Já não sei caminhar sozinho. Já não consigo caminhar sozinho. Fazem-me companhia os que me habitam, que vão conversando comigo, que vão discutindo comportamentos e atitudes, que vão corrigindo palavras menos cuidadas, posturas menos sensatas, com as quais vou argumentando sucessivamente, escutando atentamente os seus argumentos, pesando-os, valorizando-os, até que eu possa fazer as minhas próprias conclusões. E decisões. E não me habitam apenas pessoas. Também tenho filmes cá por dentro e músicas e fotos e extratos de livros que ando a ler ou que já li e que volta e meia vou buscar para poder comparar, para poder escolher, para poder decidir sobre este ou aquele assunto, importante ou secundário, relevante ou supérfluo, que isso não importa para nada.

Nada do que faço ou digo ou leio ou vejo é em vão. Nada. Absolutamente nada! Nenhuma atitude, nenhuma conversa, nenhum alheamento, voluntário ou não, nenhum silêncio, nenhuma palavra, nada, absolutamente nada, deixa de te, em determinada altura, relevância para mim. Nem que seja por comparação. Pode não ser agora, pode não ser sequer daqui a um ano, posso recordar-me onde li, onde  vi, onde ouvi, ou posso ignorar ou esquecer, mas o que é facto é que nada, absolutamente nada do que me acontece é irrelevante. E do que eu faço acontecer.

Em todos os dias de reflexão tenho diante de mim miúdos que não estão nem aí. Não querem saber das coisas de Deus, nem da fé, muito menos da Igreja, não querem saber de histórias da Bíblia nem da sua importância nas nossas vidas, não conseguem ver nas nossas discussões nada de útil ou minimamente importante para as suas vidas. Quando, como sempre acontece, entramos na capela, fecham-se no seu silêncio - que enganosamente temos o cuidado de interpretar como de respeito para que a sua indiferença não nos incomode - e desejam arduamente que aquele tempo acabe para que possam voltar para as suas brincadeiras, para as suas palermices, para a programação da noite dessa sexta feira, que isso é o que verdadeiramente importa. Houve um tempo em que isso me incomodou. Houve um tempo em que eu exigia atenção, e participação, e abertura, e estabelecia um "diálogo", arrancado a ferros, que, de certa forma, me justificasse. E o problema era esse. Justamente esse. Eu procurava era a justificação de mim, do meu papel, da minha importância naquele dia de reflexão.

Aprendi a semear. Apenas isso. Tento semear. Vou mondando a terra, ao longo do dia, uma erva aqui, uma pedra acolá, vou escutando, atentamente, o que um e outro dizem, a forma como dizem, a forma como conversam e brincam e jogam bola ou às cartas, vou brincando eu também, com eles, mondando a terra, lentamente. E lançando a semente. Não me preocupo já com vê-la crescer. Acredito que outros o hão de fazer, noutras circunstâncias, noutras vidas, quando as verdadeiras questões chegarem e eles se recordarem, não de mim, não daquele dia de reflexão, mas que algures, num qualquer dia, alguém que nem se recordam lhes falou numa samaritana e num encontro com Jesus num poço e da transformação que aí aconteceu. E nessa altura, sem o saberem, sem sequer suspeitarem, caminharemos juntos.

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