, para dentro, e percebi bem o seu dilema. Os outros esperam sempre que tenhamos um determinado tipo de atitude, que demonstremos um determinado tipo de dor, ou de alegria, ou de indiferença, e, muitas vezes sem o desejarem, julgam-nos por isso. Eu aprendi há muitos anos a não dar especial relevo às expectativas dos outros. Vejo, escuto, interrogo-me, faço o meu próprio julgamento, e tento seguir caminho. Normalmente sem sequer me preocupar em explicar as minhas decisões, o meu comportamento, as minhas atitudes. A não ser que magoe alguém por isso - e aí uma explicação é exigível - nunca me apetece justificar-me, nunca sou bom em justificar-me, nunca consigo justificar-me sem ter aquela sensação que ninguém tem nada a ver com isso. A não ser que eu o queira, a não ser que eu lhe tenha dado o meu consentimento para o fazer.
Mal soubemos do Jorge corremos ambos para o hospital. Quando soubemos que nada mais poderíamos fazer senão esperar e rezar, fomos ambos, a custo, para casa e tentamos todos, a custo, prosseguir com as nossas vidas. Mesmo com o Jorge permanentemente na nossa cabeça, temos tido gargalhadas francas, sorrisos sinceros, momentos verdadeiramente felizes. Porque acreditamos que é estúpido sentirmos culpa por termos momentos de alegria e felicidade, porque desejarmos muito que o Jorge estivesse connosco não pode imprimir um cunho de miserabilismo nas nossas vidas, porque o Jorge, se pudesse, seria o primeiro a rir connosco.
Os meus filhos aprenderam cedo a terem que lidar com a perda. Pode parecer herético, mas começaram por ter que lidar com a morte do Aquiles, o meu cão desde que eles eram miúdos, e isso ajudou-os, mais tarde, a lidarem com a perda do avô que eles adoram. Aprenderam com a morte que na vida há lugar para o imenso, seja esse imenso traduzido em forma de dor, de choro, de gargalhada ou rejúbilo. Aprenderam que o imenso da vida é para ser imensamente vivido, e que apenas isso torna a vida imensa. Aprenderam que todos somos passageiros nesta viagem em que tudo é passageiro, excepto aquilo que nos transforma verdadeiramente e que levaremos como bagagem para a etapa seguinte. E por isso aprenderam que a autenticidade do choro e do riso valem mais que todas as aparências do mundo.
20151102
Não foi a primeira vez. Ali estávamos nós, como estamos em cada dia 1 de Novembro, no cemitério, junto daqueles que jazem à nossa frente, acompanhados daqueles que ali estarão, em princípio, daqui a algum tempo. Nenhum outro lugar me consciencializa com tanta evidência do ciclo da vida. Lembro-me que há um par de anos, neste mesmo dia, olhava para a Tia Micas e tinha a percepção clara que ela imaginava que estaria ali, dou outro lado, no próximo 1 de Novembro. E ontem lá estava ela, efectivamente.
Estava um fabuloso final de tarde, ontem. O cemitério não tão cheio - "os velhos vão morrendo e os novos não vêm a estas coisas" - o Padre Rosas a celebrar, e eu a olhar à minha volta, a ver os meus velhos que me rodeavam, a ver alguns dos amigos de sempre a prestarem homenagem aos seus pais, amigos, familiares, e eu a olhar para o céu, a conseguir ver o laranja forte do sol nas nuvens carregadas de água "está um belíssimo final de tarde!" e a pensar no Jorge, que normalmente andava por ali, atarefado, organizando e vigiando para que tudo corresse bem, e que agora não fazemos ideia de como está, de como irá estar, se terá futuro ou não, de que lado estará ele no próximo 1 de Novembro...
A minha avó, os tios, a minha sogra, os meus pais, agora o Jorge, têm-me forçado o olhar para um outro lado da vida, que normalmente não vejo, que normalmente escolho não ver, entretido com a construção do meu futuro e do futuro dos meus, e que me levanta outro tipo de questões, e que me pede outro tipo de respostas, e que me coloca perante a incerteza da vida, a finitude da vida, a importância de viver efectivamente a vida.
Não me recordo de ter medo da morte. Sempre intui que me poderiam acontecer coisas bem piores que a minha própria morte. Confirmei essa intuição quando a minha filha esteve mal, quando pensei que morria de desilusão provocada, quando não dei qualquer valor a voltar, seja para onde fosse. Não tenho medo da morte. Tenho um medo tremendo de desperdiçar a vida.
20151029
O mesmo dia, dois momentos, dois estados de espírito, duas formas de estar, duas formas de sentir, diferentes. Completamente diferentes.
Caminhamos como caminhamos sempre. Com palavras. Por vezes com pés, outras com olhares, rápidos, fugidios, muitas com a doce ilusão do que se vê de olhos fechados, mas sempre com palavras. Não foram elas que nos introduziram, foi outra coisa, que as dispensa, que as torna supérfluas, mas que elas vão consolidando. Com a particularidade de, desta vez, terem sido outras, as palavras que tivemos por companhia. Menos perguntas, menos repostas, menos necessidade de perguntas e de respostas, mais lugar ao puro prazer da companhia, à coisa nenhuma, ao tudo profundo, ao tudo e ao nada, provavelmente espelhando uma maior confiança no tempo que há de trazer consigo o tempo das perguntas e respostas significativas, acreditando que agora o tempo joga a nosso favor.
Caminhamos como caminhamos ultimamente. Olhos no chão, olhos no que nos rodeia, no que se passa à nossa volta, cuidadosamente evitando os olhares. Com palavras, sempre com palavras, que interrompam o silêncio que persiste fazer-nos companhia, apesar de não ter sido convidado, apesar de ter mudado de sentido, apesar de ter passado de partilhado a incómodo. Foram já outras as palavras com que caminhávamos, foram já outras as que utilizávamos, tantas e tantas vezes, plenas de sentido, plenas de vida, plenas de verdade. Mas hoje, algumas perguntas, algumas respostas, que já não querem saber mas constituem armas de arremesso que mais não visam que provocar danos, conquistar justificações, próprias ou alheias, que dêem conforto quando estamos a sós com a almofada.
E o Eugénio, sempre o Eugénio, a sussurrar "já gastamos as palavras pela rua, meu amor..."
20151027
Passo uma música, dez segundos depois escolho outra, tento concentrar-me, seja como for. Em vão! Hoje tudo é em vão! Enquanto ele estiver nos cuidados intensivos, enquanto não souber ao certo o que se passa, enquanto não conseguir lidar com esta inquietação que me habita as entranhas, tudo é em vão. A aparência da normalidade, que se impõe nestas alturas, deixa um intenso sabor a fel. A sensação que não é aqui que deveria estar, a certeza que deveria ser lá, mais perto dele, ainda que tão impotente quanto aqui, ainda que tão inútil como aqui, entorpece-me os sentidos e não consigo pensar nada, fazer nada, sentir outra coisa que não esta impotência que me tolhe os movimentos.
Esperávamo-lo ontem para, como sempre, festejar connosco mais um aniversário de mais um dos nossos filhos. Sabíamos que desta vez não viria, como veio tantas outras, apenas para se sentar no canto do sofá, apenas para aí estar, sem abrir a boca, sem olhar para coisa nenhuma, bebendo dos nossos sons, absorvendo da nossa vida, porventura tentando reencontrar aí um pedaço da sua vida. Sabíamos que se reerguera, há alguns anos, já caminhava, já recomeçara, já conseguíamos ver nele o Jorge que nos acompanhava há mais de trinta anos, padrinho de um dos meus filhos, amigo de todos eles, íntimo de todos nós, já mobília da casa, desde sempre parte de todos nós. O Jorge não é como um irmão, é um irmão, que a vida foi dando, que a vida foi construindo, que a vida foi cimentando e consolidando e crescendo até não o distinguir dos meus irmãos, até não ser distinguido dos seus irmãos.
Fomos a correr para o hospital. Eu e o meu filho, seu afilhado, muitas vezes seu confidente. Ficamos lá até tarde, como ficaram outros, sedentos de notícias, num silêncio contido, à espera que um qualquer milagre nos pudesse mandar de volta para casa com a hipótese de nos reconciliarmos com o sono. Que não chegou. "Está nos cuidados intensivos. Lá permanecerá até conseguirmos avaliar a dimensão dos estragos que o atropelamento provocou." Regressamos a casa, em silêncio, desalentados, sem grande esperança, dolorosamente refugiados nas memórias que teimam em invadir-nos nestas alturas. Em silêncio. Cada um com a sua dor.
20151026
... e, de repente, acordas.
Fui visitar a minha avó. E, como tem acontecido a longo deste último ano, a viagem de regresso a casa gira em torno dela, da rápida aceleração do seu processo de envelhecimento, da passagem tão difícil do cérebro à boca que torna as suas palavras tão entarameladas, do seu olhar que ora está vivo como antes, ora, de repente, se embacia, da sua consciência da progressiva perda de consciência, do fatídico "estou mortainha por morrer"... Se os seus 94 anos tinham já repercussão no seu corpo, a sua cabeça, até há pouco tempo, permanecia tão lúcida como antes. Dizia mal das mesmas pessoas, mandava as suas piadas - invariavelmente entrecortadas com as caralhadas que eram a sua imagem de marca - perguntava por mim e pelos meus sabendo que perguntava por mim e pelos meus conseguindo identificar quem eram os meus. Agora, quando finalmente sabe o meu nome, confunde-me com o meu pai, ou com um dos meus filhos, alternando sucessivamente as suas conversas comigo como se estivesse a falar com qualquer um dos outros.
Em nada a ternura que sinto por ela se diminui. Apesar de não termos tido uma história de vida bonita juntos, a determinada altura, quando me apercebi que não a teria junto de mim por muito tempo - e quando já apenas dependeria de mim estreitarmos laços porque ela já não conseguia sair de casa - comecei a ir visitá-la, não numa tentativa de recuperar tempo, mas de agradecer o ainda tempo. E aprender.
Tenho lidado muito com velhos - não gosto de "idosos" e muito menos de "séniores", que me parecem eufemismos para disfarçar a nossa obsessão pelo novo - que me têm colocado a vida em perspetiva. São uma lição, por isso, para mim e para os meus filhos. Nem sempre positiva, confesso. A imagem romântica e confiante que eu tinha em relação ao futuro vai-se desvanecendo à medida que vou tendo que lidar com parkinsons e alzheimers e demências e falência do corpo e da mente, arrastando consigo, ladeira abaixo, a falência do espírito.
Estou habituado, desde sempre, ao confronto comigo mesmo, ao contínuo perscrutar do que se vai passando cá por dentro, tentando discernir, a cada momento, o melhor caminho. Mas este é um outro tipo de confronto: o da finitude de todos nós, dos que amamos, dos que acompanhamos ao longo da nossa vida, de nós próprios. No definhar dos outros assistimos ao nosso próprio definhar, à medida que a sua memória se vai apagando, vamos sendo cada vez menos memória, nos outros... dos outros... de nós. Não são apenas eles que não são o que eram, somos também nós que não somos o que sempre pensávamos que éramos. E isso pode ser duro. Quando pensamos a sério, isso é duro. Porque nos coloca em perspetiva.
A tentação de irmos respondendo ao seu progressivo desligamento com o nosso próprio desligamento é enorme, ainda para mais quando temos a pressão do quotidiano a berrar-nos ao ouvido a falta de tempo e de disponibilidade, mental e física, para lidarmos com o lado b da vida. Lidar com velhos é, no entanto, uma experiência profundamente transformadora.
Resta-nos saber conduzir o sentido dessa transformação.
Não é fácil.
20151024
Sinto sempre um respeito e responsabilidade profundos por aqueles que são capazes de fazer aquela que é, para mim, a mais difícil das partilhas: a dos momentos difíceis.
Aconteceu num destes dias. Cruzáramo-nos várias vezes nos corredores da vida, com cordialidade nos cumprimentos e no olhar, apercebendo-nos do bom acolhimento mútuo. Mas nunca conversáramos, a sério, nunca tínhamos feito nada juntos, nunca tivéramos sequer oportunidade de trocar mais que o mecanizado e mecanizante "tudo bem?" da praxe.
Mas aconteceu num destes dias. Calhou ter-se proporcionado um momento para conversarmos e, passada aquela barreira que nos permite confirmar ou não a intuição sentida, partilhou. As suas dores, as suas dificuldades, a sua solidão, porventura o seu desespero em conseguir lidar com a situação, a sua profunda solidão, mais uma vez, numa manifesta incapacidade de gerir - sem julgar poder contar com mais ninguém! - o céu que teima em desabar sobre a sua cabeça.
Impressiona-me sempre a dor escondida. E impressiona-me sempre por vários motivos. Invariavelmente, o primeiro é instintivamente auto-punitivo: não percebo como pude não me ter apercebido antes, como pude não ter visto, como pude ter andado tão distraído. É instintivo, e reduz fortemente assim que permito que a cabeça funcione: não posso respeitar a distância que nos é - ainda que tacitamente - pedida e, ao mesmo tempo, invadir o que não querem ver invadido. "Não podes dar o que não querem receber." Ponto. O segundo motivo é mais racional. Mas mais duro. Impressiona-me a capacidade que algumas pessoas têm de continuar apesar de..., de persistir, de combater, de andar de cabeça erguida e ainda - espante-se! - sorrir, tentando conciliar o turbilhão interior com a aparente calmaria exterior, refugiando-se cada vez mais, escondendo-se cada vez mais, isolando-se cada vez mais. E impressiona-me sempre, sempre a solidão. Que nunca escolhe idades ou géneros, que não escolhe contas bancárias ou aspectos físicos, que muitas vezes não escolhe sequer acontecimentos específicos, mas que entra, subrepticiamente, e subrepticiamente se instala sem pedir licença, e se deixa ficar por lá, minando, minando, no silêncio, até que alguém ceda.
Aconteceu num destes dias. Cedeu. Foi comigo - improvavelmente comigo - mas cedeu. E eu estava lá, a escutar atentamente, cuidadosamente calado, porque, como concordamos mais tarde, há dores que não podem nunca ser menorizadas ou suavizadas. Apenas partilhadas.
Aconteceu num dia destes.
20151022
Esta noite foi passada na companhia da minha velha amiga insónia.
Muitas vezes não é assim tão amiga: deixa que eu me enrede nos meus próprios pensamentos como peixe na rede, sem me conseguir soltar de mim próprio, sem avançar noutro sentido que não seja o círculo perfeito, voltando uma e outra vez ao mesmo lugar, sem progredir coisa nenhuma.
Não foi isso que aconteceu esta noite. Desta vez fartamo-nos de conversar. Das coisas da alma, principalmente. Disse-me que eu estava enganado havia muito tempo. Que a alma não é uma só, presa ao corpo, amarrada à vontade, rendida aos nossos desejos mas tem vida própria. Que prender e amarrar e render fazem parte de um outro vocabulário, que é estranho à linguagem da alma. Que refere a um outro mundo: o das coisas, das quais o corpo faz parte. E disse-me ainda - para me tentar fazer perceber - que a alma é um pouco como Deus que, sendo um, não é apenas um, e não sendo apenas um, não deixa no entanto de ser um. E que, sendo um, habita em muitos lugares, preenche muitos lugares e se preenche em todos os lugares, sem se sentir dividido mas multiplicado, complementado por todos os lugares que habita, em si tão diferentes, mas dentro de si tão únicos... tão unos! E disse-me ainda que é por isso que a linguagem de Deus é a linguagem da alma, que apenas a tornamos corpo, apenas a coisificamos, porque estamos sempre à procura de aprender a escutar, e a ver, e a sentir, e a valorizar o que escutamos e o que vemos e o que sentimos. Depois olhou-me atentamente e disse-me, lentamente, para que eu entendesse bem - ela sabe bem, até pelas horas tardias em que me visita, que eu com sono sou ainda mais lerdinho - que não havia motivo para preocupação. Que sossegasse e deixasse a minha alma sossegar. E que confiasse. Porque a minha alma, bem melhor que eu, reconhece o amor, reconhece-se no amor, até porque habita aí nesse lugar onde também habita Deus.
Estremunhado, olhei para a minha velha amiga insónia, agradeci, e disse que tinha que me levantar cedo. Ela sorriu, anuiu,e foi tratar da vidinha dela para outro lado. Com a minha alma, desconfio, porque dormi sossegado até de manhã.
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