20141229


Têm sido tempos especiais, estes. Como habitualmente, ponho a minha casa em ordem, as minhas coisas nos sítios certos, reorganizo-me, num descanso operante que me faz muito bem. Durmo até ligeiramente mais tarde, passeio muito, converso muito, namoro muito e restauro as minhas forças. Não sou nada de ficar sem fazer nada mas sou muito de fazer com calma, saboreando os dias e as noites, usufruindo do tempo que, em alturas laborais, me foge por entre os dedos.
Estes dias têm servido também para reencontrarmos todos o equilíbrio familiar. Os miúdos estão a estudar para os exames mas já nos vemos todos os dias, já conversamos todos os dias, já comemos juntos todos os dias. Como em tempo normal estamos sempre mergulhados em alguma coisa, neste tempo, pelo menos, reocupamos o nosso lugar no sofá sob as mantas que nos aquecem o corpo, saboreando a mútua companhia que nos aquece a alma. Ainda por cima, os dias têm estado lindos e frios, como tanto gostamos, e ainda no outro dia fomos até ao Douro vinhateiro, num passeio que nos deliciou e encheu as medidas.

20141219


Ontem, quando nos despedimos, disse.lhe: vê se fazes Natal. Sei bem o que estava a dizer, porque sei bem que uma grande parte do Natal é, justamente, feita por nós.

Quando era miúdo adorava este tempo. Na altura vivia bem no centro da cidade e testemunhava, in loco, a azáfama que a todos invadia. Na altura não havia shoppings mas as ruas da baixa estavam sempre cheias de música, iluminação e pessoas. Santa Catarina, 31 de Janeiro, a Avenida, o Bolhão, tinham este cheiro característico, esta alegria tão grande e tão contagiante. A ausência dos centros comerciais fazia com que toos se concentrassem nos mesmo sítios para fazer compras e estas coisas são contagiantes, quantas mais pessoas, mais alegria, quanta mais alegria, mais pessoas. Lembro-me de um ano em que, pouco antes do Natal, tinha medo de sair à rua porque poderia ser atropelado e já não teria Natal. Este medo irracional apenas me voltou a acontecer por duas outras vezes, era já adulto: nas vésperas do meu casamento e nas vésperas de ser pai pela primeira vez. Era assim que eu vivia o Natal, intensamente, alegremente, contagiosamente.

Sei hoje que não era o Natal que eu vivia, mas o folclore que anda à volta dele. Hoje é tudo muito mais calmo, mais sereno, mas mais verdadeiro. Claro que lá em casa nos deixamos contagiar pelos presentes, pela música, pelos filmes. Mas agora o Natal, lá em casa, tem muito mais a ver com pessoas. Hoje chegam os miúdos da Irlanda, e se calhar bem, os lisboetas também chegarão daqui uns dias, e lá em casa, como nos bons tempos, seremos cerca de vinte, apertadinhos mas muito felizes, à volta daquela mesa. Antecipamos todos a azáfama da cozinha, faz bolo, tira bolo, este queimou, o pudim não ficou como queria, põe mesa e tira mesa, não cabemos todos, como havemos de fazer, e a música a tocar e todos a falar ao mesmo tempo, e traz o vinho e o delicioso molho que faço nesta noite e depois não me deixa dormir, eia! já chegaram as batatinhas (está tão bom, vó), e as sobremesas a seguir e lá temos nós que ir à Missa do Galo - hoje não me apetecia nada (nunca apetece nada mas depois sabe tão bem!) - e a missa do dia de Natal com todos roucos e ensonados e o farrapo velho do almoço do dia de Natal (esperamos por ele com tanta alegria como pelo Menino) e bora todos para o sofá para ver os primeiros cinco minutos do filme antes de cairmos para o lado como tordos.

Acredito que chegamos a um ponto em que se nos tirassem os presentes não mudaria nada doq eu tanto gostamos do Natal. Bom mesmo é estarmos todos lá em casa, a confusão, a alegria, a Missa do Galo, o almoço do dia seguinte, que dura horas, aquela tarde em que estamos todos juntos a conversar durante imenso tempo. Isso sim, é o nosso Natal. Ainda para mais este ano teremos Mesa de São Pedro, no almoço de 24, e sentiremos a entrega de uma forma ainda mais especial.
Sei bem que uma grande parte do Natal é justamente feita por nós, Não por nossa causa, mas por causa do nosso Deus que, por amor, quis confiar-se-nos ao ponto de se colocar, inteiramente, à nossa mercê. Perante um Deus assim, a nossa única resposta deve ser tentar imitá-lo e colocar-nos a nós próprios, a mercê dos outros. A começar pelos nossos, que são, muitas vezes, quem nos gera mais medos e desconfianças. Acredito que só assim faremos Natal.



20141215


Não gosto nada da saudade. Seja do que for. Seja de quem for. Numa situação ideal a saudade não existiria: estaria sempre com quem quero estar, na situação em que quero estar, numa renovação constante... e irreal. A saudade faz-me ver o que não está lá, faz-me reler uma e outra vez a mesma coisa, faz-me reviver a mesma situação na ilusória tentativa de voltar, como se não tivesse acontecido nada entre este hiato de tempo. Ainda que regressasse com as mesmas pessoas ao mesmo lugar, era impossível que voltasse a ser a mesma coisa e o mais provável é que fosse tão diferente que seria de certa forma penoso. Provavelmente o melhor que teríamos a fazer seria desligarmo-nos do que aconteceu e viver o que fosse acontecendo.
E no entanto...
Volta e meia bate uma saudade imensa! E contra essa saudade, que vem do fundo mais fundo, não há racionalidade que aguente. Bem me digo que não vale a pena, que o futuro é o caminho, que as escolhas vão sendo progressivamente feitas, no sítio e no lugar onde têm que ser feitas, e que são justamente as escolhas que nos definem e nos diferenciam uns dos outros, mas tem alturas em que a racionalidade não me adianta absolutamente nada, em que é absolutamente impotente.
Ainda ao menos se a lua não aparecesse!

20141211


Assim que acabou a eucaristia, arrumei as minhas coisas e sentei-me. Ou melhor, recolhi-me em ti. Teria gostado de sentir que me saíra um peso dos ombros mas não é verdade. Doem-me os ombros, assim como me dói o corpo todo. Têm sido umas semanas loucas, estas duas, e eu já não tenho vinte anos, e estava a precisar de me sentar para estar contigo, para conversar contigo, eu que tenho estado por aqui tanto tempo mas não tenho tido esse tempo para me sentar e conversarmos. Eu sei que me esperas sempre, sei que nunca chego tarde, sei que tu, muito melhor que eu, sabes como corro e em busca do que corro, tantas vezes feito barata tonta, sem nunca sair do lugar. Sei que não teria que te dizer nada, nem pensar nada, nem explicar nada, que me bastaria estar, ali, sentado, para ti. Mas acho sempre que precisava de o dizer. Que a questão não é, nunca foi, se tu me esperas, mas se eu me dou conta que tu me esperas. Não é se tu tens mais que fazer, com um mundo inteiro para cuidar, mas se eu te coloco na minha lista de prioridades. Se eu te coloco na minha agenda "quinta-feira, 11 de dezembro, 11:15, sentar." Não o faço, sabe-lo bem, Nunca o fiz. Assim como nunca coloquei "hoje, falar com o meu filho" ou "hoje, falar com a Belita" ou "hoje, encontrar-me no terraço com a lua ." Não o faço. A agenda é para aquilo que é passageiro, que não faz parte do que sou mas do que quero fazer, do que não me posso esquecer, do que é esquecido se não for apontado, e recordado, uma e outra vez. Mas tu não és assim. Tu estás. Sempre. Estás. Quando eu corro, quando me esforço, quando me empenho, quando tenho eu apelar à bondade daqueles que comigo trabalham e levam com as minhas falhas, quando levo eu com as falhas dos outros, quando descanso, quando me recolho, quando caminho, quando faço e penso e sinto tudo o que faço e penso e sinto, tu estás.
Assim que acabei de arrumar as minhas coisas recolhi-me em ti. Esperei que a cabeça serenasse, que a minha vida desse lugar à vida que tenho em ti, à vida que fazes em mim, e não disse nada. Não haveria nada que te pudesse dizer que tu não o soubesses já. Por isso recolhi-me em ti. Apenas isso. Recolhi-me em ti. E soube-me mesmo bem!

20141210


"Quando a Igreja se fecha em si mesma, talvez esteja bem organizada, com um organigrama perfeito, tudo a postos, tudo limpo, mas falta alegria, falta festa, falta paz, e assim torna-se uma Igreja sem esperança, ansiosa, triste, uma Igreja que tem mais de solteirona do que de mãe, e esta Igreja não serve, é uma Igreja de museu», afirmou o papa, citado pela Rádio Vaticano."

Li isto e pensei imediatamente em nós. Em como sempre foi um desejo profundíssimo teu ter uma casa perfeita, sempre arrumadinha, sempre limpinha, com todas as coisas no sítio, como aquelas que víamos nas revistas. Imediatamente me vieram à cabeça as tuas infindáveis e infrutíferas lutas para que os brinquedos não ficassem espalhados pela sala, que os jornais e revistas estivessem devidamente dobradinhos e no seu lugar, que os imensos filmes dos filhos estivessem convenientemente arrumados e escondidos de quem nos visitaria. Lembrei-me logo dos teus fins de semana passados na vã tentativa de por em ordem uma casa cheia de miúdos, de brinquedos e brincadeiras, de vida. Essa foi uma daquelas coisas onde tiveste que ceder. A custo, a muito custo, foste percebendo que muito mais importante que uma casa arrumadinha é uma casa cheia de vida.
Ainda hoje a nossa casa é um fiel espelho de nós próprios. É o nosso lugar. Nenhum de nós lá passa muito tempo, atarefados que andamos todos entre trabalho e projetos e paróquia e estudos e desporto e música e tudo o que aparecer à frente porque nós sempre fomos assim e transmitimos essa forma de estar na vida aos nossos filhos. Não são já muitas as vezes em que estamos todos juntos a ver um filme, ou a tomar um chazinho quente, invariavelmente preparado por ti. Quase sempre pelo menos um de nós está de passagem, vem de algum lado e repousa um pouco antes de partir para outro lado. Por isso temos sempre casacos em cima do sofá ou pendurados nas cadeiras, temos sempre algum calçado fora do sítio, papéis e livros espalhados, e sacos, muitos sacos, sejam mochilas ou malas ou carteiras ou simplesmente sacos, que estão sempre pela sala de jantar.
É assim, a nossa casa. Graças a Deus! Não é tanto um sítio para estarmos mas para retemperarmos forças. Ali, todos sabemos sempre com o que podemos contar, com quem podemos contar. Sabemos que há sempre uma altíssima probabilidade de conversar e rir e discutir e cantar e até dançar, sabemos que nos dias frios temos sempre o nosso sofá gasto, cheio de mantas por cima, cheio de covas por baixo, mas que vai resistindo heroicamente, orgulhosamente assumindo a responsabilidade de levar com pelo menos sete pessoas em cima quase todos os dias. Ali, todos sabemos que temos sempre alguém com quem conversar, com quem desabafar, com quem aferir até que ponto a asneira foi grossa, sabendo que provavelmente nos irá dar na cabeça, nos irá contrariar, que não nos dirá o ámen que tanto gostaríamos de ouvir, sabendo também que se o quiséssemos, verdadeiramente, ouvir, certamente conversaríamos noutro lugar, com alguém que nos amasse um pouquinho menos.
Percebo muito bem o Papa Francisco. A nossa casa é tudo menos bem organizada, com um organigrama perfeito, sempre limpa, sempre perfeita. Mas tem muitas vezes alegria e festa e, nos raros momentos em os astros se conjugam para que o maralhal esteja fora de casa, até consegue ter alguma paz.
Deus seja louvado!

20141209


Educar o olhar é fundamental.
Estava na hora. Tínhamos tudo combinado, tudo preparado, tudo devidamente sensibilizado. E no entanto, andei pelos corredores, pela sala dos professores, e senti uma certa tristeza. Havia ainda quem passasse completamente ao lado. Quem escolhesse ficara  trabalhar, quem escolhesse não deixar atrasar a matéria para se poder dar a oportunidade de parar e rezar durante 3 minutos. Nada de especial, pensei. Mas afinal não. É especial. Particularmente quando me apercebi que, com a sua atitude, afectava a sua turma, que se veria assim impossibilitada de participar no momento de oração que deveria ser de todos. E fiquei mais triste ainda. Como será possível invertermos as coisas? Como será possível, sem imposições, sem braços de ferro, levar as pessoas a tomarem consciência da importância de estarmos juntos, de rezarmos juntos, de ao menos pararmos juntos para nos darmos tempo, para nos darmos conta da existência uns dos outros? Aprecio muito a liberdade que Deus nos dá para sermos nós próprios a tomarmos as nossas decisões, mas às vezes é difícil!
Ao fundo do corredor ouvi a voz off da oração. Desci as escadas e deixei-me ficar por lá, no patamar. Afinal não estava só. Afinal tinha havido alguém que escolheu parar. Afinal tinha havido alguém que se tinha dado ao trabalho de percorrer alguns metros, descer as escadas, para ganhar esses 3 minutos. Afinal há esperança! Fiquei por lá, feliz, a escutar o que faltava da oração, em profunda sintonia com os que estavam a poucos metros de mim, na sala dos professores, que se tinham deixado ficar a trabalhar. Talvez um dia percebam que estão a deixar de lado a melhor parte. E rezei em boa companhia, e louvei a Deus. Por ter havido quem escolhesse estar com Ele.

20141203


Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus nos fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir.
No espaço de duas semanas conversei com duas pessoas absolutamente distintas do meu passado. Do que me trouxe até aqui, para o bem e para o mal, onde eu estou, hoje, aqui e agora. Um percurso acidentado, não tão acidentado, é certo, como o de alguns miúdos dos bairros com quem trabalho todos os dias, mas muito menos linear que o da maioria das pessoas, miúdas e graúdas, com quem trabalho na outra metade dos meus dias. O que me faz estar permanentemente num limbo: nem sou bem uns, nem sou bem outros. Sou uma coisa assim, mais ou menos, que ora tem um pé num lado, ora tem um pé noutro lado. Um pé dentro e um pé fora.
Descobri há pouco tempo que esse limbo tem sido uma permanente na minha vida. E que, quando não o foi, era porque a máscara que eu usava tinha mais a ver com o que eu queria ser, a qualquer custo, que com o que eu era. Um pouco como se calçasse uns sapatos que não me pertenciam, que de certa forma me elevavam aos olhos alheios, mas que todos os dias, no silêncio do meu recolhimento, sabia que não me pertenciam.
Toda a minha vida de solteiro vivi num bairro, embora numa grande parte desse tempo, não vivesse numa das casas do bairro. O bairro não era, assim, físico mas interior, todos aqueles que me eram importantes eram do bairro. E eu, sendo orgulhosamente um deles, nunca me dei por satisfeito por ser um deles. Toda a minha vida senti uma enorme pulsão de ser mais, de saber mais, uma insatisfação permanente que me fez andar sempre à procura não sei bem de quê, que me foi impulsionando a conhecer um outro tipo de pessoas, que me foram catapultando para além dos meus limites. Um pé dentro, um pé fora.
Descobri a minha fé e uma outra comunidade, completamente diferente daquela onde vivera toda a minha vida. Novas formas de ser, novas partilhas, imensas descobertas, aos quinze anos, quando tinha já muito bairro e nenhuma catequese. Não estava formatado, por isso, nem deixava que me formatassem com facilidade. Foi uma descoberta de Jesus que teve muito de encanto e muito de questionamento, muito de confronto entre o que sentia, o que vivia e o que testemunhava. Foi, por isso, uma adesão muito pessoal e profunda, muito solitária, embora muito mergulhado na experiência de uma comunidade pequena e fechada como era aquela onde me foi apresentada a dimensão da fé. Muito contestatário, armado em puto do bairro com todas as asneiras que isso implica, acabei por ter que mudar de ares. Um pé dentro, um pé fora.
Novos ares permitiram-me conhecer a minha-mais-que-tudo e ganhar uma outra dimensão pessoal. Já adulto assentei, finamente, as bases da minha vida: fé e família. Ainda hoje, excetuando talvez o FCP (que é visceral), tudo o que penso e faço de significativo anda à volta disto. Não há filme, não há notícia, não há acontecimento, não há silêncio que não seja preenchido com uma destas dimensões. É única coisa na qual sou inteiro, na qual tenho ambos os pés no mesmo sítio.
Fui passando por vária profissões, sempre com um pé dentro e um pé fora. Nunca fui apenas mais um e nunca fui nada de especial, no longo percurso que me trouxe até aqui. Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus me fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir. Tudo o que fui fazendo, tudo o que fui sendo, tudo o que fui descobrindo, encontra, hoje, a sua plena aplicação. Num sítio e noutro, completamente diferentes entre si. Num sítio e noutro, tão parecidos no que é essencial. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei que estar com um pé dentro e um pé fora não é necessariamente sinal de menoridade. Que não tem necessariamente que me faltar sempre um danoninho para eu poder ser o que quer que seja. Que tenho os meus próprios tamanquinhos e me posso sentir realizado neles. Que, se for chamado a unir duas margens de um rio tenho que ter, necessariamente, os pés em lugares diferentes. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei porque motivo sempre tive um pé dentro e um pé fora.

20141128


Esta foi uma semana daquelas. O único dia em que jantamos juntos foi no já longínquo princípio da semana e não nos temos visto mais que por alguns momentos. Tenho andado a correr como um doido, reuniões aqui, ensaios ali, preparações em todo o lado. Como se não bastasse, partiram-me o vidro do carro e levaram-me o tablet. Provavelmente, quem o fez é amigo ou conhecido ou vizinho daqueles que estavam comigo na faculdade de Direito a assistir a uma palestra sobre os excluídos. Ironias! E no entanto...
Hoje, quem me visse na minha cada vez mais preciosa caminhada matinal junto ao mar, pensaria que sou (ainda mais) maluco, tal o sorriso. Esquisito, não?
Digo muitas vezes aos meus miúdos que conhecer Jesus rouba-nos desculpas. Deixamos de poder alegar desconhecimento ou distração, deixamos de poder olhar para o lado e ficar de consciência tranquila, deixamos de ter a consciência tranquila em qualquer dos casos, porque é sempre muito mais o que podemos fazer quando comparado com o que realmente fazemos. Deixamos de poder dizer que não sabíamos, ou que não sabíamos como fazer, que nunca nos disseram que o sermos todos irmãos é muito mais que uma frase bonita. Deixamos de nos sentir donos do que quer que seja porque sabemos que tudo nos foi dado e foi-nos dado para os outros. Deixamos até de sermos apenas nossos porque até a vida nos foi dada para que possamos ser para os outros. Por isso, conhecer Jesus não é conhecer um amiguinho bom que nos garante o arco-íris e o pôr-do-sol e o luar sempre bonito com doces harmonias tocadas por anjos, mas descobrir a inquietação que apenas encontra a serenidade quando conseguimos ser nos outros.
Mas não é apenas para isso que Jesus nos rouba desculpas. Conhecendo-o, deixando que ele permaneça na minha vida, querendo-o a meu lado, deixo também de ter desculpas para ser infeliz. Aprendo que as pessoas são sempre, mas sempre, infinitamente mais importantes que as coisas, aprendo a olhar para quem me acompanha e me desafia a ser melhor e a dar o que nunca julguei ter (essa treta de não se poder dar o que não se tem é isso mesmo: treta), aprendo a aprender de quem menos esperava aprender, aprendo a dar valor ao arco-íris, ao pôr-do-sol e ao luar como mais um risco numa tela que está plena de vida vinda da entrega e da descoberta do próprio Jesus nos outros.
Por isso esta semana não conseguiu roubar-me o sorriso. Enquanto caminhava pensava apenas em como tenho mais que motivos para louvar a Deus. Pensava nas deliciosas partilhas e descobertas desta semana, com amigos que apenas por acaso são colegas de trabalho, com miúdos que apenas por acaso são mais novos que eu, com pretéritos rufias em potência que apenas por acaso escolheram estar comigo e com a minha mais-que.tudo numa aprendizagem quando poderiam estar com os que se entreteram a mexer no que estava quieto. Pensava justamente na minha mais-que-tudo e como ansiava que ela estivesse ali, comigo, naquela caminhada matinal, como tantas vezes fazemos, e já agora, como gostava que os nosso filhos também lá estivessem, e fazia planos para que, talvez amanhã, o possamos fazer juntos. Pensava no tempo que não tenho e no tempo que não temos todos lá em casa porque todos escolhemos arranjar tempo para os outros, e pensava em como não termos tido tempo para nós pode não ser assim tão mau... desde que não abusemos.
Não, esta semana não me roubou o sorriso. Pelo contrário, permitiu que ele fosse mais sincero.
Job, lembras-te?

20141125


Foi mais ou menos na mesma altura, teria cerca de 14 anos, que duas leituras me marcaram e desde então me fizeram companhia: o livro de Job e o Cântico Negro. Na altura foram mais sentidas que entendidas, até porque tanto num caso como noutro, tinham muito de incompreensivelmente belo mas imensamente sedutor, tocando numa interioridade que, naquela fase da vida, estava muito longe de sequer imaginar que existia. Do Cântico Negro, que ouvi a primeira vez sublimemente recitado pelo meu extraordinário professor de Português do 9º ano - e que nunca mais ouvi da mesma maneira! - retive toda a raiva incontida, toda a agressividade, todo o desdém que decorre da inevitabilidade de se percorrer um caminho, que é o único, apesar de todas as dúvidas, de todas as contrariedades, de todos os medos, de todos os bons conselhos, de todos os dedos apontados. De Job, aprendi a confiança, até ao limite, contra todas as evidências, contra todos os dedos apontados, contra todos os bons conselhos, num Deus que me ama e que apenas quer o melhor de mim, porque apenas no melhor de mim encontro alguma paz. Entender a obstinação de um ajudou-me a perceber a minha própria obstinação; entender a tranquilidade do outro, ajudou-me a abandonar-me confiadamente, sobretudo quando já não tinha forças para mais. Um ajuda-me a perceber o que vou sentindo; outro ajuda-me a domar o que vou sentindo. Um e outro, em determinadas alturas, digladiam entre si, por vezes num tremendo rebuliço, que ecoa incessantemente e me rouba o silêncio. Noutras, porém, lá se conseguem entender, percebendo que há lugar para ambos, desde que sejam suficientemente cavalheiros para cederem a passagem conforme as necessidades. Esses são os meus dias bons, aqueles em que me percebo, em que sinto que por vezes até faço sentido.

20141124


foi imediato. vi esta imagem e pensei logo em quelimane, naquela casa onde tantas vezes foram buscar uma cadeira para que eu me pudesse sentar e conversar. ignorante, recusei-a quase sempre, não percebendo que naquela cultura a conversa de coisas importantes faz-se sentado, em sinal de respeito, tempo e disponibilidade. soube-o depois, já em maputo, demasiado tarde, digo eu. quando lá cheguei levava uma íntima arrogância no olhar e nos sentidos que nem um ano de formação conseguiu impedir. em abono da verdade, creio que nem meia dúzia de anos o conseguiriam, porque é preciso estar lá, viver com eles, sentir-lhes o cheiro, brincar e conversar com eles, para termos uma pálida ideia do que vamos lá fazer. e ainda assim, essa ideia é muito discutível, porque sabemos sempre que iremos voltar, que podemos voltar, que aquele não é o nosso lugar, que é uma questão de suster a respiração e esperar que o tempo passe. enquanto lá estive, apesar de toda a boa vontade, apesar das horas de sono perturbadas por aqueles miúdos, apesar de toda a entrega, extensiva a todos, eu sabia que haveria de voltar, que na noite escura os meus pensamentos e os meus sonhos estavam deste lado do hemisfério. apenas depois de voltar percebi muito do que lá vivi. num processo que ainda não está fechado, que ainda continua, e nem posso assegurar que alguma vez esteja absolutamente definitivo. vejo um filme sobre áfrica e sinto-lhe o cheiro a terra, a confusão, os esgotos a correr a céu aberto, e dou por mim a desejar aquele silêncio, aquele espaço, aquele luar. tenho sempre a ideia que lá hei de voltar, que a vida mo há de proporcionar e que, quando isso acontecer, receberei essa forma de vida de braços abertos. sim, porque a voltar será como forma de vida e não já de passagem. armado em visita.

20141122


"O próximo é aquele que cuida das feridas". Surgiu assim, do aparentemente nada, e fez-se luz: "o próximo é aquele que cuida das feridas". No clique que se deu cá por dentro, liguei instantaneamente ao que tenho sido nestes últimos tempos. E percebi imediatamente que tenho dado uma série de tiros ao lado. "porquê?" Apesar de não me ter em grande conta em muitas coisas, sei que penso a vida, sei que me preocupo em olhar e ver o que se passa à minha volta, em confrontar o que vou dizendo e sentindo e fazendo com aquilo que me é pedido que diga, sinta e faça. Sei, por isso, que nestes últimos tempos havia sempre algumas pontas soltas que me dificultavam a tranquilidade e me impediam o sossego. Olhava, olhava e voltava a olhar, e não conseguia encontrar o motivo. Só me podia ser externo, por isso. "O próximo é aquele que cuida das feridas." Não era externo. Era uma questão de olhar, de direcionar o meu olhar, de ver o que deveria ver e não aquilo que desejava ver. era uma questão de me deixar interpelar e mover por uma realidade que sei que existe, está lá, mas que eu preferia mil vezes que não existisse. Porque sei o que vai implicar. Agora que vi, efetivamente, acabaram-se as desculpas e lá vou eu ter que mergulhar e arranjar forma de colar a sarna que, inevitavelmente, aí vem. Apenas porque descobri que eu não estava a curar feridas, estava a abrir feridas, não estava a fazer parte da solução mas do problema, estava refastelado, comodamente sentado no que queria ver e sentir, em vez de abrir os olhos para o que se passava à minha volta.

20141120


Creio que ninguém me consegue fazer desejar recolher como Damien Rice.
Tem tudo a ver com inverno, com chuva miudinha, com uma boa conversa, uma lareira acesa, e o suave crepitar da madeira, e o suave o incenso que liberta, uma boa garrafa de vinho, uns cobertores e tempo, muito tempo, para que a conversa possa ser devidamente saboreada, degustada, como se de um bom Porto se tratasse.
Tem tudo a ver com regressar a casa, à nossa casa, onde nos sentimos aconchegados e eternos, protegidos de tudo aquilo que nos assalta a alma e perturba os dias. Uma casa que nada tem a ver com paredes e janelas e muros mas onde tudo são recantos, nossos, que falam a nossa linguagem, sussurrada, suspirada, transpirada por tudo o que vivemos e trocamos e conversamos uma e outra vez com o mesmo gozo e a mesma surpresa da primeira vez, porque para quem se ama como nos amamos qualquer vez é a primeira vez.
Tem tudo a ver com a noite, com o escuro da noite, aqui e ali apenas entrecortado com a luz refletida de uma lua que recorda, silenciosa, distante, o testemunho doutras paragens, muito mais distantes do corpo que da alma, que essa por vezes continua lá, autonomamente, (in)conscienciosamente, à espera que ambos se reencontrem e voltem a experimentar a liberdade que apenas a (in)consciência permite experimentar.
Tem tudo a ver com saudade, ser sermos quem somos, de voltarmos a ser quem éramos e de desejar sermos muito mais do que então poderíamos sequer imaginar. Uma saudade feita, por isso, de memórias e de desejos, de anseios e sonhos, de vontades não confirmadas mas sempre, sempre, desejadas.
Creio que ninguém me consegue fazer desejar recolher como Damien Rice. Tem tudo a ver connosco!
 

20141118


Foi a segunda vez que o ouvi. E gostei do que ouvi. Embora não me deslumbrasse, que eu ando nestas coisas há tempo suficiente para não me deixar deslumbrar facilmente. Tem uma visão nova, desempoeirada, que questiona as coisas da fé e da Igreja, e isso faz-me sempre bem. Porque questionar a fé e a Igreja é questionar-me a mim próprio e aquilo em que acredito, e questionar-me a mim próprio é contribuir para construir alicerces mais sólidos e profundos. Até aí tudo bem. A questão foi quando eu lhe pedi "por acaso não estará disponível para...". Vi logo nos seus olhos, na maneira como os desviava dos meus, no contraste da sua linguagem corporal com a que evidenciara enquanto proferia a sua palestra, o que a sua boca não conseguiu responder. Disse-me que sim quando eu lia distintamente que não. Tudo bem. Também eu sou muitas vezes encostado à parede, preso na armadilha que as minhas próprias palavras cuidadosamente me armaram. Nada de novo, portanto. Ontem, quando tentei confirmar o seu compromisso, disse que afinal não poderia ser. Tudo bem, na mesma. Também eu o faço algumas vezes - cada vez menos, espero, ou pelo menos, luto muito para que assim seja - também eu me refugio numa qualquer eventualidade que mais não é que uma desculpa que eu poderia contornar se assim o quisesse verdadeiramente. Vamos ao que verdadeiramente importa, à lição do dia para o sr. José: seja o teu falar sim, sim, não, não. Não te ponhas com demasiadas expectativas nem deixes que as ganhem em relação a ti. O que puderes fazer, faz. O que não puderes, faz na mesma se for mesmo importante. Mas não penses que podes tudo. Nem que a vontade pode tudo. E quando não pode - e tu sabes sempre quando não pode - di-lo na cara de quem conta contigo, ainda que vejas a deceção nos seus olhos. Custa, claro que custa, mas custa menos que deixá-la com as calças na mão. Como eu estou. Aprende, José, que eu não duro sempre!


Dia mais complicado! Passei o fim de semana alegre e confiante: tinha resolvido dois berbicachos aos quais faltava apenas a confirmação. Afinal, o primeiro apanhou uma gripe e deixou-me na mão, e ainda estou à espera que o segundo diga alguma coisa. Há dias assim, eu sei, e normalmente estou preparado para eles. E devia saber que eles nunca vêm sós. No ER a coisa hoje foi caótica: não havia monitores, os meus miúdos estavam todos, e todos impertinentes, e passamos hora e meia em que mais parecíamos protagonistas dos Gladiadores, comigo a tentar dominar as feras e elas sistematicamente a levarem a melhor. Por momentos pareciam hienas, as feras, porque se riam na minha cara ;-).

A experiência tem destas benesses. Já passei por muito, por muitas alturas de verdadeiro desespero, e aprendi a não julgar o tempo apenas pelo momento. Bem sei que as coisas doem é no momento, mas também sei como é importante conseguir manter a perspetiva correta dos problemas e aprendi, à força de cabeçada, que nem nunca é tão mau como quando tudo corre mal, nem nunca é tão como como quando tudo corre bem. Aprendi que amanhã é sempre outro dia e que é importante aproveitar o regresso a casa para serenar e voltar a por a vida no lugar a que pertence.
E como é bom regressar a casa!

20141116


Ontem fui a um museu. Em Fátima. Ao qual espero não voltar. E ao qual espero que os meus filhos não vão, O que é esquisito, confesso.
Este museu estava carregado daquelas coisas da Igreja que eu preferia que a minha Igreja não tivesse. Mantos e coroas, ouro e diamantes, bordados caríssimos, cálices de prata, tudo aquilo que não nos acrescenta coisa alguma, antes tira, dando razão a todos quantos não percebem como somos capazes de pregar tão no vazio. Eu sei bem que muitas daquelas coisas foram oferecidas, mas é justamente isso o que me causa confusão. Que um padre, bispo ou um papa sinta qualquer necessidade de ter um cálice de prata ou que, como já um deles me disse, o compre para justificar una qualquer necessidade de dignidade. Disseram-me já que os paramentos têm que conferir dignidade, assim como o cálice a patena, mas não me conseguiram explicar porque um cálice de prata é mais digno que o cálice do filho do carpinteiro.
Da primeira vez que cheguei a Santiago depois de fazer o caminho era Domingo de Ramos e às tantas vejo a chegar uma multidão a cantar e com ramos na mão. À frente dela ia creio que o bispo e precedia-o umas palmas amarelas, que, se não eram, pelo menos simbolizavam o ouro. Pensei logo no acolhimento que foi feito a Jesus, no jumento e na multidão, e no que se seguiu. Tive a clara noção, naquela altura, que se o que viesse a seguir àquele domingo de manhã fosse semelhante ao que aconteceu há dois mil anos, não haveria ouro ou prata que convencesse quem quer que seja a liderar aquela multidão. Mas também quis pensar que, provavelmente, aquele mesmo bispo a lideraria, como tantos o fazem, todos os dias, sem que seja preciso ouro ou prata. Então, porquê todo aquele aparato? Porque teimamos nós dar contra testemunho e não temos a coragem de nos voltarmos ao essencial? Porque continuamos nós a ser tão bons a dar razões para não acreditar?
Espero mesmo que os meus filhos não cheguem a visitar aquele museu. Porque, se o fizerem, lá terei eu que tentar defender o indefensável.

20141113



"Tu ouves-te quando me dizes o que dizes?"

não. nem sempre. e essa é apenas parte da questão. porque quando a guarda baixa, nem sempre o que me sai da boca passou pelos devidos lugares. não foi devidamente processado, sai diretamente do coração, ou da alma, ou, sei lá, de onde saem aquelas coisas que sentimos, e não passou pela cabeça, pelo cérebro, pela razão, esse garante que o que te digo hoje dir-to-ei da mesma forma amanhã. ou depois.
não. nem sempre ouço o que digo. sei que ressoa sempre, sei que fica sempre, cá por dentro, a matutar, a maturar, e que muitas vezes descubro-lhe apenas o sentido muito tempo depois de o ter dito. e que por vezes até gosto do que disse. e que noutras gostaria de não o ter dito mas é tarde demais. é sempre tarde demais quando me descubro no reflexo que projetei em ti. seria muito melhor, e mais fácil, e mais seguro, que reencontrasse o meu reflexo apenas depois de passado pelo crivo do que deveria ser. mas tu tens isso. pões-me à vontade, subtrais o medo e deixas que me instale. ajeitas-me as almofadas, se for preciso, e às tantas fecho os olhos e deixo-me ir. o conforto tem destas coisas. a confiança também. faz-me sentir seguro, arrojado, deixa que eu vá, simplesmente, sem me sentir arrastado ou questionado mas tão só aceite. assim. tal como sou.
a exuberância do silêncio contrapõe-se apenas à frugalidade dos gestos, contidos, discretos, atreitos aos mal-entendidos que ambos dispensamos. mal-entendido por mal-entendido, preferimos o da palavra, que ecoa, que permanece, nos seus múltiplos sentidos e (in)convenientes leituras. cedo descobrimos que não há intimidade maior que a do silêncio que confere sentido à palavra. tudo o resto são manifestações, confirmações que não precisamos ter quando o mais importante já foi dito. e sentido.

20141112





Sempre que o tempo e o trabalho o permitem, tenho começado os meus dias caminhando na Foz. As manhãs frias, a omnipresença das nuvens carregadas de água e o vento frio, curiosamente, potenciam a minha reflexão e consequente oração matinal, como se um ambiente belo mas agreste fosse necessário para me repensar, como contraponto aos dias solheiros e quentes, que me despertam a enorme gratidão a um Deus que me ama.

"Devias ter tido mais cuidado. Foste um bocado rude, hoje, na reunião."

Desde que nos conhecemos que é assim. O meu grilo falante, sempre atento, sempre cuidadoso, sempre preocupado em que mostre apenas o melhor de mim e guarde aquilo que, francamente, não interessa a ninguém. Volta e meia, quando me descaio, lança-me um daqueles olhares fulminantes e eu sei que acabei de meter água. Por vezes, quando estou mais sereno, acato e tento remediar logo na altura. Outras, no entanto, ando demasiado zangado comigo mesmo para que isso aconteça e continuo, cheio de mim, no meu processo de perda. Porque é disso que se trata, de fazer ganhar ou deixar perder.
É muito esta linguagem tácita, silenciosa, que dispensa as palavras, que tem alicerçado o nosso casamento. Adoramos conversar um com o outro - é, confesso, uma das minhas maiores fontes de confiança em relação ao nosso futuro - mas nem sempre precisamos de o fazer. Um olhar, um silêncio, um esgar, e temos o eco um do outro, ao qual se juntam anos e anos de conversas e discussões e partilhas e caminho construído a dois. Por vezes, na maior das tempestades, somos o único reduto: vemos o que o outro não consegue ver, mergulhado na desesperança e no derrotismo. Desde a altura em que nos descobrimos um, que nos temos e sabemos que nos temos. É uma segurança que se fundamenta na construção de tudo o que tem sido a nossa vida, recheada, como qualquer vida, de pequenos e grandes momentos, alguns dos quais apenas quando colocados sobre o altar encontram o seu sentido.

Há dias em que é mesmo importante que eu comece os dias por caminhar na Foz!

20141110


Tenho andado às voltas com as orações dos Dias de Reflexão.
No início, ingenuamente, acreditei que todos os miúdos que tinha diante de mim sabiam do que eu estava a falar. Afinal, estávamos num colégio católico e eu assumi, à partida, que todos o eram ou que, pelo menos, o eram as suas famílias. Naquela altura - já lá vão mais de meia dúzia de anos - fiquei espantado quando percebi que alguns não tinham qualquer noção das parábolas e do que elas implicam na nossa vida. Rapidamente formulei o meu esquema e o meu discurso e adaptei-me às circunstâncias. Apercebi-me então que o jogo de cintura que os anos todos de catequese juvenil me deram revelaram-se fundamentais. Acredito cada vez mais que não há experiência de vida que, mais cedo ou mais tarde, não tenha a sua utilidade.
Este ano, até porque iniciamos uma nova abordagem, as orações continuam a preocupar-me. Como havemos de chegar àqueles que temos diante de nós. Que volta havemos de dar para não desvirtuar a profundidade e a riqueza da Palavra tornando-a, ao mesmo tempo, relevante para cada um deles? Temos uma comunidade - a turma - temos a partilha da experiência - que ao longo de todo o dia é iluminada pela Palavra e pela imagem - importa agora dar sentido a tudo isso. E pareceu-me que  a melhor forma de o fazer seria justamente colocar tudo isso em cima da mesa. Pegamos em tudo o que ouvimos, naquilo que fomos sentindo, nas (re)descobertas que fomos fazendo ao longo do dia e colocamos em cima daquela mesa - para quem não tem fé - em cima daquele altar, para quem a tem ou anda à procura dela.  E fazemos um pedido: hoje e no futuro, quando chegarem a casa, quando tiverem a vossa família, repitam este gesto, esta atitude, de forma simples: coloquem o vosso dia em cima da mesa do jantar e peçam àqueles que vos rodeiam que também o façam. Acredito que dessa forma se colocarão nas mãos uns dos outros e serão mais felizes. Haverá alturas em que não será fácil, mas descobrirão que o amor é bem mais presente do que suspeitavam. E descobrindo-o, cedo ou tarde descobrirão também que estão bem mais perto de Deus do que suspeitavam.
Nessa altura, a terra estará fértil.

20141106


Sinto-me sempre abençoado quando me apercebo do grito que pode ser na minha vida um acontecimento ou um testemunho aparentemente menor.
Hoje, numa deliciosamente curta conversa com uma das minhas filhas, ela disse-me que não se vê nada numa vida competitiva. Que as suas espectativas vão muito mais no sentido de se empenhar na sua profissão mas conciliá-la com a família que ela tanto deseja, que a aposta numa carreira profissional de sucesso. Ao dizer-me isso revelou-me uma serenidade que me deixa mesmo feliz. E confirmou até que ponto somos parecidos.
Lembro-me sempre da única vez em que comprei um carro novo e algo potente. Ia na autoestrada e, com a estupidez tão tipicamente masculina, pus-me a conduzir depressa apenas porque podia. Às tantas apercebi-me de como estava tenso, - eu que gosto tanto de conduzir, ao ponto de me servir de terapia de relaxamento - reduzi a velocidade para a minha zona de conforto, e usufrui, aí sim, das potencialidades daquele carro.
Como invariavelmente me acontece com coisas nenhumas, esse acontecimento habitou-me durante muito tempo! Recordo-me  de pensar que aquela tinha sido uma das primeiras vezes que deixei de fazer alguma coisa apenas porque podia. Até aí, puto de bairro, apenas o que me era exterior me limitava - a falta de dinheiro, a falta de conhecimento, a falta da educação - mas aquela fora a primeira vez em que eu próprio me tinha imposto um limite. À luz daquela decisão revi alguns dos acontecimentos da minha vida e constatei que por várias vezes, nas várias profissões por onde tinha passado, não me tinha conseguido impor esse mesmo limite. Sempre começara por baixo e sempre fora por aí acima, até cargos cada vez mais próximos do topo. No entanto, sem que na altura me apercebesse, a partir de determinada altura a pressão do sucesso tomava o lugar do gozo no que fazia e daí até ao descalabro era um pequeno passo. Aqueles, poucos, minutos de condução, ensinaram-me mais de mim que outros acontecimentos aparentemente mais relevantes.
Fui aprendendo a não subestimar o impacto das pequenas coisas.
E a dar Graças por elas.

20141103


Uma das minhas maiores lamentações é a minha incapacidade de aprender de uma vez para sempre. Eu ainda gosto de acreditar na minha capacidade de aprender. De estar atento ao que se passa à minha volta e disso tirar as lições necessárias, venham elas de onde vierem, porque a vida ensinou-me que as maiores verdades são-nos oferecidas pelas pessoas e momentos mais inesperados. No entanto, enredado no quotidiano, facilmente me esqueço delas.
No último dia de reflexão que tive com uma turma do 9º ano, a partilha do Bom Samaritano conduziu-nos à questão da não violência. O que levará alguém a não reagir? O que levou Jesus a não se defender das acusações que Lhe levantaram? O que teria levado Gandhi a persistir naquela não violência tão gritantemente silenciosa? E aquela imagem do homem, sozinho, desarmado, diante dos tanques de Tiananmen, permanece na memória de todos nós, os que assistíamos a milhares de quilómetros de distância. 
De todas as filmagens referentes aos campos de extermínio dos judeus a que assisti, as que sempre me inquietaram ao ponto do desespero foram as cenas de multidões de judeus a serem levados para os campos de concertação, como cordeiros, em fila, sem que alguém se revoltasse a sério. Seria cobardia? Seria rendição? Seria ignorância do que os esperava? Como é que alguém, a pretexto seja do que for, permite que aqueles que ama sejam arrastados daquela maneira para o cadafalso? O que se passará na cabeça de alguém para que se permita espezinhar daquela forma?
No dia de reflexão chegamos à conclusão que a não violência é o caminho dos fortes. Daqueles que não se esgotam no imediato, no hoje, aqui e agora, mas que vêm mais longe, ainda que a custo de si próprios. Daqueles que escolhem viver a vida com os olhos postos no futuro, não o do amanhã, mas o outro, o que é eterno, e o que verdadeiramente importa. Daí a serenidade do seu olhar. Porque sabem que estamos todos de passagem.

20141029


Apesar da tentação, raramente caí no erro de enfiar os meus filhos numa redoma. Particularmente naquele período das suas vidas - breve, claro! - em que eles viam os seus pais como super heróis, como seres especiais (espaciais?) que nunca se enganam e raramente têm dúvidas e tudo fazem bem feito. Mais tarde, quando as coisas azedavam, perguntava-me muitas vezes se não faria melhor em esconder as falhas, em fingir que estava tudo bem, temendo sobrecarregá-los com questões que duvidava que eles estivessem preparados para entender. Numa altura em que azedaram mesmo, cometi esse erro. Antes de entrar em casa, vestia o sorriso, fingia que estava tudo e escondia-lhes tudo. A questão é que não se pode varrer para debaixo do tapete durante muito tempo e, como sempre, chegou a altura de sentarmos e conversarmos olhos nos olhos. E, como sempre, fui surpreendido pelo sua enorme capacidade de enfrentar a vida tal como ela é.
Não acredito que os pais e os filhos devam ser os melhores amigos. Não acredito que uns e outros devam contar tudo o que acontece nas suas vidas, com todos os pormenores, como fazemos uns e outros com os nossos amigos. Acredito sim em portas abertas, em vias de comunicação nunca fechadas, que façam sentir que qualquer que seja a questão, amamo-nos o suficiente para podermos lidar com as falhas e as fraquezas de uns e de outros, quaisquer que elas sejam. Acredito muito em olhos que querem ver, particularmente em olhos que sabem ver o que não quer ser visto, mas que sabem esperar a altura certa para conversar, sem atrapalhar o que cada um tem que resolver por si próprio. Por vezes basta um "estás bem?" que seja tudo menos circunstancial para que percebamos que estamos ali para o que der e vier. Uns e outros sabemos que não somos perfeitos. Mas uns e outros sabemos que todos os dias tentamos sê-lo. Às vezes, corre bem. Noutras, nem por isso. É também para isso que estamos lá.

20141028


A propósito de uma oração para os Dias de Reflexão que temos feito, tenho andado às voltas com o que é necessário para amar. E comecei e parei na vontade. O "eu quero" é absolutamente insubstituível. Amar é sempre, sempre, uma questão de vontade, decorre sempre do "eu quero". Se no amor pelo outro isto é pacífico - podemos sempre passar ao largo e fingir que não é nada connosco - no amor a dois tem implicações nem sempre percebidas. Uma relação a dois, qualquer que seja o seu estádio, exige sempre a vontade expressa e assumida de ambos os protagonistas. Basta que um deles, às tantas, não esteja para aí virado, que as coisas começam a ficar muito complicadas. Em sentido contrário, independentemente do que tiver acontecido na relação, basta que ambos tenham a vontade, firmemente expressa e assumida, de voltar a amar e as coisas continuarão a caminhar. Provavelmente não como antes, mas continuarão a funcionar.
Claro que isto não tem nada a ver com o que se passa nos filmes que vemos. Mas são raros os que falam de amor. Normalmente começam com um encontro onde há um arrebatamento, forte, intenso, e o filme termina quando essa paixão é satisfeita. Raramente lhe dá continuidade, porque a continuidade é mais profunda, menos visível e certamente menos percetível aos olhares menos atentos. Por isso quando vemos filmes de amor - e de repente vem-me à cabeça dois extraordinários: Amigos Improváveis e, o mais recentemente descoberto, O último amor de Mr. Morgan - apercebemo-nos que raramente abordam o amor na sua "normalidade" mas entre situações pouco usuais, como se o amor entre um homem e mulher fosse uma coisa chata e difícil de retratar. E às vezes não é bem isso que se passa.

20141026



Esta manhã, durante a eucaristia, tive vergonha de mim. Foi a eucaristia mensal onde o Fé e Luz está presente. Vê-los ali, com a alegria e a inocência que apenas eles têm, derruba-me toda e qualquer veleidade que eu possa ter.
Por vezes corro o tremendo erro de pensar que consigo algumas coisas apesar da minha gaguez.Que gaguejar e conseguir trabalhar com jovens e miúdos, alguns deles de Ramalde é uma grande coisa. Que, porque gaguejo, tenho a vida mais difícil que qualquer outra pessoa normal. Como consigo ser estúpido! Ver ali aqueles miúdos e, fundamentalmente, aqueles pais, coloca-me sempre no devido lugar. Não ouso sequer calcular o choque que deve ser para um pai ou uma mãe quando percebe que o seu filho, o seu herói, tem uma qualquer deficiência; que a sua filha, a sua princesa, na qual colocou todas as esperanças, afinal terá, para sempre, uma forma diferente de ser. Não duvido que, passado o choque, a vida acabe por promover a aceitação e até a descoberta de alegrias desconhecidas, mas aquele choque inicial deve ser tão intenso e tão difícil de ultrapassar!
São alguns os casais que conheço que me dão um testemunho do que é ser pai e mãe assim. Um testemunho extraordinário que me faz sempre sentir pequenino, pequenino, tal é o tamanho da sua generosidade. O que me causa sempre mais espanto é como conseguem manter a sua fé, como conseguem continuar a acreditar num Deus bom, num Pai que cuida dos seus filhos, num Deus que sabe o nosso nome e os nossos desejos mais profundos e no entanto nos dá algo absolutamente diferente. Espanta-me a sua ausência de revolta, a perseverança da alegria da fé, a manutenção da solidez da sua confiança, por vezes até o reforço desse amor a um Pai que deu algo absolutamente transformador.
Hoje, na eucaristia, enquanto cantávamos o "Senhor, ensina-me a viver, a dar e receber de ti o que mereço", perguntava-me o que eu próprio sentiria se cantassem isso comigo naquela situação. São muitas perguntas, que precisam de tempo para serem devidamente processadas. Provavelmente, durante a vida toda.  

20141025



Conversávamos, sentados, numa fresca que escapava à tarde quente de ontem. Uma daquelas conversas de peito aberto, francas, sinceras, raras entre homens adultos, onde as  chalaças não têm lugar. Sempre tive muito mais facilidade em conversar com mulheres que com homens. Em parte porque não tenho grande pachorra para aqueles temas masculinos da praxe, e ainda menos para as gabarolices bacocas tipicamente masculinas. Mas também porque é muito difícil que um homem fale a sério de si, e muito menos com outro homem. No nosso caso já tinha acontecido antes, naquele que é um lugar especialíssimo do mundo, como Taizé, que potencia a abertura da alma e o mergulhar na interioridade profunda de cada um. Enquanto as palavras fluíam, soltas, sem amarras ou receios, eu disse a determinada altura que nunca tive grande dificuldade em abrir portas. "És confiável" disse-me. E sei que o disse sentindo-o, com toda a verdade, porque acabara de abrir as suas.

Vivo muito destes pequenos nadas. De pequenos gestos, de pequenas palavras, de pequenos momentos que depois vão permanecendo e que mais tarde, devidamente cozinhados em nós, se tornam grandes em tudo. Quem me conhece na superficialidade julga-me sempre alegre e extrovertido - e sou-o em algumas circunstâncias - mas desconhece naturalmente este meu lado mais interior, mais meditativo, que no final do dia pesa cada gesto, cada palavra, cada momento, e saboreia-o enquanto o sono não volta. Há uma frase de Hollywood que eu repito muitas vezes para os meus filhos. "Não há papéis pequenos, há atores pequenos". Da mesma forma, acredito que não há momentos pequenos, não há palavras pequenas, não há gestos pequenos. Nós é que muitas vezes estamos tão absorvidos pelo que aspiramos que perdemos a capacidade de apreciar o que vai acontecendo à nossa volta. Graças a Deus, no entanto, temos pessoas que gostam de nós ao ponto de no-lo recordar constantemente.

20141023


Ontem, finalmente, acabaram as desculpas, as fugas, as justificações esdrúxulas e lá conseguimos sentar-nos, olhos nos olhos, e conversar. Evitavas-me fazia tempo, muito tempo, e eu sabia que nos fazíamos falta. E estavas no teu melhor! Esquiva, de olhar fugidio, querendo evitar a todo o custo tudo o que não fosse conversa para encher chouriços. Sabias muito bem que não era disso que ambos tínhamos saudade, sabias muito bem que o "continuo à tua espera" pedia, exigia, bem mais que conversas banais sobre o tempo e o calor esquisito que faz em Outubro, e no entanto, o teu primeiro instinto fez justiça ao que és: esguia e fugidia. Ok. Acusei o toque e falamos dos outros, depois falamos de mim e dos meus, com a conversa de circunstância de quem esteve muito tempo sem se estar, sabendo ambos que as oportunidades raras, como esta, são exigentes e não toleram desperdícios. Finalmente lá conseguimos comunicar, a sério, sem nos limitarmos aos arranhões superficiais cujas marcas permanecem apenas por algumas horas. Como sempre, fizeste-me dizer mais do que devia e muito mais do que queria. Mas desta vez também escutei, também tive algo para escutar, e sei que muito dificilmente poderei aspirar a mais do que tive, ontem. Não tem mal. Contrariamente ao que pensavas - sim, eu recordo-o perfeitamente! - não estamos cá apenas para os próximos quinze dias, mas temos tempo, muito tempo. Assim o queiramos. E assim eu não te permita, em demasia, as desculpas, as fugas e as justificações esdrúxulas.

Ao chegar a casa, à noite, li que a saudade, por vezes, tem nome. Sorri. Não haveria melhor forma de terminar o dia.

20141022


Acordamos ontem com o mesmo sobressalto cm que nos deitáramos na noite anterior: "A Nika está a morrer. Já paralisou e mal respira." A Nika é uma das cadelas dos meus filhos, que está lá em casa desde que eles são pequenos. Está velhota e contamos que, tal como aconteceu com o Aquiles, mais dia menos dia, morra. O Aquiles era o meu cão e eu nunca liguei muito nem à Nika nem aos filhos deles - Athos, Porthos e Aramis - que sempre foram os cães dos meus filhos. Quando morreu o Aquiles eu não estava cá, estava em Taizé e foi a minha mais-que-tudo que o levou ao veterinário para acabar com o seu sofrimento. Ontem cabia-me a mim. Afetivamente mais distanciado, era-me muito menos penoso tratar do assunto. À hora do almoço lá fui a casa pronto para terminar com o seu sofrimento. Às tantas a minha sogra grita que a Nika já está boa, já se pôs a pé, já comeu, e parecia que nada se tinha passado. Respirei com alivio, naturalmente, mas não foi aí que me detive.
Eu. que me digo um defensor acérrimo da vida, preparava-me para um ato de eutanásia. É um cão, eu sei, está velhinho, eu sei, provavelmente estaria a sofrer, eu sei, e também sei que estes são argumentos dos que defendem a eutanásia, aos quais eu me oponho. Só conseguia pensar que, mais uma vez, estava a ser incongruente com o que defendo, que a teoria é muito boa mas depois sou o primeiro, na vida vivida, a esquecer-me dos ideais e a agir como todos os outros, como se não pensasse nas coisas, como se me deixasse arrastar pelo vácuo. Se tivesse ido a casa uma hora antes provavelmente a Nika teria sido abatida, com toda a minha comiseração, com toda a minha penosa solidariedade, para terminar com o seu sofrimento. E no entanto...
Há nestas coisas essenciais da vida algo de muito perigoso. Não duvido que estejamos todos cheios de boas intenções, cheios de respeito pela liberdade alheia, cheios de sincera compreensão para com quem sofre e está cheio de sofrer. Mas há qualquer coisa de aberrante nisto de nos considerarmos senhores da vida, qualquer que ela seja.
Ontem, quando dei a boa nova à minha mais que tudo, fiz-lhe uma promessa: nunca mais tratarei de "acabar com o sofrimento" de nenhum dos nossos animais. Quando chegar a altura deles, partirão. Mas não serei eu a fazer com que isso aconteça.


20141021

 

No ano passado, por volta desta altura, já andava pelas pontas. Corria de um lado para o outro como um desalmado, cansado, esgotado por fazer tudo em cima do joelho, saltando de umas coisas para as outras, sem qualquer tempo de preparação ou oportunidade de as saborear. Este ano uma circunstância mudou e a minha sensação de vida mudou com ela. Deixei de ter a obrigatoriedade de começar o meu dia logo de manhã bem cedo e isso dá-me uma outra qualidade de vida. Incomparável! Na realidade, não trabalho menos do que fazia antes. Continuo a sair de casa bem antes das oito e a chegar por volta das oito. Continuo a ter, num dia normal, cerca de dez horas de trabalho intenso, e quando o dia não é normal é porque trabalho ainda mais horas. Isto com algumas semanas de seis dias, deixando-me apenas o domingo para o dolce fare niente. E no entanto, há já algum tempo que não saboreava a vida desta forma!
Ontem almoçamos rápido e aproveitamos o calor à beira mar, num dos meus lugares preferidos, na Foz. Não estivemos lá muito tempo - pouco mais de meia hora - mas foi o suficiente para uma data de coisas. Interrompemos a correria do quotidiano, aproveitamos o sol, mergulhamos no barulho do mar e, claro, aproveitamos para colocar a vida em dia, conversando sobre coisa nenhuma.
Estas alterações de registo, apesar de imperativamente curtas, têm tido o condão de dar outro sabor aos meus dias. Poder começar um dia de trabalho caminhando à beira mar, com uma doce conversa ou completamente sozinho - mas nunca só - é um privilégio que antes não conseguia ter. E que muda - e de que maneira! - a forma como vivo os meus dias. Redescobri o prazer de fazer os meus peripatéticos encontros com Deus e com aqueles que me fazem companhia, presencial ou não, nas minhas cainhadas matinais.
Efetivamente sou um privilegiado!

20141016


Uma das coisas que mas aprecio naquilo que agora vou fazendo - a que tenho muita dificuldade em chamar trabalho, tal é o gozo que me tem dado - é o processo de constante reinvenção. Ainda ontem, numa tardia reunião de programação de trabalhos, quando começamos nenhum de nós tinha mais que uma vaga ideia do que iríamos fazer. Depois, com naturalidade, à medida que a conversa vai surgindo, vem uma pista de um, despoleta um raciocínio de outro, e às tantas tínhamos já todo o processo devidamente delineado com a respetiva distribuição de tarefas devidamente assente. Adoro este tipo de processos. Adoro irmos descobrindo juntos o melhor caminho, que por vezes vai até em sentido contrário ao que tínhamos pensado. Adoro quando alguém dá uma boa ideia, ou emite uma opinião que nos faz a todos ver o que antes estava escondido. Adoro quando nenhum de nós se agarra a si próprio nem se vangloria por ter sido dele a primeira abordagem ao caminho seguido, mas todos nos esquecemos de quem partiu a ideia original porque tudo é de todos e como tal é assumido. Eu, que sempre me vi como um solitário - e por vezes preciso mesmo dessa solidão para conseguir pensar - descubro-me afinal a vibrar intensamente com este tipo de descobertas.

Há outras descobertas, no entanto, mais raras, mais olhos nos olhos, muito mais privadas, que me seduzem ainda mais. Lembro-me do fascínio que, era ainda miúdo, a maiêutica socrática exerceu imediatamente em mim. A ideia de sermos meros parteiros e todo o processo para conseguirmos que o conhecimento dê à luz é algo que ainda hoje me fascina plenamente. Quando começamos a conversar e, em diálogo, vamos descobrindo pistas, vamos descobrindo verdades que até aí permaneciam encobertas; quando essas verdades são afinal simples e iluminam a vida numa altura em que tudo permanecia escuro; quando essa luz se traduz num sorriso - finalmente um sorriso! - num olhar antes fechado e perdido, sinto sempre o meu dia como plenamente justificado. E o melhor de tudo é quando percebemos que isto apenas acontece com aqueles que nos abrem as portas da intimidade e nos deixam habitar em si, numa mútua partilha que tem tanto de profunda como de intensa.  O melhor de tudo é quando confirmamos que há laços que não são apenas laços mas nós, que a vida já não consegue desatar.

20141013


Não creio que seja possível alguém saber o que o une a outro alguém. Eu, pelo menos, nunca o consegui. Com exceção dos meus filhos, claro, que estão um outro patamar que torna tudo simultaneamente mais simples e mais complicado. Tudo o resto são escolhas. Minhas. Mesmo em relação aos meus pais e aos meus irmãos, são escolhas. São uma parte muito importante do que mas há um esforço que se faz para se manter o contacto, para que a relação continue viva. Conheço, no entanto, muitos filhos e irmãos que não se comunicam, ainda que alguns deles vivam sob o mesmo teto.

Lembro-me perfeitamente do que senti quando conheci o - na altura - meu futuro cunhado irlandês. Sentimos ambos uma fortíssima empatia que ainda hoje, apesar de nos vermos poucas vezes em cada ano, ainda se mantém. Não teve a ver com conhecimento ou crescimento ou partilha e momentos marcantes, nada disso. Conhecemo-nos e gostamos logo um do outro. É um caso raro, na minha vida. Outro foi (é) o da minha mais que tudo. Dois dias depois de a conhecer cheguei a casa e disse à minha irmã que tinha conhecido a minha mulher. Soube logo que assim seria.

Normalmente, as minhas relações de amizade mais profunda precisam de caminho. De muito caminho. De conversas profundas, de partilhas profundas, de músicas e de filmes, com muita alegria pelo comum e até sofrimento pela dor do outro. São relações muito mais de olhos que de pele. Mas são sempre muito construção, muito passo a passo, muito descoberta lenta e progressiva, cada vez mais íntima, cada vez mais profunda. Acredito que são pessoas que Deus coloca no meu caminho para que possamos aprender juntos quando a nossa vida precisa mais que aprendamos juntos. Por vezes, terminada a aprendizagem mútua, a vida encarrega-se de nos apresentar caminhos distintos. E seguimo-los ambos com a doce nostalgia daquele tempo e a firme certeza que a ele voltaremos alegremente ao mais pequeno sinal, assim as circunstâncias o solicitem.

Há também alguém que fica em standby. Vivemos algo juntos, partilhamos algo juntos, estivemos algures em sintonia, mas em que sinto muito mais futuro que passado. Aprendi, a muito custo, a dar lugar ao Mestre Tempo, a deixar que a vida aconteça, mantendo, ainda que à distância, um olhar atento e uma disponibilidade efetiva mas discreta. Por vezes cedo à tentação de correr, de abraçar, de tentar que o nosso tempo seja efetivamente aquele em que vivemos. E estrago.

20141010


Como tantas outras coisas, a amizade chegou demasiado tarde à minha vida: Nos meus primeiros anos - aqueles que estabelecem os alicerces de quem instintivamente somos - saltei de casa em casa, de lugar em lugar, de escola em escola, e isso impediu-me de fazer amigos. Quando finalmente estabilizamos tinha eu já mais de dez anos e ainda assim saltei por várias escolas. A minha primeira raiz foi a capela, já com quinze anos, que foi o verdadeiro motor de mudança. Anos mais tarde, voltei a saltar e, da noite para o dia, mudei-me para uma nova paróquia, um novo grupo de jovens e um novo grupo de amigos. Foi quando conheci a minha mais-que-tudo e aqueles que ainda hoje são meus amigos. Também nas profissões saltei de lado para lado até que, pela Graça de Deus, desaguei onde estou hoje, e onde tenho alguns dos meus mais sólidos amigos. Em todos os lugares por onde passei tenho gente de quem gosto bastante e que gosta bastante de mim. São meus amigos? Não sei. Não sei mesmo. Não sei se terão aquela disponibilidade, aquele à vontade, aquela prontidão que nos faz ser amigo de alguém. E muito menos sei se haverá já intimidade, ou pelo menos vontade de intimidade, que nos leva a sentir alguém como imprescindível na nossa vida. Como um amigo.

Odeio telefonar seja a quem for. Seja por que motivo for. Raramente atendo telefonemas de alguém. No entanto, esta semana, liguei a um amigo porque a notícia que recebera era tão boa que não podia deixar de o fazer só para ouvir a alegria na sua voz. Também se contam pelos de dedos de uma mão as pessoas a quem telefono no seu aniversário. Têm mesmo que ser muito minhas, muito especiais, para o fazer. Da mesma forma, por muito macabro que possa parecer, quando recebi a notícia da morte do meu amigo Paulo, eu senti pela primeira vez que tinha que estar no velório de alguém, junto do seu corpo, não queria estar naquela altura noutro lugar. Também quando caminho junto ao mar, ou de noite sob um luar - real ou apenas na minha memória - tenho mesmo que dar seguimento a esta ligação forte que me une a quem sei que ficará tão feliz quanto eu por saber que caminhamos juntos, não apenas naquela altura, mas sempre.

Esta coisas não se explicam são assim mesmo. Talvez por a amizade ter chegado demasiado tarde à minha vida, eu dou-lhe uma enorme importância. Ter com quem contar, aconteça o que acontecer, faça o que fizer, diga o que disser, é um privilégio apenas ao alcance de quem conhece, verdadeiramente, o amor. Eu descobri-o tarde. Mas tenho a vantagem e a Graça de viver esse amor com a inocência e a intensidade de um (eterno?) adolescente.

20141008


Não sou um. Nunca fui apenas um. E nem sempre me dei bem com isso. Aliás, esse tem sido um dos meus problemas desde que me conheço. Por um lado, fiz uma escolha de vida, a escolha mais definitiva da minha vida, que me transporta todos os dias a um estado de felicidade que nunca julguei ser possível. Acordar ao lado de quem se ama, poder testemunhar o tornar-se gente de corpo inteiro aqueles a quem demos e damos a vida, é um tremendo privilégio que vale, por si só, que a vida seja vivida. Mas não me esgoto aqui. Não me consigo esgotar aqui. Há um outro lado de mim que se encontra plenamente quando estou com a malta nova, quando canto com eles, danço com eles, rezo com eles, e com eles dou asas à minha loucura natural, que parece nunca ter fim. Conciliar estes dois eus levantou-me sempre problemas de consciência. Sempre que estou numa das margens sinto que estou a falhar  na outra e não consigo nunca corresponder ao que uns e outros esperam de mim.
Volta e meia falam-me da possibilidade de os padres casarem. Eu torço sempre o nariz. Também porque penso em mim, claro. Se eu, que sou antes de tudo sou marido e pai, tenho dificuldade em fazer este tipo de gestão, como não iria ser com um sacerdote, que tem que se dedicar de alma e coração ao seu rebanho? Quem colocaria em primeiro? A quem se entregaria primeiro? Como viveria o resto? E, mais importante, quem ficaria a perder?

20141006


A determinada altura falou no Campo de Concentração do Eu. Porque aprisiona, porque limita, porque dita as regras em que nós próprios somos demasiado lestos a encarcerar-nos. Voluntariamente, por vezes até alegremente, pensando que podemos viver a vida em serviços mínimos. Eu sorri cá por dentro porque este tinha sido, justamente, um encontro nacional de desencarceramento. Não por vontade própria, que eu faço parte dessa enorme multidão silenciosa que gosta do seu canto, mas porque teve que ser. Nunca tinha tido que pensar na decoração de um altar - com a minha proverbial falta de sentido estético - nunca tinha tido que combinar com o padre as leituras e os cânticos que escolhêramos, nunca tinha tido que assumir, tão claramente, a direção dos cânticos e do ritmo da eucaristia com miúdos que, embora já conhecendo, não me deixam ainda particularmente à vontade. E nunca tinha tido que fazer nada disto porque noutras alturas outros o fizeram e permitiram-me os bastidores, que nestas coisas são o meu lugar por excelência.
Como me disseram no final, fizemos grandes coisas juntos. E juntos crescemos mais um bom pedaço nestes dois dias.
Foi premonitória a decisão do início deste ano. Ver com outros olhos permite observar toda uma série de novidades, permite alargar expectativas e deixar que o estar com, o caminhar com, o viver com, ainda nos consigam surpreender. Permite que os patamares que, estupidamente ou não, existem à partida, continuem a desvanecer-se, apesar de tudo o que nos envolve. Permite, fundamentalmente, que o caminho que fazemos juntos seja sempre novo porque nunca sabemos bem o que estará depois daquela curva.
Louvei muito a Deus, este fim de semana. Pelo que pude crescer, pelo que pude ver e sentir, pelo que pude desmontar de ideias feitas e preconcebidas. Nem que fosse só por isso - e não foi, foi por muito mais - já teria valido a pena.

20141003



«Eu, hoje, farei uma pergunta: como é a relação com o meu anjo da guarda? Escuto-o? Digo-lhe “bom dia”, de manhã? Digo-lhe: «Guarda-me durante o sono”? Falo com ele? Peço-lhe conselho?», disse Francisco.

Já o afirmei várias vezes: o Papa Francisco confunde-me. Por um lado, gosto da sua simplicidade (não sei ainda se sincera, se encenada), da sua terra a terra, da sua tentativa de regressarmos às origens. Por outro lado, no entanto, muitas vezes exagera nestas suas ações de propaganda a ponto de se tornar apenas mais um. E um líder nunca é apenas mais um, a sua voz tem que ter um peso, um lastro, que guie, que oriente. Este equilíbrio que, concordo, é muito difícil de conseguir, ainda não foi atingido por Francisco, E depois... as suas constantes referências aos anjos e ao demónio irritam-me profundamente. "Digo bom dia ao meu anjo de manhã?" Por acaso até digo, muitas vezes, mas o meu anjo tem pernas e braços e cabeça para pensar, e nem sequer é um só. Prefiro pensar que "o meu anjo", são aqueles que Deus vai pondo no meu caminho, todos os dias, a cada momento, e me impedem de meter ainda mais argoladas e me acolhem quando, apesar de tudo, eu as meto. Este eu nos outros e os outros em mim parece-me muito mais importante, muito mais cristão, que recorrermos a uma entidade abstrata. Sou cristão, sim, tenho fé, sim, mas uma fé alicerçada em cristo e vivida nos e com os outros. Parece-me que é muito mais sedutor e, ao mesmo tempo, muito mais desafiante, tentar encontrar esse Deus que me chama e me reconhece naqueles com quem vou caminhando. Particularmente quando, como é o meu caso, caminhando com os dois pés assentes em mundos aparentemente tão díspares mas realmente tão próximos entre si.

20141002



"Sorri e acena"
Volta e meia sou ensombrado pela saudade. Não do que alguma vez fui mas do que, em alguma altura, desejei ser e a vida nunca mo proporcionou. É uma saudade cíclica, como as alergias, acontece no Outono e na Primavera, deixa-me um bocado zonzo e tende a passar rapidamente. Cada vez menos rapidamente, creio. Por vezes acho que é uma espécie de centro de baixas pressões que se abate sobre mim. Logo sobre mim, que nunca acreditei muito nas tretas das depressões, que leio sempre como excesso de tempo livre e pouco que fazer.
"Sorri e acena"
Sempre tive algo de eremita. Em miúdo, ao mesmo tempo que sonhava com a minha família de muitos filhos, com a casa cheia e a mulher à minha espera ao fim do dia (sim, é machista, eu sei, mas não escolhemos aquilo com que sonhamos), sonhava também com uma cabana, simples, à beira mar, onde eu viveria apenas com os meus livros. Sem ninguém, sem qualquer compromisso, com a total liberdade que a solidão me proporcionava. Calculo que seja, consciente ou inconscientemente, o sonho de qualquer pessoa: ser completamente dono de si e da sua vida. Mais tarde, numa conversa com o meu irmão, apercebi-me que essa liberdade seria falaciosa: que desejava ser livre apenas para me poder aprisionar a uma outra realidade que me faria voltar inapelavelmente ao lugar onde já me encontrava: ao desejo de liberdade. A minha vida seria assim sempre um recomeçar de tudo coma agravante dos escombros que deixaria atrás de mim.
"Sorri e acena"
Não foi o sonho da solidão, o que escolhi viver, mas o da casa cheia. Mas volta e meia sou assombrado pela saudade. Recentemente, tivemos uma semana recheada de descobertas de cancro de pessoas conhecidas. Conversávamos como cada uma delas reagiu e como seria connosco se isso acontecesse. Eu não tenho a mínima dúvida do que faria se fosse comigo. Nunca tive. E disse-o. E ninguém gostou. Se isso me acontecesse nunca mais me poriam a vista em cima. Descobriria uma qualquer cabana à beira mar e mergulhava nela com os meus livros. Ponto final.
"Sorri e acena"

20140929


Volta e meia, quando nada o faz suspeitar, vem o já habitual banho de água fria. Normalmente reajo bem, consigo olhar para além de, sacudo a água e preparo-me para  o que aí vem. É nas alturas em que estou mais descontraído, mais confiante, menos atento, que estes baldes mais me custam a encaixar.
E o baque tem custos.
Refugio-me em mim, fecho-me, não partilho, até descobrir como hei de encarar o futuro com aquela alteração das circunstâncias. Calculo que serão estes os momentos mais difíceis para quem vive comigo. Não é uma questão de falta de confiança, ou falta de amor, ou qualquer coisa deste género. É mesmo uma tremenda dificuldade em dividir o que é menos bom,  ver nos olhos que me são importantes qualquer tipo de dor infligida por mim, e ter a terrível sensação que sou um peso.
Partilho com muita facilidade a alegria e os momentos bons. Não sei, aliás, vivê-los sem os gritar em plenos pulmões, sem tentar contagiar os que me rodeiam. É algo que encontra o seu paralelo no que gosto de dizer às pessoas. Adoro dizer bem delas, se possível olhos nos olhos, e nunca o faço sem o sentir profundamente. Em sentido contrário, tenho muita dificuldade em criticar alguém e frequentemente remeto-me ao silêncio, dou tempo a que a vida e as circunstâncias me desmintam, ainda que, por vezes, com custos pessoais.
Não é justo, eu sei. Mas quem me conhece bem sabe que dificilmente pode esperar de mim que eu seja justo. Sempre preferi amar.

20140927


Não há muito que eu possa dar aos meus filhos. Mas também, em abono da verdade, não há muito mais que eu queira dar aos meus filhos. Dinheiro não pode ser, que esta coisa de ter cinco filhos e uma aposta fortíssima na educação suga-nos quase tudo. O que sobra vai para a alimentação, que nunca faltou. Depois, pouco fica, e é gerido com pinças. Ter despesas não programadas é um luxo que não temos há muitos, muitos anos. E não é grave. Houve um período, curto, durante o qual tive mais dinheiro que disponibilidade e fui uma péssima pessoa e, pior, um péssimo pai. Uma experiência a não repetir. Por isso o que eu posso dar aos meus filhos é o que tenho: a atenção, a disponibilidade, a brincadeira e a chamada de atenção sempre que o justificam. O estar é muito importante. Estar presente, estar disponível, estar atento, conhecê-los profundamente e não tomar nada como certo ou definitivo. Nem são sempre tão bons como quando se portam bem nem são sempre tão maus como quando se portam mal. Ah. E uma coisa fundamental: nunca fechar portas. Nunca! Quando é tempo de discutir, discute-se. Se tiver que ser, forte e feio, dizer o que se tem a dizer, limpar a alma. Quando acaba a discussão, a discussão acabou. Nada fica por dizer  mas também não se prolonga no tempo. Passada meia hora, respira-se fundo, sacode-se o pó, e a vida continua como se nada tivesse acontecido. É muito importante que eles saibam que estou aqui e nunca digo "eu avisei-te". Eles sabem-no. A vida avisou-os. Para quê realçá-lo? Cada um é como cada qual. Não há fórmulas por atacado, não há educar por atacado. A mesma ação implica um ralhete a um e um afagar de cabeça a outro. Não estou nem aí para a justiça de tratamento ou para a equidade. Estou aqui pata tentar dar a cada um o que cada um necessita a determinada altura. Isto não é uma democracia nem uma ditadura. Não é um estado, é uma família. Gosto de que pedir para que alguma coisa seja feita mas se não o for não me importo de mandar, de puxar os galões, que eles são filhos e eu sou pai. E não me custa nada ter que lhes pedir desculpa sempre que se justifica. E já se justificou muitas vezes. E eu fi-lo em todas. Especialmente quando eles não mo pediram. Não há muito que eu possa dar aos meus filhos. Mas dou-lhes a certeza de não ter certezas nenhumas acerca destas coisas e de muitas outras. De não ligar puto aos conselhos dos imensos psis que sabem muito de psi mas não sabem nada dos meus filhos e, sobretudo, não imaginam o que é amar os meus filhos muito para além do que eu alguma vez sonhei ser possível amar alguém.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...