"Eu quero viver, sabes? Finalmente viver. Ir a um teatro, a um cinema, a uma exposição de arte, passear a sábado de manhã, escolher não passear ao sábado de manhã e ficar em casa, simplesmente ficando em casa. sem nada para fazer, saboreando o sem nada para fazer. Quero apanhar um comboio ou um avião no final de sexta e ir para um outro lugar e conhecer e viajar, quero estar de volta no domingo, a tempo de descansar e me preparar para a semana que se segue. Quero deixar de ter compromissos de fim de semana e de ter que estar sempre ocupado para os outros e pelos outros. Quero a minha carta de alforria, o meu grito do ipiranga. Adio-me há mais de trinta anos,tenho dez ou quinze para viver com qualidade, para sentir a vida a acelerar o pulsar do sangue e não os quero desperdiçar."

Escutei o que dissera, passei-o em revista, e suspirei fundo, concordando novamente. Em nada do que dissera escutara qualquer novidade. Mas vai ser uma surpresa do caraças. Para toda a gente. Particularmente para quem é mais próximo e ainda assim nunca sentou, nunca conversou, nunca se preocupou em escutar atentamente, cuidadosamente, os variadíssimos sinais que, afinal, apenas careciam de sentido para serem visíveis para toda a gente. Particularmente para aqueles que são mais próximos mas que a proximidade dilui a importância, o valor, o peso das palavras, desvalorizando-as, misturando-as com o passageiro do quotidiano, e que nem sequer se aperceberam que a determinada altura as palavras foram sendo menos frequentes, silenciadas, sem que ninguém lhes tenha sentido a falta. Mas também para aqueles - tantos! - que apontam e comentam e encontram o que querem encontrar, e vêem o que querem ver, e ouvem o que querem ouvir, ignorando os "olhe que não" ou "isso não é assim" em nome de uma qualquer pretensão de humildade que não existe, nunca existiu, mas antes insegurança, e consciência dessa insegurança.

Recordei o que dissera, voltei a passá-lo em revista, e suspirei fundo. Mais uma vez. Apercebi-me da tremenda batalha interior, percebi as noites mal dormidas, o sorriso sonhador que rapidamente intercalava com o olhar baço quem se sente perdido e dá lugar ao rosto fechado e determinado de quem sabe que vem aí borrasca. E se prepara para ela.

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