Acordamos ontem com o mesmo sobressalto cm que nos deitáramos na noite anterior: "A Nika está a morrer. Já paralisou e mal respira." A Nika é uma das cadelas dos meus filhos, que está lá em casa desde que eles são pequenos. Está velhota e contamos que, tal como aconteceu com o Aquiles, mais dia menos dia, morra. O Aquiles era o meu cão e eu nunca liguei muito nem à Nika nem aos filhos deles - Athos, Porthos e Aramis - que sempre foram os cães dos meus filhos. Quando morreu o Aquiles eu não estava cá, estava em Taizé e foi a minha mais-que-tudo que o levou ao veterinário para acabar com o seu sofrimento. Ontem cabia-me a mim. Afetivamente mais distanciado, era-me muito menos penoso tratar do assunto. À hora do almoço lá fui a casa pronto para terminar com o seu sofrimento. Às tantas a minha sogra grita que a Nika já está boa, já se pôs a pé, já comeu, e parecia que nada se tinha passado. Respirei com alivio, naturalmente, mas não foi aí que me detive.
Eu. que me digo um defensor acérrimo da vida, preparava-me para um ato de eutanásia. É um cão, eu sei, está velhinho, eu sei, provavelmente estaria a sofrer, eu sei, e também sei que estes são argumentos dos que defendem a eutanásia, aos quais eu me oponho. Só conseguia pensar que, mais uma vez, estava a ser incongruente com o que defendo, que a teoria é muito boa mas depois sou o primeiro, na vida vivida, a esquecer-me dos ideais e a agir como todos os outros, como se não pensasse nas coisas, como se me deixasse arrastar pelo vácuo. Se tivesse ido a casa uma hora antes provavelmente a Nika teria sido abatida, com toda a minha comiseração, com toda a minha penosa solidariedade, para terminar com o seu sofrimento. E no entanto...
Há nestas coisas essenciais da vida algo de muito perigoso. Não duvido que estejamos todos cheios de boas intenções, cheios de respeito pela liberdade alheia, cheios de sincera compreensão para com quem sofre e está cheio de sofrer. Mas há qualquer coisa de aberrante nisto de nos considerarmos senhores da vida, qualquer que ela seja.
Ontem, quando dei a boa nova à minha mais que tudo, fiz-lhe uma promessa: nunca mais tratarei de "acabar com o sofrimento" de nenhum dos nossos animais. Quando chegar a altura deles, partirão. Mas não serei eu a fazer com que isso aconteça.


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