Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus nos fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir.
No espaço de duas semanas conversei com duas pessoas absolutamente distintas do meu passado. Do que me trouxe até aqui, para o bem e para o mal, onde eu estou, hoje, aqui e agora. Um percurso acidentado, não tão acidentado, é certo, como o de alguns miúdos dos bairros com quem trabalho todos os dias, mas muito menos linear que o da maioria das pessoas, miúdas e graúdas, com quem trabalho na outra metade dos meus dias. O que me faz estar permanentemente num limbo: nem sou bem uns, nem sou bem outros. Sou uma coisa assim, mais ou menos, que ora tem um pé num lado, ora tem um pé noutro lado. Um pé dentro e um pé fora.
Descobri há pouco tempo que esse limbo tem sido uma permanente na minha vida. E que, quando não o foi, era porque a máscara que eu usava tinha mais a ver com o que eu queria ser, a qualquer custo, que com o que eu era. Um pouco como se calçasse uns sapatos que não me pertenciam, que de certa forma me elevavam aos olhos alheios, mas que todos os dias, no silêncio do meu recolhimento, sabia que não me pertenciam.
Toda a minha vida de solteiro vivi num bairro, embora numa grande parte desse tempo, não vivesse numa das casas do bairro. O bairro não era, assim, físico mas interior, todos aqueles que me eram importantes eram do bairro. E eu, sendo orgulhosamente um deles, nunca me dei por satisfeito por ser um deles. Toda a minha vida senti uma enorme pulsão de ser mais, de saber mais, uma insatisfação permanente que me fez andar sempre à procura não sei bem de quê, que me foi impulsionando a conhecer um outro tipo de pessoas, que me foram catapultando para além dos meus limites. Um pé dentro, um pé fora.
Descobri a minha fé e uma outra comunidade, completamente diferente daquela onde vivera toda a minha vida. Novas formas de ser, novas partilhas, imensas descobertas, aos quinze anos, quando tinha já muito bairro e nenhuma catequese. Não estava formatado, por isso, nem deixava que me formatassem com facilidade. Foi uma descoberta de Jesus que teve muito de encanto e muito de questionamento, muito de confronto entre o que sentia, o que vivia e o que testemunhava. Foi, por isso, uma adesão muito pessoal e profunda, muito solitária, embora muito mergulhado na experiência de uma comunidade pequena e fechada como era aquela onde me foi apresentada a dimensão da fé. Muito contestatário, armado em puto do bairro com todas as asneiras que isso implica, acabei por ter que mudar de ares. Um pé dentro, um pé fora.
Novos ares permitiram-me conhecer a minha-mais-que-tudo e ganhar uma outra dimensão pessoal. Já adulto assentei, finamente, as bases da minha vida: fé e família. Ainda hoje, excetuando talvez o FCP (que é visceral), tudo o que penso e faço de significativo anda à volta disto. Não há filme, não há notícia, não há acontecimento, não há silêncio que não seja preenchido com uma destas dimensões. É única coisa na qual sou inteiro, na qual tenho ambos os pés no mesmo sítio.
Fui passando por vária profissões, sempre com um pé dentro e um pé fora. Nunca fui apenas mais um e nunca fui nada de especial, no longo percurso que me trouxe até aqui. Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus me fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir. Tudo o que fui fazendo, tudo o que fui sendo, tudo o que fui descobrindo, encontra, hoje, a sua plena aplicação. Num sítio e noutro, completamente diferentes entre si. Num sítio e noutro, tão parecidos no que é essencial. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei que estar com um pé dentro e um pé fora não é necessariamente sinal de menoridade. Que não tem necessariamente que me faltar sempre um danoninho para eu poder ser o que quer que seja. Que tenho os meus próprios tamanquinhos e me posso sentir realizado neles. Que, se for chamado a unir duas margens de um rio tenho que ter, necessariamente, os pés em lugares diferentes. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei porque motivo sempre tive um pé dentro e um pé fora.

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