Passo uma música, dez segundos depois escolho outra, tento concentrar-me, seja como for. Em vão! Hoje tudo é em vão! Enquanto ele estiver nos cuidados intensivos, enquanto não souber ao certo o que se passa, enquanto não conseguir lidar com esta inquietação que me habita as entranhas, tudo é em vão. A aparência da normalidade, que se impõe nestas alturas, deixa um intenso sabor a fel. A sensação que não é aqui que deveria estar, a certeza que deveria ser lá, mais perto dele, ainda que tão impotente quanto aqui, ainda que tão inútil como aqui, entorpece-me os sentidos e não consigo pensar nada, fazer nada, sentir outra coisa que não esta impotência que me tolhe os movimentos.

Esperávamo-lo ontem para, como sempre, festejar connosco mais um aniversário de mais um dos nossos filhos. Sabíamos que desta vez não viria, como veio tantas outras, apenas para se sentar no canto do sofá, apenas para aí estar, sem abrir a boca, sem olhar para coisa nenhuma, bebendo dos nossos sons, absorvendo da nossa vida, porventura tentando reencontrar aí um pedaço da sua vida. Sabíamos que se reerguera, há alguns anos, já caminhava, já recomeçara, já conseguíamos ver nele o Jorge que nos acompanhava há mais de trinta anos, padrinho de um dos meus filhos, amigo de todos eles, íntimo de todos nós, já mobília da casa, desde sempre parte de todos nós. O Jorge não é como um irmão, é um irmão, que a vida foi dando, que a vida foi construindo, que a vida foi cimentando e consolidando e crescendo até não o distinguir dos meus irmãos, até não ser distinguido dos seus irmãos.

Fomos a correr para o hospital. Eu e o meu filho, seu afilhado, muitas vezes seu confidente. Ficamos lá até tarde, como ficaram outros, sedentos de notícias, num silêncio contido, à espera que um qualquer milagre nos pudesse mandar de volta para casa com a hipótese de nos reconciliarmos com o sono. Que não chegou. "Está nos cuidados intensivos. Lá permanecerá até conseguirmos avaliar a dimensão dos estragos que o atropelamento provocou." Regressamos a casa, em silêncio, desalentados, sem grande esperança, dolorosamente refugiados nas memórias que teimam em invadir-nos nestas alturas.  Em silêncio. Cada um com a sua dor.    


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