Aperto o casaco de Taizé até cima e ainda assim o vento gelado entra-me pelo pescoço dentro. Meto as mãos nos bolsos, na vã tentativa de manter as mãos quentes - logo as mãos, que neste tempo estão sempre geladas! - e acelero o passo. Hoje não vi ainda ninguém. Não admira. Lá para abril ou maio é que isto começa a ficar pejado de gente a  correr, a passear, a estenderem-se como bacalhaus a secar. Por agora o frio ou a expectativa de chuva afasta a maioria das pessoas. Ainda bem! Lá para abril ou maio, à medida que os outros vão chegando, eu vou saindo. Não que tenha a mania, mas porque é sossego, o que procuro, e sossego é pouco compatível com algum tipo de pessoas. Viro a esquina para subir as escadas e deparo-me como senhor de calções. Já vi alguém. Arrepio-me ao pensar como pode alguém andar de calções com aquele vento gelado e sigo caminho. Ao fundo vejo, finalmente, o senhor idoso com o cão idoso e, como sempre quando me cruzo com eles, não consigo concluir qual deles tem mais artroses. Mancam ambos, sempre juntos, sempre ao lado um do outro. Calculo que se passearão mutuamente há alguns anos e pergunto-me o que acontecerá a cada um deles quando o outro já não puder caminhar. Mais adiante, a miúda do cão rafeiro passa por mim, música nos ouvidos, como sempre, vara na mão, como sempre - para que será? - rafeiro atrelado, como sempre. Atrás dela, a senhora do cão de água, já um velho conhecido tantas foram as vezes que me cheirou as pernas. Tantas como aquelas em que a senhora me pediu desculpa, provavelmente. Afinal passaram quase todos. Como todos os dias. apesar do tempo, apesar do frio, apesar da chuvinha, algumas vezes, passamos uns pelos outros quase todos os dias.

Nunca encontrei grande problema em fazer o que quase ninguém faz. Ou em dizer o que quase ninguém diz. Ou em ver o que quase ninguém ver. Talvez porque fale como quase ninguém fala e isso relativiza muito do que se possa dizer ou penar sobre mim. Quando encontro prazer em alguma coisa que não interfira com ninguém não me coíbo nada de a fazer. Esta atitude, que nem sequer é pensada mas instintiva, deu-me já experiências absolutamente fantásticas, difíceis de partilhar porque, na maior parte das vezes, as vivi sozinho. Não é fácil arranjar companhia para estar na praia debaixo de um chuva torrencial tendo a trovoada como pano de fundo, ou a tomar um banho no mar de Nazaré às 4 horas de uma madrugada de novembro ou deixar um jogo de futebol a meio no meio do bairro porque está na hora do ensaio... ou da catequese. Tive também que lamber muitas feridas, também vividos a um, seguindo intuições completamente erradas, indiferente às vozes ajuizadas que me berravam aos ouvidos para não ir por ali.

Creio que será o preço a pagar para ter memórias que valem a pena!

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