20191210


Não é sempre, mas há dias em que a Palavra, que todas as manhãs escutamos durante a viagem para o trabalho, vem mesmo ao encontro do que precisava. Hoje veio. Graças a Deus! Porque eu estava mesmo a precisar dela.

Ainda esta semana disse na catequese, a uma das miúdas mais à procura que conheço - e que está na fase do "não" a tudo, que a Bíblia iria ser o livro mais importante da vida dela. Olhou para mim com aquele ar de incredulidade que a caracteriza, como se eu tivesse dito a maior barbaridade que jamais tinha ouvido. Mas a verdade é que eu, conhecendo-a como a conheço, acredito mesmo nisso. 

Sobretudo para quem se questiona, sobretudo para quem não se conforma, sobretudo para quem anda sempre à procura de ser mais, a Palavra é absolutamente fundamental. Aí encontramos tudo: todas as dores, todos os desesperos, todas as escuridões. E aí encontramos todas as curas, todas as esperanças, toda a luz. A Palavra é resposta confiada de muita vida vivida e, apesar da ilusão tecnológica onde vivemos, nada há de essencial de nós e da vida que não esteja aí presente, seja na forma de história, na forma de conselho, na forma de meta.

Por isso, hoje, veio ao meu encontro. Porque a sensação que me acompanha é a da incerteza de buscar a ovelha perdida. O medo que me acompanha é o de perder o rebanho justamente por causa dessa ovelha. A tranquilidade que me deu a Palavra, hoje, foi a de saber que é justamente isso que me é pedido.

 

20191206


Não me lembro de ter tido um dia tão complicado quanto o de ontem. De problema em problema, de urgência em urgência, de inesperado em inesperado, sempre a correr atrás do prejuízo, sempre em reação, sempre em cima do joelho. E sempre com alguma dose de conflitualidade. Tudo o que eu detesto esteve ontem concentrado no meu dia de trabalho. Cheguei ao final do dia como se tivesse apanhado uma coça: cabeça a rebentar, dores no corpo, completamente esgotado.

No final de um dia assim, nada há de melhor que regressar. Que ter para onde regressar. Que ter para quem regressar. Chegar ao carro, pôr uma musica calma que abafe o trânsito, uma boa dose de conversa, chegar a casa como se chega a um refúgio, com a confiança que aquele é o nosso lugar, que aqueles são o nosso lar. A partilha das nossas vidas, à mesa, por entre gargalhadas, conversas e brincadeiras, com as tecnologias fazendo perto quem já vive longe, traz-me de volta ao essencial, ao fundamental, que é o mesmo que dizer à minha essência e aos meus fundamentos.

Poder regressar, no final do dia, faz com que qualquer tempestade seja sempre passageira.

20191129


Tenho um enorme respeito pelas dúvidas de fé. A necessidade de encontrar razões para acreditar vem das entranhas e quase sempre com algum sofrimento à mistura. Mesmo que a vida não tenha ainda proporcionado ainda as desilusões que põem tudo em causa, quem quer pautar a sua vida - e a sua fé - com alguma racionalidade sente na pele uma luta que é tremendamente difícil, controversa, e permanentemente sobre o arame. ão devem, por isso, ser votados ao abandono.

Há pouco tempo, numa daquelas conversas em que as ideias saem sem grande reflexão, que, apesar de preferir ter mais certezas que dúvidas, tendo a gostar mais de pessoas com dúvidas que cheias de certezas. Enquanto as dúvidas são sempre ponto de partida, as certezas são ponto de chegada. Uma vez chegados lá não saímos do sítio, não avançamos nem recuamos mas ficamos entricheirados, confortavelmente entricheirados, enquanto a vida corre fora do nosso alcance.

No que toca a Deus, então jamais podemos ter certezas. Quando apontamos para uma cadeira e dizemos que é uma cadeira, a nossa liberdade é nenhuma: é, evidentemente, uma cadeira, ponto final. No entanto, quando falamos de Deus não temos nada físico diante do olhar, por isso, a determinada altura, não podemos afirmar peremptoriamente que Ele existe ou não existe, apenas podemos dar um salto de fé, num ou noutro sentido. E qualquer ato de fé, até porque é também uma escolha a partir de uma dúvida, é passível de discussão.

20191128


Também somos feitos de outros. E por vezes, outros que apenas lemos, vemos ou ouvimos intermediados pelas tecnologias - sim, um  livro é uma tecnologia, e poderosa!. E, quando temos sorte, por pessoas que à partida nada têm a ver com as nossas escolhas mas nos surpreendem com uma forma de estar sábia.

Há uns (bastantes) anos, tive uma muito interessante discussão num qualquer fórum cibernético com o Miguel Relvas, a propósito não sei bem de quê. A determinada altura disse-lhe que não concordava com o que ele defendia mas que admirava a sua coerência. E ele disse-me para ter cuidado com a coerência que, quando excessiva, permitiu as maiores barbaridades da história. Coerência é importante, mas não devemos tirar os olhos do que é melhor, e mudar, se necessário. Nunca mais o esqueci, ao ponto de o transportar para a minha vida, e de o aconselhar a quem me quer ouvir.

Pensei hoje nisto enquanto ensaiava uns miúdos do 12º ano. Como os conheço particularmente bem, via em alguns deles a vontade de cantar, e de se divertirem juntos partilhando aquele momento, mas que não o fizeram por uma questão de coerência. Sei que, no seu processo de procura e de afirmação, acham que já deitaram Deus fora não percebendo que a sua questão é com a religião e não com Deus, que isto de definir o Seu posicionamento na própria vida dá muito trabalho. No final não me contive e disse-lhes que os tinha visto e que deitar fora oportunidades, ainda que simples e pequenas - particularmente simples e pequenas - de serem felizes é burrice, não é personalidade. 

Às vezes somos estúpidos ao ponto de deitarmos fora oportunidades de sermos felizes. A coerência - que é importante, mas é sobretudo para os outros saberem com o que podem contar - é um meio, não é um fim em si. Claro que não vivemos sozinhos e as expectativas que geramos são legítimas e temos que as levar em conta. Mas quando passamos a viver em função delas e não as enquadramos no todo que é a nossa vida, estamos mais longe da verdadeira felicidade.

20191127



Hoje ando a trautear pelos corredores. Aqueles com quem me cruzo olham-me como se eu fosse verde e tivesse antenas. Uns - os que me conhecem melhor - sorriem; outros, surpreendidos, não conseguem ou não querem esconder a estranheza. É um dos imensos privilégios da idade: já não ligo.

Adoro acordar assim, com o coração fora do peito. Talvez seja uma reação ao dia que sei que me espera, que se adiciona à semana que já tive e à que ainda vou ter. É como se me revestisse de ânimo, se me preparasse para o embate, se me negasse o direito a reclamar. Na realidade, vivo aquela que é, certamente, uma das melhores fases da minha vida, e não o valorizar é, para além de ingrato, profundamente estúpido.

No já longínquo nono ano tive um professor de história muito peculiar. Andava sempre vestido à inglês, de pisco, óculos redondos, e ensinava história de uma forma muito física. Escondia-se atrás da secretária para exemplificar as trincheiras, dividia a sala - carteiras e tudo - para explicar as dinâmicas da Segunda Guerra Mundial, explicava a Crise dos Anos 20 com o nosso próprio dinheiro. Eu adorava-o! A determinada altura disse que todos os movimentos históricos tinham dois níveis: o circunstancial e o de fundo. E que, apesar de vivermos nas circunstâncias, é ao movimento de fundo que devemos estar mais atentos. Sobretudo na história de vida de cada um.

A oração de hoje abordava o valor do testemunho. Sobretudo em alturas de maior dificuldade. Aqui, estamos em pleno pico de trabalho, e isso nota-se pela imensa quantidade de olhos ressacados de sono e narizes mal humorados enfiados nos papéis. É justamente nestas alturas que me descubro instintivamente em contramão: trauteando nos corredores, recordando como, para além das circunstâncias, sou feliz.

20191121



Procuramos sempre o que mais falta nos faz. 

Eu, que vivo mergulhado no "para ontem", detesto viver na sofreguidão. Procuro a calma, a ponderação, o tempo, o ecossistema que torna possível a Ecologia da Escuta (aprendi este conceito recentemente) e me proporcione serenidade. 

Tudo isto me é contra-natura. 

Eu empolgo-me com extraordinária facilidade no que há para fazer. Ainda estamos em equipa a pensar nas coisas e a minha cabeça é já um turbilhão de ideias e projetos e dinâmicas e formas de fazer acontecer aquilo que apenas mal se aflorou. Fico feliz quando olho para o calendário e vejo que consigo encaixar esta ou aquela atividade, ainda que à custa do meu tempo pessoal. E depois, a partir daquele momento, as coisas armam tenda na minha cabeça e acampam, e acredito que devem ter fogueiras e isso tudo, porque me impedem de adormecer ou me acordam a meio da noite, por vezes com soluções para o que me preocupava. E depois, quando chega a altura de fazer, fazer mesmo - o que acontece a partir do minuto em que outra coisa fica feita - essas ideias levantam tenda e arregaçam as mangas e lá vamos nós para a acção. E lá ando eu, a reboque do meu próprio entusiasmo, atrás das minhas próprias ideias, à custa do meu próprio cansaço. 

E depois, paro. E expiro. E escuto. E organizo. E inspiro.

E agradeço a minha vida!

20191120


Uma das minhas mais fortes convicções de fé é que Deus nos fala. De muitas maneiras, em muitas ocasiões, através de muitas pessoas, do que vemos, ouvimos e lemos. 

Vínhamos, como temos vindo nestes últimos tempos, a rezar juntos a oração do Passo a Rezar, um excelente hábito que nos foca, nos situa e desafia no início de cada dia. Hoje era sobre a fidelidade, explicando que é a relação que temos com alguém e que marca a nossa vida, mesmo na sua ausência.

Rapidamente me remeti ao início deste ano, quando lançamos a semente à terra na Costa Nova. A minha palavra foi justamente fidelidade, e, enquanto semeava, disse em voz alta: fidelidade a mim, fidelidade aos meus, fidelidade à fé. E hoje voltei ao que escrevi na altura: fidelidade a mim e às minhas convicções, à minha história, às minhas escolhas, à minha personalidade, à minha forma de ser e de ver e estar no mundo; fidelidade a nós, à nossa história de vida, à educação que escolhemos dar aos nossos filhos, ao nosso amor, às nossas batalhas, às inúmeras vezes que nos superamos por amor; fidelidade a Deus, a Jesus Cristo, à Igreja, aos seus ensinamentos que pautam a nossa vida, às suas possibilidades, à sua forma de ser e de ensinar a ser.

E hoje, e todos os dias, pedi a Deus que me ajude a ser digno de ser amado!

20191114


Passamos, hoje, como passamos todos os dias, perto da janela das minhas primeiras memórias. Trovejava, o que tornou a memória de hoje ainda mais presente. Revejo-me, pequenito, em cima de um banco, com a minha irmã, a olhar para o - naquela altura ainda vasto, porque sem prédios - horizonte, deliciado com os raios que caíam sobre as montanhas. Imediatamente repesquei uma outra memória, uns anos depois, da praia de Salgueiros, onde estávamos acampados. Começou uma daquelas trovoadas repentinas de verão e eu corri para a praia, justamente na altura em que todos os outros corriam em sentido contrário. Que me lembre foi a primeira vez que percebi claramente que eu fazia coisas que mais ninguém fazia. Debaixo daquela chuva torrencial e maravilhado com a trovoada que caía sobre o mar, em plena praia deserta, descobri o puro prazer, que ainda hoje se mantém, de caminhar na praia sob as nuvens escuras e carregadas de chuva. O prazer do som do mar revolto, do vento a assobiar nas orelhas, da chuva fria que toma conta do corpo sem pedir licença porque a sabe tacitamente concedida.E de estar aparentemente, apenas aparentemente, sozinho. Porque, na verdade, a imensidão do mar é diminuta perante o imenso que me habita.

20191113






Tenho começado por escrever. Um verbo. Dois, no máximo. Antecipo as atitudes que precisarei de ter para que o meu dia seja Dia. Preparo-me para o embate do que aí vem, para a organização do tempo, para aquilo que não conto, para o que é para ontem e esqueceram ou esqueci. Tento estar todo, inteiro, em cada momento. Tento ser todo, inteiro, antes da tomada de cada decisão, de cada escolha, de cada resolução. Depois tento viver, usufruir, aproveitar, e para isso preciso de me sentir preparado. São breves minutos, escassos num dia de trabalho, mas fundamentais. Para que, no final do dia, possa olhar para trás e sentir que valeu a pena.

20191106


O Re da vida é-me absolutamente fundamental. Recomeçar, recuperar, reatar, é-me tão necessário quanto o respirar. Poder fazê-lo por amor, porque me sinto amado, porque sinto que posso, sem perder, foi e é ainda, muitas vezes, o factor decisivo da minha adesão a Cristo. Ter alguém - muitas vezes não é necessário ser Deus, basta mesmo alguém - que me acolhe de braços abertos e sorriso nos lábios e sinceridade no olhar apesar de mim, faz-me sempre sentir a criança que se recolhe nos braços do Pai.
Outra coisa, diferente, muitíssimo diferente, é conceder o Re. Permitir reatar, recuperar, reatar, traz consigo grandes dúvidas, grandes questões, grandes desconfianças. Conhecida a dor, abraço com maior facilidade a desilusão que a alegria, entro em perda, permito que a memória da dor seja a pauta, e descubro-me a dançar ao som do ressentimento: zangado, azedo, amargo. Então, percebo que este meu desejo de recomeçar é próprio da minha humanidade. E que, acolher, por amor, o desejo de recomeçar, é a linguagem deste Deus que me habita. E recomeço-me, e recupero-nos e reato, cá por dentro, a imensidão que nos une.
Feliz, danço ao som da Vida.

20191104


Serenar. Olhar para dentro. Respirar. Deixar que o ar entre nos pulmões por entre a respiração apressada. Serenar. Olhar. Ver. És mais que uma agenda, és mais que uma sucessão de acontecimentos marcados, és mais que uma mera peça de engrenagem. Serenar. Analisar. Há coisas mais importantes e coisas não tão importantes. Há coisas que esperam um arranque e coisas que andam pelo seu próprio pé. Há coisas tuas e apenas tuas e coisas dos outros e para os outros. Serenar. Centrar. Religar. Ao que é verdadeiramente importante. Ao que permanece. Ao que está para além do tempo. Ao que é o próprio tempo. Serenar. Encontrar. Tens uma música. Tens um passo. Tens um ritmo próprio. Não se dá dois passos ao mesmo tempo. Primeiro isto, depois aquilo. Serenar. Partir. Vamos a isto.
Uma boa semana.

20191031




Verdade e Serenidade

Evoluir é estar mais perto hoje que ontem, é avançar, é não ficar parado, imobilizado, atado ao que se é. E isso é bom. Implica a coragem de arriscar, o enfrentamento do medo, o abandono do conhecido. Permite a descoberta, o impensável, o novo que nos desperta para a existência de novos sabores, novas paisagens, novos olhares. Evoluir é bom. É sempre bom. Mas não é apenas sair do sítio. Porque também o vento se move, mas não evolui: limita-se a mover-se, daqui para ali, de lá para acolá, em função da pressão, em função da temperatura, em função do momento. Exatamente como nós quando nos falta o sentido, a meta, o objetivo. Evoluir implica caminho, rota, intencionalidade, saber onde chegar e vontade de chegar. Sem isso, somos meros lançadores de redes com a ilusão de sermos pescadores.

20191028






Verdade & Serenidade

O mero desejo de perfeição é um leitmotiv poderoso. E envolvente. E totalizante. E radical. Tens que te conhecer e à tua história, tens que te analisar e saber das tuas motivações, justificações e desculpas; tens que te perscrutar até às entranhas com coragem e determinação. E tens que cortar. O que não gostas, o que não vale a pena, o que te faz mal, o que te torna pior, o que te afasta. Tens que escalpelizar a tua história pessoal e compará-la com as dos que conheces e te conhecem. E, inevitavelmente, tens que te perdoar, pelo menos na medida em que és perdoado. Nem mais, nem menos. E, ainda assim, tens que te amar, pelo menos na medida em que és amado. Nem mais. Nem menos. Tudo isto sem que te deixes ficar. Ajustas o azimute, redefines o teu próprio olhar, voltas-te para o horizonte e, de bússola no coração, avanças.





Verdade e Serenidade

Começo a semana na belíssima capela do colégio. Daqui a pouco estará cheia da vida dos miúdos mas nesta altura está "apenas" cheia da Vida de dentro. Esta é uma excelente maneira de iniciar uma semana. Confronto-me comigo próprio na pequenez de quem sabe que está longe, muito longe, do que Deus lhe pede para ser, mas no consolo e na confiança de quem sabe que é acolhido pelo Pai na vontade de mudança e de voltar a arrepiar caminho.


20191024






Não conheço muitas abordagens quanto à questão da possibilidade. E a possibilidade, para mim, na história da minha vida, é absolutamente fundamental.

Desperta-me a curiosidade perceber porque é que a malta nova com quem lido no meu quotidiano joga tanto nas raspadinhas e faz tantas apostas. Apesar de isto acontecer com miúdos que habitam ambas as margens da sociedade, aquela que passa mais dificuldades porque tem mais baixos recursos financeiros e, sobretudo, mais baixas expectativas, deposita no jogo uma fezada que não considera em mais nenhum outro aspeto da sua vida. Quando conversamos acerca disso, eles falam, invariavelmente, do que farão com o dinheiro que vão ganhar com aquela aposta, o que, com a mesmo invariabilidade, nunca acontece. Pelo menos não significativamente.

Eu jogo no totoloto e no euromilhões desde que totoloto e euromilhões existem. Nunca ganhei nada de interessante e sei perfeitamente que, apesar de apostar o mínimo em ambos os casos, não é pela probabilidade de ficar rico que eu jogo. É pela possibilidade. Eventualmente até poderia nada mudar de substancial na minha vida - na verdade, Graças a Deus, não tenho motivos para o fazer - mas a mera possibilidade abre-me asas, abre-me ao sonho, dá-me um outro e completamente novo horizonte. Se eu o adotaria, é um outro assunto completamente diferente.

Este reino, este sonho, esta fantasia da possibilidade não me acontece apenas em relação ao ficar rico, mas a tudo na vida. Talvez tenha sido pela infância passada na companhia de D. Quixote, Major Alvega, Júlio Verne, e outros que tais mas o facto é que esta ânsia de possibilidades se mantém praticamente inalterável desde que me conheço.

E sempre que uma delas se fecha, fica a saudade da imensidão que  possibilidade me permite sonhar.

20191022


Recebi a notícia com o mesmo arrepio com que a reencaminhei para os meus filhos: ao que parece, houve abusos em Taizé por parte de um dos irmãos. 

Lá em casa todos estamos de alguma forma ligados a Taizé. Seja porque já fomos, seja porque outros foram, seja até como Igreja idealizada, Taizé é como um reduto. Já quase todos fomos felizes lá - falta apenas o mais novo - e todos queremos regressar. Sabia, por isso, que iria ser uma pedrada. Mas não podia deixar de enviar.

Esta semana, na catequese, não falamos de Taizé - que ainda não lhes diz muito - mas de santidade. Do que é ser santo e, sobretudo, se eles querem ser santos. Como já há alguns anos tínhamos falado de santidade, desta vez sabiam o que responder: santidade é querer viver com Deus como pano de fundo. Não é conseguir, não é ser perfeito, não é ser impoluto, é antes saber que temos um Pai pronto a acolher-nos de braços abertos apesar do nosso pecado. Assim saibamos ser suficiente genuínos no arrependimento e no desejo de voltar.

Quando li a notícia, foi nos irmãos de Taizé que pensei primeiro. Como deve ter sido um rude golpe! Como devem ter tremido na decisão do anúncio! Como devem ter desejado não divulgar, adiar, esperar por certezas, proteger a comunidade! E como devem confiar nos braços do Pai por decidirem viver na verdade! Por muito menos já aconteceu imensa coisa a imensas pessoas e organizações. 

Mais uma lição de vida!

20191021












"... expliquem-me como se eu tivesse cinco anos..." No início, esta minha expressão causa alguma estranheza. No final do dia, os miúdos que acompanho em Dia de Reflexão já nem me deixam terminar: "... como se eu tivesse cinco anos..."

Eu sou seduzido pela complexidade. Particularmente do pensamento, do raciocínio, que me ocupa horas todos os dias, e cuja descoberta me faz vibrar sempre intensamente. Quando consigo ler, ver, ouvir, ou esclarecer eu próprio aquilo que permanecia intuitivamente intrincado, já ganhei o dia. Percorro muitas vezes a Bíblia à procura do imenso que ainda não entendo mas que intuo que deve andar por lá, leio textos e livros e comentários, muitas vezes à procura de um pormenor que não interessa a ninguém - muito menos ao Menino Jesus - mas que teima em andar às bolandas cá por dentro, e que, enquanto anda, não me permite sossegar.

Por isso deixo-me espantar muitas vezes pela simplicidade do evidente. Do imediato. Do que funciona mesmo para quem tem cinco anos, ou sobretudo para quem tem cinco anos. Por isso regresso muitas vezes aos catecismos da infância, às orações dos pequenitos, ao básico mais básico, para me recordar que o fundamental da vida não reside no intrincado mas no simples.

Que é o lugar privilegiado de Deus.

20191016



Verdade e Serenidade. 
Odeio situações de tensão. Às vezes são inevitáveis, porque todos os dias lido com pessoas e tenho que tomar decisões e assumir posições que, naturalmente, não agradam a todos. Quando tenho que o fazer faço-o, nunca sem alguma dificuldade, mas também sem virar a cara. Mas tento preparar-me antes. Fazer uma espécie de percurso interior, antecipando aqueles que prevejo serão os meus estados de alma, por forma a conseguir seguir um guião. 
Ontem o guião era Verdade e Serenidade. Nenhuma delas é minha amiga íntima. E ambas estão intimamente ligadas. 
Provavelmente por motivos que enraízam na minha infância, tenho a tendência para a fantasia, construindo realidades paralelas que possam encaixar em mim ou nas quais eu possa encaixar. Mergulho nelas com alguma facilidade, e isso, quase sempre, provoca confusão e decepção à minha volta, e apenas à minha volta, porque eu, imerso na minha verdade privada, nem me apercebo que possa confundir ou desiludir. E como acabo por dizer ou fazer coisas que os outros não entendem e interpretam muitas vezes como sobranceria ou pura loucura, quando "acordo" para a realidade tenho tudo menos serenidade.
Também nisto estou em pleno processo de aprendizagem. Tentando antecipar os acontecimentos. Tentando rezar os acontecimentos. Tentando lançar sobre eles, no início de cada dia, um olhar o mais desapaixonado que me é possível - e muitas vezes é impossível porque eu vivo apaixonado - tentando fazer da Verdade e da Serenidade minhas amigas. 
Verdade e Serenidade. 
Hoje é um novo dia.

20191014


Ainda ontem, em conversa, partilhava aquelas que foram algumas das minhas desventuras e que, Graças a Deus, desembocaram naquilo que eu faço e sou hoje.

Acho sempre castiço quando me apercebo de particularidades de mim próprio e das minhas escolhas através de conversas de vão de escada que vou tendo com outros. É como se precisasse que eles sejam o meu espelho e apenas através deles me conseguisse ir destapando. Essa, creio, é uma das vantagens da idade: quando olho para trás consigo ver um percurso, um rumo, que continua a fazer sentido apesar dos acidentes, apesar de algumas más escolhas, sobretudo apesar de alguns dos inebriamentos com que a vida fertilmente me presenteia.

Durante alguns anos acreditei que me perderia com alguma facilidade. Era como um barco no estaleiro, que se consegue manter em doca seca graças aos apoios de que dispõe. Eu pensei, durante muito tempo, que era aí o meu lugar, no conforto da doca seca, onde o maior risco que corria era o cansaço simultâneo desses apoios, o que provocaria a derrocada final. Aprendi, no entanto, tarde mais ainda a tempo, a arte da navegação, a medo no princípio, não arriscando perder  de vista a segurança da margem,  erguendo as velas depois, arriscando o mar alto.

Essa é apenas uma das coisas boas de uma boa conversa: a redescoberta constante , no entanto, sempre nova, de nós próprios e da nossa vida.

20191009






Tem sido uma semana justamente como a prefigurava: demasiadas coisas importantes a acontecer ao mesmo tempo e eu com aquela sensação terrível de correr contra o prejuízo.
Correr contra o prejuízo nunca é coisa boa. Mas acontece com alguma frequência. Por muito que tente jogar na antecipação, pensar nas questões adequadamente - o que implica pensar nas alternativas e arranjar as soluções correspondentes - há alturas em que a vida se sobrepõe ao programado, em que a vida é o que é e não o que eu gostaria que fosse, e muito menos aquilo para o qual me preparei.

No meio disto tudo, no entanto, há sinais nos quais eu reparo e valorizo como sendo de Deus.

Todas as manhãs e fins de tarde mergulho na VCI. Lembra-me as artérias por onde o sangue é conduzido, com todos em filinha, com as entradas e saídas e os atropelos também. Hoje aconteceu algo que me espanta sempre: estávamos todos em fila, devagar paradinhos, quando se ouve uma sirene. Como por magia, num sítio onde não se via espaço , onde todos estavam com tempo contado ao minuto, abre-se uma via atempadamente, e passado uns segundos a ambulância passa por nós como se não existisse trânsito. Comove-me sempre. É muito fácil ser bom quando não se prescinde de coisa nenhuma, mas naquele sítio todos esqueceram, por brevíssimos momentos, o tempo que faz falta para o dar a quem precisa.

Estas coisas têm o condão de me por diante da vida. Por muitas coisas importantes que tenha, há sempre coisas mais importantes. E que me preenchem. Empenho total sim, compromisso total sim, entrega total sim, mas, no final do dia, pés na terra e olhos no céu.

20191007


Este é uma daqueles dias em que me sinto verdadeiramente um privilegiado. Não é um sentimento novo, ou raro, em mim, mas sabe-me sempre às mil maravilhas. Acabei de ter uma sessão de catequese com miúdos do 9º ano, na capela a pedido de uma delas, que tinha ficado de organizar esta sessão de catequese. Aproveitou algo que o sacerdote tinha dito na eucaristia de hoje e fez disso a nossa sessão de catequese. À atenção que teve durante a eucaristia juntou a sua forma de ser e levou a questão que a incomodava para o espaço onde merecia ser discutida: na capela, na catequese, com e por todos nós.
Nos primeiros tempos em que peguei neles lembro-me que uma delas disse que eu faço muitas perguntas. Foi um caminho nosso, em conjunto, ao seu ritmo, mas que permitiu que hoje se sintam à vontade para falar de tudo o que à fé diz respeito, sem receio das perguntas nem rendição simples e aparente às respostas que vamos dando uns aos outros. É uma catequese feita de perguntas e respostas, de questionamentos profundos, de procuras e achamentos, de mais partidas que chegadas. Mas é sobretudo um espaço de confiança, de descoberta, numa idade onde tudo é descoberta.
É, verdadeiramente, um privilégio poder testemunhar gente assim, deste calibre.

20191001


Uma confluência de pessoas e acontecimentos recentes. Estava em Roma, em pleno Vaticano, nada deslumbrado com a sua opulência, e lembrei-me, como sempre me lembro naquele lugar, do Tiago "Sabes, Zé? para mim isto não é Igreja, é turismo. Igreja é Taizé." Jantar de família, comemorativo, onde mais gostamos de nos juntar para jantares comemorativos. Naquela mesa redonda, com os meus à volta da mesa, a conversa acalorada à volta das coisas da Igreja. E a velha, antiga, pergunta do meu mais velho "como é possível que aceites que a Igreja paute a tua vida quando tem tanta coisa errada?" E a minha resposta: "quem configura a minha vida não é a Igreja, é Jesus. E como não consigo nem sei nem quero alimentar e viver a fé sozinho, a forma menos má de o fazer com os outros é na Igreja." Terceira confluência: missa dominical em Madrid, numa basílica menor. Tudo lá é conservador: a liturgia, a homilia, as pessoas que a frequentam. O sacerdote, velho e demasiado rotinado, abre a boca para dizer que Jesus não é contra a riqueza, é contra a opulência. E que a Igreja não é opulência. Olho à volta e vejo o contraste num altar excessivamente dourado - o dourado em Igreja é sempre excessivo - e, sobretudo, recordo a novíssima catedral de Madrid, tão recente quanto opulente.
Eu amo esta Igreja. Amo mesmo. Foi e continua a ser uma escolha minha, que não nasci dentro dela mas tudo fiz e faço para lhe pertencer. Mas, como dizia aos meus filhos naquela mesa redonda do restaurante, gostaria que fosse diferente em muitas coisas. Por isso batalho por ela todos os dias. Contestando-a. Desafiando-a. Do lado de dentro. Pertencendo-lhe.

20190925


É comum envolver-me de tal modo que me esqueço do mais elementar. Por isso gosto de voltar à base. Umas vezes voluntariamente, outras, porém, levado pela mão, como uma criança.
Amar dificilmente basta. Ou se basta. A não ser numa perspetiva umbilical. Mas aí, nesse caso, apenas existe uma pessoa amada: o próprio. Amar tem sempre uma dimensão de saída, de projeção, de transbordo. Ainda que numa dimensão mais silenciosa, como a ternura, amar tem sempre alguém dentro.
Este ano Cuidar é uma das palavras chave. Espanto-me sempre comigo próprio quando acordo e descubro aquilo que está diante dos meus olhos e não consigo ver sem que me peguem pela mão. Não há amar sem cuidar. Não há amar sem fazer crescer, sem mimar, sem acompanhar de perto, sem a alegria de testemunhar as mais ínfimas alterações, os minúsculos rebentos que são sinal de nova vida, o lento desabrochar. Não há amar sem assumir, sem fazer vida de, com e para quem se ama.
E como eu por vezes me esqueço do mais elementar da vida!

20190924



Cheguei ao CR e logo fui invadido pelo seu cheiro característico a papel e a livros. "O meu Pai tem muitas moradas" vem-me logo à memória. Eu também tenho muitas moradas. Afetivas. Eu também sinto muitas vezes que regresso a casa, apesar de estar em lugares diferentes, mas não novos. São lugares  e pessoas - sim há pessoas que são também minhas moradas - revisitados que reativam memórias, boas memórias, que vão fazendo aquela que é a história da minha vida.
Passei o fim de semana num desses lugares, à beira mar, numa das minhas moradas afetivas, com pessoas que são, elas também, minhas moradas afetivas, a falar e a viver um Deus que é a minha morada. Nada ali me era estranho. Nem sequer aqueles que eu ainda não conhecia e que começaram a fazer caminho e que daqui a uns tempos serão também memórias boas.
Há, no entanto, moradas que não são lugares de passagem, mas de refúgio, de chegar e ficar, de permanecer. São aqueles lugares, aquelas pessoas, onde permitimos que o corpo e a alma repousem, se entreguem, se confiem, onde não precisamos estar vigilantes porque nos sabemos incondicionalmente amados. É aí, a esses lugares, a essas pessoas, que regressamos sempre, porque corpo e alma precisam de regressar sempre, para que possamos verdadeiramente ser. De corpo e alma inteiros.

Não há, na vida, nada que se possa sequer aproximar da sensação de amar e ser amado. É como se as várias imagens que compõem a nossa vida, e que se vão lenta e progressivamente afastando umas das outras com o tempo, se voltassem a alinhar e o mundo se tornasse perfeito e nós perfeitos no mundo.

20190916


Tendencialmente, instintivamente, ferozmente, evitamos a dor. Comprometemos e descomprometemos, abdicamos e ligamos, recuperamos e perdemos, na vã tentativa de lhe escapar. Por vezes vamos ao limite de nós mesmos, ao limite dos limites que estipulamos para que nos possamos ainda reconhecer quando nos enfrentamos com o nosso reflexo, para que a dor não se torne tão presente. Tão inexoravelmente presente.
Em vão. É sempre em vão que fugimos da dor.
A sabedoria, então, não está em fugir da dor mas em integrá-la. Aceitá-la, torná-la nossa, sabendo que que também a dor é vida, também a dor é importante para que a vida seja plena. Também somos dor. Apenas assim nos aceitamos como um todo. Apenas assim nos conseguimos confrontar com a nossa própria escuridão, porque ainda a ilumina a nossa própria luz. Apenas assim, enquanto não nos perdemos na fuga, enquanto ainda nos temos, podemos superar a dor. E dar-lhe um sentido. Que é apenas um: o do amor.

20190904


Sempre gostei muito dos Jesuítas. Da sua visão do mundo, do seu estudo, da sua cultura, que é quase sempre mais vasta que a mera teologia. Normalmente os jesuítas são pessoas do mundo, embora ultimamente tenha pressentido uma tendência mais elitista do que gostaria. Do que não gosto mesmo, é da recorrência com que falam do demónio ou do diabo.

Não acredito que sejamos anjos ou demónios. Acredito que somos anjos e demónios. Acredito que, antes de mais, somos. Com a nossa personalidade, com os nossos vícios e virtudes, com as nossas dificuldades e dons. E acredito que vamos sendo, nos vamos definindo, à medida que vamos permitindo ou impedindo que as circunstâncias nos moldem ou desviem do que somos chamados a ser. No âmago das nossas entranhas.

E gosto de acreditar, ou faço por acreditar, que se nos dermos verdadeiramente ouvidos, se nos escutarmos atentamente no silêncio onde Deus nos fala, e se tivermos a coragem de fazer nossa essa voz conjunta, seremos mais felizes. Interiormente mais felizes. Exteriormente mais alegres.

20190901



Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.

Na minha vida, há várias passagens bíblicas que me foram definindo ao longo dos tempos. Esta é uma delas. E uma das mais marcantes. Em várias dimensões.
A primeira, e aquela que será mais evidente para mim, é o de me deixar ficar para o fim. Na realidade, sinto-me sempre mais confortável na sombra que na luz. E quando assumo a luz é sempre no serviço, sempre no "lá tem que ser", porque o que gosto mesmo é de fazer parte de, sem dar nas vistas. Ao longo do ano que passou tive a possibilidade de participar em algumas orações no fundo da Igreja e isso é para mim um privilégio. E isso vem desta passagem. 
Outro aspeto que me liga a esta passagem é o gostar de ser chamado. Provavelmente será por defeito e inconsistência de personalidade, ou devido a mais uma das minhas carências afetivas, mas gosto de me sentir querido, gosto que gostem de mim, e isso é sentível quando me chamam. Normalmente, quando me cruzo com alguém que não vejo há algum tempo, acredito sempre que não se lembra de mim, e gosto quando me reconhecem, ainda que apenas pelo olhar. 
Não é que eu seja intrinsecamente humilde. Tenho dias e ocasiões e momentos e pessoas, como todos nós, mas gosto sempre mais de mim quando consigo se-lo. 
Há uns anos, em Taizé, uma das questões colocadas era que passagem bíblica marca a nossa vida. Na altura, eu não tinha uma declarada, evidente, daquelas que eu sentisse que me identificasse. Agora tenho várias. Algumas que me marcaram, outras com quem me sinto identificado, outras ainda que funcionam como metas a alcançar, como desafios que aceito na tentativa de ir sendo alguém melhor. Ainda que saiamos a perder, é sempre melhor medirmo-nos com a Palavra que com muitas pretensas sabedorias de algibeira que andam por aí. 

20190831


Saborear. Esta é a palavra chave: saborear. Chego demasiadas vezes à conclusão que a expectativa dá cabo de tudo. Que se estiver aberto ao que é, e menos ao que gostaria que fosse, vivo melhor porque vivo mais feliz. E saboreio o que a vida me dá em vez de me frustar.
Há uma parte de mim que é mais ou menos obsessiva. Gosto do processo de organizar. E organizar é antecipar cenários: aqui acontecerá isto e eu precisarei daquilo naquelas condições. Pode ser contraditório com o saborear, mas é justamente essa antecipação de cenários que me permite depois saborear melhor. Porque, pelo menos para mim, saborear e acaso não conjugam. Eu preparo antes para poder saborear quando as coisas acontecem, à medida que as coisas acontecem. E se acontecerem à minha medida, melhor.
Quase sempre, não reajo bem ao imprevisto. O meu primeiro impulso é quase sempre barafustar. Estava tão bem! Estava tudo tão bem pensado! Tinha tudo tão preparado! Expectativa, expectativa, expectativa! A minha sorte é que, logo após a esta reação instintiva, normalmente consigo encaixar a realidade nos diversos cenários antecipados e reagir adequadamente.
Passei estes últimos dias de férias a preparar o próximo ano. Faço esquemas sobre esquemas, escrevo a mesma coisa várias vezes, na ânsia que as ideias, ao passarem para o papel, deixem finalmente a minha cabeça em paz. Escrevo e reescrevo, leio, organizo, preparo. Sabendo - porque a vida mo permite saber - que, logo que o apito soe, pouco acontecerá como tinha antecipado. Mas que, se não o tivesse feito, se não tivesse antecipado cenários e respostas aos cenários, não seria capaz de aproveitar a viagem. E isso, sim. Sempre foi para mim o intuitivamente mais importante: saborear cada momento da vida que me é dada a viver. Esquecendo os cenários. Esquecendo as expectativas. Aproveitando a vida.
Confuso? Sim, este sou eu.

20190825


Enquanto solávamos numa esplanada junto à praia, olhava as pessoas que passavam no solarengo sábado de agosto. Adoro olhar as pessoas que passam. Ver como andam, com quem andam, ouvir os fragmentos das suas conversas que me entram nos ouvidos na sua passagem por mim. Particularmente os casais mais velhos que nós que ainda caminham de mão dada e me fazem acreditar que, apesar de tudo, o amor ainda acontece. 
Foi justamente quando um desses casais passou junto à esplanada onde estávamos que dei comigo a sonhar, de olhos abertos, com o futuro. Não é que espere ou deseje que ele venha a passos rápidos - eu tenho tempo! - mas é que nem me assusta nem, se as coisas correrem pelo melhor, me impedirão de fazer aquilo que mais gosto. 
Na realidade, continuo a sonhar com a casa da colina à beira mar, com longos passeios recheados de excelentes conversas na melhor das companhias. Sonho com a antecipação da visita dos que amo, preparando, para cada um deles, um cesto com as coisas da nossa horta, das nossas árvores de fruto. Sonho com o meu canto sossegado para as minhas leituras, para a minha música, para os meus filmes, já não como espaço de refúgio mas de equilíbrio. Sonho com as nossas manhãs e os nossos finais de tarde, à beira mar, com a serenidade e beleza de uma vida saborosamente recheada.
Sonho imenso com o futuro. Sempre sonhei. Ou melhor, quase sempre, porque também a minha vida teve alturas em que não conseguia ver o amanhã, quanto mais o futuro. Mas este é, provavelmente, um dos segredos do meu otimismo: consigo ver, quase saborear, o que está para vir. 
Também isto é fé.

20190821


Tenho aproveitado estas férias para ver filmes. Um deles, que estava na carteira há muito tempo, é "A Queda", que relata os últimos dias passados no bunker de Hitler. Um filme densíssimo, violentíssimo, durante o qual tive que registar algumas das interrogações que me suscitou, até como forma de lidar com tamanha violência. Sobretudo as perpetradas pelos pais aos seus filhos, que desde que sou pai nunca consegui ver da mesma maneira.
Uma das reflexões que me surgiu e que me intrigou foi que, no final, a passividade de uns e de outros face à morte era muito semelhante. Se os judeus aceitavam morrer sem se revoltarem, no final os militares mais fiéis a Hitler fizeram o mesmo: suicidaram-se mesmo quando nada o exigia. Em nome de quê uns e outros aceitavam morrer? Em nome da dignidade? Em nome da vida? Em nome da morte? Em nome da adesão total a uma religião ou a uma ideologia?
Temos que ter muito cuidado com o lobo que alimentamos dentro de nós. Com aqueles que escutamos, com aqueles que lemos e vemos e por cujos ideais pautamos a nossa vida. No filme, a forma como Goebbels e Hitler desdenharam do povo, responsabilizando-o pela escolha de os colocarem no poder e até da destruição da Alemanha, é muito impressionante. Até porque, no fundo, é verdadeira: foi o povo alemão que, em massa, votou para que Hitler cometesse todas aquelas atrocidades.
Existe, ao  longo de todo o filme, a dicotomia entre um fanatismo completamente irracional por parte dos próximos de Hitler que contrastava com a sua evidente demência e incapacidade de se aperceber da situação.
É um filme muito inquietante que, como todos os bons filmes, vai andar cá por dentro algum tempo.

20190812


Já escrevi algures por aqui que o Tempo traz consigo uma outra perceção das coisas. Que, quando as coisas correm bem, não é mais premente mas desliza em sentido oposto, o da suavidade, da serenidade. É até paradoxal, porque à partida o que se imaginaria era que, tendo nós menos tempo, teríamos mais pressa. Não tem sido assim.

Talvez esteja a escrever isto influenciado pela serenidade destas férias. Mas é justamente disso que estou a falar. Estamos numa fase da vida em que poderíamos fazer outras escolhas. Os filhos vão sendo cada vez mais autónomos, vamos tendo mais folga financeira, sobretudo quando comparada com os aflitivos anos que já tivemos, e no entanto, o que escolhemos vai tomando o caminho da simplicidade e, sobretudo, da serenidade. Nada de aeroportos, nada de viagens longas, nada do temo vertiginoso de outros tempos em que chegávamos ao trabalho mais cansados do que tínhamos saído. Vemos como algumas das escolhas dos nossos filhos vão nesse sentido e damos Graças por não ser já esse o nosso tempo.

Saber envelheSer pode ser complicado. Mas é fundamental. O nosso corpo é já outro, respondemos a diferentes estímulos, e o que desejamos profundamente não tem muito a ver com aventura radicalidade mas com a radicalidade do encontro profundo. É diferente. Muito diferente!

20190712


Uma das coisas boas de se ter muitos filhos é que podemos comprovar, com o coração, como as pessoas são diferentes. E o que faz dela quem são não são compartimentos estanques.

Uma delas conversava comigo um dia destes e, face a alguma circunstancial indefinição, sentia necessidade de voltar a redefinir algumas prioridades. Como nas suas inquietações é muito parecida comigo, eu sabia perfeitamente do que estava ela a falar. e sugeri-lhe que pegasse numa folha de papel e escrevesse o que a preocupava, esquematicamente, por forma a ser mais clara a resolução. Que normalmente é mais simples do que pensamos ser.

Hoje de manhã estava justamente a pensar nessa nossa conversa enquanto prosseguia com a minha rotina matinal, encantado da vida. Os meus filhos acham piada aos meus passos que são, quase invariavelmente, os mesmos todas as manhãs. Tenho as coisas no mesmo sítio, faço as coisas pela mesma ordem, e quando falta alguma delas ajusto-me sem dificuldade mas com alguma sensação de perda. Talvez encontre na previsibilidade da rotina a segurança que preciso sempre ter para avançar. Como corpo e alma são, frequentemente, coisas distintas em mim, talvez a rotina do corpóreo seja necessária para que a alma se possa aventurar. Sobretudo porque sabe que pode sempre voltar.

Nunca tinha pensado nisto!

20190711


Sol na eira, chuva no nabal. Eis uma expressão que utilizo muitas vezes. Em forma de conselho. E que faria bem melhor se guardasse, religiosamente, para uso próprio.

Lembrei-me dele esta semana.  Fruto de conversa, de desilusão, de alguma discussão. De indefinição. Minha, claro, que quero sempre o melhor de dois mundos. Impossível, claro. Não é possível servir a dois senhores. Nem partilhar o impartilhável. Acaba-se, irremediavelmente, dividido. E, se partilhar é multiplicar, dividir é diminuir, é cortar pela metade, é não ser nada, muito menos o que se espera, deseja muito, ser. É ficar a perder, é ninguém ganhar, é ser metade do já pouco que se é.




20190709

Volta e meia regresso ao twitter. Porque gosto. E porque preciso.
Gosto do twitter porque lá nada tem filtro. As pessoas escrevem o que diriam na tasca. Como se ninguém ouvisse, como se ninguém lesse, como se não ficasse registado. E leio as coisas mais incríveis! Quando se trata de futebol, então, é completamente irracional. Pessoas que vou vendo e ouvindo e até respeitando pelas suas opiniões e postura perante a vida, aqui perdem completamente as estribeiras e são capazes das maiores barbaridades.
Por isso preciso de ir ao twitter. Para desmistificar. Para me lembrar que todos nós dizemos coisas que preferiríamos calar e que teríamos calado se respirássemos convenientemente, dando tempo para que os nossos dois dedos de testa funcionassem. E se não tivéssemos palco.
Assim, perante a estupidez alheia, não me sinto tão só.







Nunca consegui entender o racismo.
A diferença é sempre complicada. Para mim, que gaguejo, sei um bocadinho o que isso é, Numa escala muito pequena, claro, porque normalmente a gaguez até desperta alguma simpatia e cativa quem me escuta. Mas ainda assim é diferença, causa estranheza e reações que não ocorreriam se não existisse. E eu vejo-as. Todas. Mas não há grande estigma nisso. O que não acontece com o racismo.
Trabalho com miúdos brancos, negros, ciganos, ricos, pobres, com inteligências e aptidões diferentes, com religiões diferentes, sem religiões, com boas referências de vida, com péssimas referências de vida. Sou um privilegiado, portanto. A todos eles conheço pelo nome e conhecem-me. Conheço um pouco as suas famílias e os seus percursos. Há algo que os une: são miúdos. Têm os mesmos anseios, as mesmas brincadeiras. E são muito diferentes. Nos seu instintos, nos seus sonhos, na sensação de proteção ou de luta, nos seus anseios, naquilo que eu gosto de chamar o horizonte de futuro. Todos sabem o que á partida os espera. A uns basta que deixem correr o marfim para que a vida lhes sorria, assim, sem esforço; outros sabem que, se adormecerem no pedaço, acordam numa cadeia qualquer ou com filhos aos 15 anos.
O racismo é o tratamento primário da diferença. É preguiçoso, porque se fica pela aparência. É mau porque não liga nenhuma a quem existe por detrás da aparência. É terrível porque não deixa que a pessoa exista, por si só, apenas a sua aparência. E isto é válido para negros, ciganos, indianos, betos, gunas, gays, mulheres, homens, padres, comunistas, portistas, benfiquistas... o que quer que seja que seja algo diferente de nós próprios.

20190701


Suicidou-se. Não morreu, suicidou-se. É muito diferente! Para quem fica. E quanto mais íntima a ligação, maior a diferença, exponencial a culpa. Suicidou-se.

Recuo sempre. Ao choque, inacreditável, de um outro suicídio, ou pretenso suicídio, porque nunca soube a certeza, porque nunca perguntei, porque na altura não me pareceu assim tão importante. Devia ser. Se ainda hoje recuo imediatamente àquele dia, devia ser importante saber. Sei que me recordo como se fosse hoje a questão que imediatamente me assaltou. Onde estava eu? Porque não me ligou? Porque não falou comigo? Será que tentou? Quando foi a última vez que conversamos? Como foi a última vez que conversamos? Conversamos? Tive tempo, dei tempo para conversarmos?

Ontem, depois de conhecida a notícia, dei comigo a pensar na eutanásia. Preferia mil eutanásias a um suicídio. Talvez na ilusão que no processo da eutanásia a solidão está ausente. Uma visão romântica, de certeza, mas ainda assim, arrisco que a solidão no suicídio deve ser absolutamente esmagadora.

Não é a mesma coisa morrer de morte morrida e de morte auto-infligida.

Conheço o desespero. Fomos apresentados numa noite escura, quando dobrava a esquina do desamor, rumo à solidão. Conheço a forma como se insidia, como se faz presença pequena a princípio, avassaladora totalidade, se lhe sermos confiança. Sei como sorri, como nos puxa para o lado para nos sussurrar ao ouvido, como nos apresenta o charco como única possibilidade de futuro.

E conheço o amor. O arqui-inimigo do desespero. A quem dei ouvidos. E o derrotou.

20190628


Ando a ler três livros. Ao mesmo tempo. Vou saltando entre eles com facilidade porque as temáticas estão ligadas: a fé vivida. Um deles é o último do Tomas Halik, um dos meus autores de eleição. Os outros dois estão ligados à Logoterapia e, por isso, a Viktor Frankl. O problema não é saltar entre eles, é o tempo que me demoro quase em cada uma das suas frases. Leio, aponto - é um velho hábito - e viajo. Uma eternidade de tempo para uma profundidade ainda maior.

Gosto mais de pontos de partidas que de chegadas, de perguntas que de respostas, de viagens que de certezas. Principalmente no campo da fé. Fico feliz quando escuto ou leio algo absolutamente novo de uma passagem que li e reli dezenas de vezes. Isso acontece porque as interpretações são diferentes e também porque eu sou diferente, e são diferentes as minhas sedes.

Acabei ontem (mais) um curso ligado ao estudo das coisas da fé. Fi-lo com muito gozo, muito estudo e, confesso, alguma facilidade. Conseguia ler e ligar à vida, a algo que eu próprio tinha já vivido, dito, estudado, semeado de alguma forma com alguém. Esta é uma sensação algo nova e muito agradável: parece que, finalmente, as coisas encaixam, encontram o seu sítio e fazem sentido juntas, exatamente da forma como se entrelaçam umas como as outras. A sensação que tenho é que todas as leituras, todos os estudos, todas as experiências, todas as entregas e recebimentos vão formando um contínuo, um terreno sobre o qual vai assentando a minha vida.

Esta é uma sensação nova e, confesso, muito agradável!

20190604






Tenho andado desligado daqui. É mais ou menos comum, ou sazonal, se entendermos os estados de espírito como estações. Quando ando feliz, acertado, concertado, integrado, tendo a escrever menos. Se a isso juntarmos uma imensidão de coisas para avaliar, fazer e programar, fica mais difícil. Se, ainda por cima, estiver calor e o corpo não respirar, então aí é quase impossível sair alguma coisa, quanto mais alguma coisa minimamente de jeito.

Sim, estou meio concertado (não confundir com consertado, que isso ainda falta), resignado talvez, mas mais feliz. Já não ladro atrás de cada carro que passa ao largo, já não ando à procura da última bolacha do pacote e os moinhos de vento vão sendo menos sedutores. Já tenho muito com que me entreter e, sobretudo, que saborear, calmamente, enquanto me preparo para o por do sol. Provavelmente será da idade, do cansaço na sua versão mais pessimista; da sabedoria na versão mais otimista, que prefiro, mas estou numa outra fase, diferente, porventura mais reflexiva e certamente menos impulsiva. E isso é bom.

Á medida que o tempo passa tenho cada vez mais certezas que julho de 2017 foi um daqueles momentos decisivos da vida. O retiro em Vila Verde permitiu ver-me com outros olhos e, sobretudo, não me julgar tanto. Sei que tenho imenso a construir mas já não me martirizo por isso; sei que tenho imenso a crescer e a fazer mas já não me fustigo sempre que o não consigo; sei do imenso que me falta mas faço disso caminho e não desilusão. Na verdade, não sei se isso é bom ou mau. Depende de quem escuto. Uns dizem-me que baixei a fasquia e me rendi à mediocridade do que sou; outros dizem-me que cresci em sabedoria e por isso permiti que a vida se ajustasse a mim. Ou vice-versa.

Não sei. Sei que de manhã, quando acordo, já me consigo ver ao espelho.
Sem desviar o olhar.

20190524


Como qualquer mortal pensante, estou mais ligado a algumas ideias, que expresso em palavras idênticas, e resultam de uma linha de vida que, para o bem e para o mal, vai sendo a minha. Olhares, escutas, caminhos, juntos, tempo, parecem ter lugar cativo naquilo que escrevo apenas porque têm lugar cativo no que vivo.
No entanto, por vezes acontece ver, ler, ouvir, deparar-me de alguma forma com algo que escapa a esta dinâmica. Acontecimentos curtos ou esporádicos, que nada teriam para acamparem cá por dentro de são fosse uma palavra, um olhar, algo que me causasse espanto verdadeiro - o que, talvez fruto da idade, vai sendo cada vez mais difícil.
Mudei de operador de tv e net e tiveram que ir uns senhores lá a casa instalar o serviço. Dois. Brasileiros. Ambos na casa dos 30 e muitos, 40  e poucos. Um deles absolutamente normal. Outro, porém , com um olhar que ainda anda por aqui: triste, sofrido, mas grato. Como estivemos juntos a manhã toda, a determinada altura conversamos um pouco. Este homem, o do olhar, estava cá há um mês. Veio com a mulher e dois filhos, de dois e cinco anos. A meio do caminho percebeu que fora burlado e viu-se, com a sua família, num país completamente desconhecido, sem dinheiro nem lugar para ficar. Não virou a cara à luta - porventura até por falta de alternativa - e agora andava à procura de casa para alugar. Muito grato aos portugueses, que os acolheram como se fosse da família - palavras dele - e de quem só diz bem.
Calculo que seja preciso um estado de desespero absoluto para alguém se aventurar a ir para um lugar desconhecido com mulher e dois filhos pequenos. Desespero e confiança. Realmente as coisas mudam quando não as lemos mas as escutamos diretamente, quando o que vemos não são recortes de jornais ou fotos de redes sociais mas olhos, doridos, como o que tinha diante de mim.
Aquela curta conversa anda ainda cá por dentro. Penso como ele estará, se já encontrou casa, se a sua mulher já trabalha, se os seus filhos dorme à noite. Dá vontade de pegar neles, não para os meter numa redoma mas para os proteger, e tentar tudo para que possam ter as condições de sustentar a sua família com dignidade e possibilidade de futuro. Afinal é para isto a política, para ajudarmos a criar as condições para que todos possam ser felizes.

20190509


Disse à mesa que o Jean Vanier iria ser santo rapidamente. Como é hábito quando falo nestas coisas cuja importância os meus filhos ainda não entendem, fui olhado de lado, meio no gozo, como se eu vivesse noutro mundo. Como é hábito, sorrio e deixo que a vida se instale.

De há uns anos para cá - creio que depois de visitar a campa do Ir. Roger - tenho vindo a perceber como é importante termos contacto com santos. Atuais. Conhecermos a vida deles, lermos os seus escritos, contactarmos diretamente com a sua obra. Na verdade, pouco sei da sua vida concreta, mas o seu legado é uma lição de vida. Tanto o Ir. Roger como Jean Vanier são parte da nossa casa, apesar de nunca lá terem estado. Os meus filhos estão ou estiveram envolvidos com a dinâmica de vida e oração de Taizé e estão ou estiveram envolvidos na dinâmica de acolhimento do Fé e Luz. Não conhecemos os seus fundadores pessoalmente e, no entanto, pautam alguns dos momentos das nossas vidas. E isso é bom. Muto bom. Ainda que eles ainda não o consigam perceber.

Recordo-me da controvérsia que eu provocava sempre que dizia que o Papa não tinha mais responsabilidade que eu ou qualquer cristão na transmissão da fé. Claro que tudo o que ele diz ou faz tem uma outra dimensão mas acredito que aquilo que cada um de nós diz ou faz é igualmente importante. Para a formação da fé dos filhos o testemunho dos pais é mais importante que o do Papa, para a aprendizagem do processo de escolhas também, e acontece o mesmo na forma como a fé se plasma ou não no concreto da vida vivida. A minha responsabilidade na transmissão da fé é igualzinha à do papa. Temos papéis diferentes mas temos a mesma responsabilidade. Se não aos olhos dos homens, pelo menos aos olhos de Deus.

Da mesma forma, acredito que pessoas como o Ir. Roger e Jean Vanier e uma imensidão de outras cujos nomes desconhecemos fizeram muito mais para a vida de fé de alguns jovens que todos os papas juntos. Não são menos ou mais por isso, são diferentes. Assim como eu e qualquer cristão. Por isso é muito bom quando descubro que tenho para quem olhar para, pelo menos em alguns aspetos, tomar as medidas da minha própria vida. Se a minha referência fundamental é Jesus - é com Ele que me meço todos os dias - fico sempre feliz quando confirmo que outros apostam a vida em fazer o que Ele fez. E, Graças a Deus, à minha volta encontro, todos os dias, pessoas assim, que, quando me meço com elas, saio a perder. É sinal que estou no caminho certo.

20190423






Diariamente leio muita gente, nos mais variados meios - blogues, jornais e livros são o meu meio de eleição - acompanho muita gente, converso com muita gente. Nem sempre aprendo mas fico sempre feliz quando aprendo. Sem me preocupar de onde vem o que aprendo. Muitas vezes vem de onde menos espero e recrimino-me por não o esperar, noutras vezes vem justamente de onde ou de quem eu espero e fico feliz pela confirmação. Também não sou esquisito acerca do que aprendo: aprender é aprender e faz-me sempre feliz. Nem que seja para não fazer ou não dizer ou não sentir, tudo isso é aprender e de tudo isso se faz a minha vida.
Um dos muitos blogues que sigo é o da Helena Sacadura Cabral. Por vezes gosto, por vezes não gosto, por vezes passo a correr, por vezes detenho-me na leitura. Gosto particularmente da forma como fala do e com o filho Miguel, já falecido. E aprendo. E fico sempre feliz quando aprendo.

20190420



Páscoa. Férias da Páscoa. Casa, celebrações, compras, limpezas, filhos. Ter de novo a casa cheia com a inevitável e saborosa confusão, com as inevitáveis e saborosas discussões, com a inevitável ausência de silêncio e sossego. Esse, juntamente com a serenidade, estão reservados para as caminhadas a dois e encontramos todas as noites na nossa Igreja, em comunidade, nas belíssimas celebrações que nos promovem o reencontro.

A Páscoa é sempre tempo de regressos.

Há já coisas que não faço a mínima ideia de como é viver sem elas. Não imagino como será viver sozinho, não imagino como será decidir sozinho o que quer que seja, não imagino como será projetar um dia tendo-me apenas como ponto de partida e chegada. Da mesma forma, não imagino como será viver sem Deus. Sem celebrar Deus. Não imagino como será Domingo sem Eucaristia, Natal sem Nascimento, Páscoa sem Ressurreição. Não são meros rituais, meros acontecimentos nos quais participamos externamente. São, todos eles, momentos de encontro, distintivos, que provocam um antes e um depois, alturas de confronto entre o que sou, o que quero ser e o que sou chamado a ser e, por isso, tempo de reconciliação, se não comigo próprio (é-me sempre mais difícil reconciliar-me comigo próprio), pelo menos com os meus outros. Que são sempre o melhor (único?) caminho para me reconciliar comigo.

À medida que os filhos vão sendo adultos vamos tendo formas distintas de celebrar estes momentos, e vai sendo mais difícil estarmos todos juntos nas mesmas celebrações, como acontecia até aqui. A dificuldade começa até na minha aceitação interior - que a exterior está lá - das suas escolhas de caminho. Para eles não é tão importante a presença nas celebrações - das quais ainda não sentem necessidade - e passam por este tempo mais no encontro pessoal que no encontro manifesto com Deus. Não lhes doem ainda os ossos, para utilizar uma sábia expressão que ouvi em Taizé. Os nossos ritmos vão sendo cada vez mais diferentes, nesta como noutras vertentes da nossa vida, o que implica um ajustamento até do que é ser família. Se até aqui era estarmos juntos nas mesmas coisas, agora é outra coisa, é amarmo-nos e preocuparmo-nos à distância e, por vezes, em silêncio. É a alegria de estarmos juntos à volta da mesa, de nos deitarmos com (quase) todos ao alcance do olhar, é o saborear o momento, sabendo que não durará muito porque daqui a pouco retorna tudo à sua rotina, longe de nós.

E ficamos nós. Os dois. Saborosamente os dois. Nas rotinas que vão sendo cada vez mais apenas nossas mas igualmente saborosas, feitas de descobertas e redescobertas, de muitas conversas, de caminhadas interiores e exteriores. De ajustes e reajustes, nesta aprendizagem mútua que nos vem da percepção que seremos cada vez mais - e mais saborosamente - nós.

E isto, tudo isto, é, verdadeiramente, tempo de Páscoa, tempo de Passagem, tempo de mergulhar da vida para que deste mergulho possa sair Vida.

Deus seja louvado!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...