... e, de repente, acordas.

Fui visitar a minha avó. E, como tem acontecido a longo deste último ano, a viagem de regresso a casa gira em torno dela, da rápida aceleração do seu processo de envelhecimento, da passagem tão difícil do cérebro à boca que torna as suas palavras tão entarameladas, do seu olhar que ora está vivo como antes, ora, de repente, se embacia, da sua consciência da progressiva perda de consciência, do fatídico "estou mortainha por morrer"... Se os seus 94 anos tinham já repercussão no seu corpo, a sua cabeça, até há pouco tempo, permanecia tão lúcida como antes. Dizia mal das mesmas pessoas, mandava as suas piadas - invariavelmente entrecortadas com as caralhadas que eram a sua imagem de marca - perguntava por mim e pelos meus sabendo que perguntava por mim e pelos meus conseguindo identificar quem eram os meus. Agora, quando finalmente sabe o meu nome, confunde-me com o meu pai, ou com um dos meus filhos, alternando sucessivamente as suas conversas comigo como se estivesse a falar com qualquer um dos outros.

Em nada a ternura que sinto por ela se diminui. Apesar de não termos tido uma história de vida bonita juntos, a determinada altura, quando me apercebi que não a teria junto de mim por muito tempo - e quando já apenas dependeria de mim estreitarmos laços porque ela já não conseguia sair de casa - comecei a ir visitá-la, não numa tentativa de recuperar tempo, mas de agradecer o ainda tempo. E aprender.

Tenho lidado muito com velhos - não gosto de "idosos" e muito menos de "séniores", que me parecem eufemismos para disfarçar a nossa obsessão pelo novo - que me têm colocado a vida em perspetiva. São uma lição, por isso, para mim e para os meus filhos. Nem sempre positiva, confesso. A imagem romântica e confiante que eu tinha em relação ao futuro vai-se desvanecendo à medida que vou tendo que lidar com parkinsons e alzheimers e demências e falência do corpo e da mente, arrastando consigo, ladeira abaixo, a falência do espírito.

Estou habituado, desde sempre, ao confronto comigo mesmo, ao contínuo perscrutar do que se vai passando cá por dentro, tentando discernir, a cada momento, o melhor caminho. Mas este é um outro tipo de confronto: o da finitude de todos nós, dos que amamos, dos que acompanhamos ao longo da nossa vida, de nós próprios. No definhar dos outros assistimos ao nosso próprio definhar, à medida que a sua memória se vai apagando, vamos sendo cada vez menos memória, nos outros... dos outros... de nós. Não são apenas eles que não são o que eram, somos também nós que não somos o que sempre pensávamos que éramos. E isso pode ser duro. Quando pensamos a sério, isso é duro. Porque nos coloca em perspetiva.

A tentação de irmos respondendo ao seu progressivo desligamento com o nosso próprio desligamento é enorme, ainda para mais quando temos a pressão do quotidiano a berrar-nos ao ouvido a falta de tempo e de disponibilidade, mental e física, para lidarmos com o lado b da vida. Lidar com velhos é, no entanto, uma experiência profundamente transformadora.

Resta-nos saber conduzir o sentido dessa transformação.

Não é fácil.

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