20221219

Ontem fomos ao circo. Um espetáculo de qualidade, mesmo para mim, que não gosto por aí além de circo. Mas respeito muito aquela gente e a maneira como escolheram viver. Como acontece quase sempre nestas alturas, sinto-me muito mais atraído para prestar atenção à sombra que à luz. Gosto de ver o que as pessoas fazem quando a luz escolhe outro foco de atenção, e aqueles que habitam a luz dão sempre boas lições quando estão na sombra. E ontem não fugiu à regra.

Mas ontem foi dia de festa. Porque não fui eu quem foi ao circo, mas os nossos miúdos do RAIZ. A excitação era tanta que a determinada altura (às vezes sou assim "tapado") lhes disse para falarem baixo, mas logo me apercebi da minha estupidez. Na verdade, todo o espetáculo está montado para que eles vibrem, aplaudam, dancem e cantem, e isso não é compatível com vozes controladas e rabiotes sossegadamente alapados nas cadeiras. E se alguém sabe vibrar até ao limite das gargantas, são eles. E como foi bom vê-los a vibrar!

É a segunda vez que vamos, juntos, ao circo. Graças à enorme generosidade de um patrono que tem proporcionado experiências aos nossos miúdos que, de outra forma, estariam fora do seu alcance. No final do circo, enquanto regressávamos a casa, falávamos justamente disso, de como há pessoas que gostam de fazer o bem, que pensam efetivamente nos outros, que se empenham, efetivamente, para que os outros possam ter uma vida um pouco menos dificultada. e "os outros" aqui repetido, são mesmo outros, são mesmo miúdos que eles não conhecem, de uma realidade com a qual não contactam diretamente, o que dá ainda mais valor ao seu olhar para quem habita margens que não são propriamente as suas.

Eu, que tenho o privilégio de trabalhar com um pé em cada margem da sociedade, testemunho todos dias essa capacidade de entrega abnegada, muitas vezes à custa do próprio bem estar, que jovens e adultos fazem questão de viver. Todos os dias recebemos jovens que habitam as classes privilegiadas e encontram aqui, no RAIZ, "o melhor da semana" (palavras suas). Miúdos (sim, também eles são ainda miúdos, ainda que um pouco mais velhos) que não precisariam disto para nada mas que encontram, nesta entrega, motivos para sorrirem e serem e fazerem, juntos, uns e outros um pouco mais felizes.

Dizem-me muitas vezes que eu sou um otimista. Como não? O que hei de eu ser quando testemunho, todos os dias, a entrega aos outros? Sou um otimista. Mas, acima de tudo, sou um privilegiado. Por estar rodeado de gente assim.

20221129


Vou lendo aqui 

https://www.americamagazine.org/faith/2022/11/28/pope-francis-interview-america-244225

com calma, saboreando, a entrevista que o Papa deu a um orgão de comunicação social norte americano. Não li tudo, ainda, porque gosto de ir toando notas, refletindo, por partes, deixando que as palavras ecoem em mim e tenham a necessária repercussão na minha vida. Nada do que leio na e da Igreja me é estranho, me é inócuo, promove sempre uma reação - por vezes meramente instintiva - da minha parte. Ou concordo, ou discordo, mas tomo sempre uma posição. 

Na parte desta entrevista que já li, quando inquirido acerca da Conferência Episcopal americana, o Papa responde que para ele o que é importante é a relação sacramental entre o Bispo e a sua comunidade. O resto é organizacional.

Sorrio. Não poderia esta mais de acordo. E extrapolo: o importante é a relação íntima de cada cristão, de cada pessoa com o Pai, com Jesus Cristo, mergulhado no Espírito. A Igreja é, para o cuidado e o crescimento desta minha relação de fé, absolutamente essencial, sacramentada, é o lugar onde a minha fé bebe, se desenvolve e se vive (dentro e fora das suas paredes, mas é de Igreja com letra maiúscula que estou a falar). Mas acredito que nada nem ninguém, nem mesmo a Igreja, tem a capacidade de coartar essa ligação intimíssima, profundíssima, pessoalíssima entre o Pai e cada pessoa que procura esse encontro com o Pai. Seja qual for a sua circunstância.

E estou a ver a cara torcida de muitas pessoas quando faço esta afirmação.

20221124


Tenho, não o hábito, mas o propósito, de rezar todos os dias. Para além de fazer parte do que faço - toda a minha vida profissional gira em torno de Deus - faz parte do que sou - toda a minha vida acontece, efetivamente, com Deus dentro. Rezar é-me, por isso, tão natural quanto respirar. No entanto, há dias em que sinto uma imensa saudade de rezar! A verdade é que os dias se vão sucedendo uns aos outros, as pequenas questões, os pequenos trabalhos, o pequeno quotidiano vai avançando, e eu vou saltando pelos dias, com a leveza de um hipopótamos, de nenúfar em nenúfar, tentando manter o equilíbrio impossível, dando-me por satisfeito por chegar ao final do dia vivo e, ainda por cima, satisfeito com o mínimo de eficácia conseguido. E sinto imensa falta da paragem, do nosso mútuo diálogo interior, na serenidade, no encontro profundo, na mútua redescoberta. Sinto a falta do clima interior de Taizé, daquele ritual de chegada à capela, do meu destapar - tiro o gorro, o cachecol, dispo o casaco, descalço as botas e estou pronto para acolher o Senhor - que é preenchido pela oração. Não é que precise de Taizé para o fazer; é que preciso de parar e de me destapar para o  fazer. É outra coisa. É diferente. E preciso de ler. De parar para ler. De serenar para ler. E de ler para serenar. Preciso de um novo ritual. De um outro ritual, Que possa dar o devido espaço ao silêncio, ao recolhimento, à leitura, à oração.

20221102



Volta e meia sinto-me sozinho nesta Igreja que amo e à qual dedico grande parte da minha vida. Não é coisa que me custe assim por aí além, nem é coisa de agora. É de sempre. Provavelmente porque sou um tardio na fé, porque nasci no seio de uma família que ainda não era católica, porque apenas com cerca de 15 anos, e por vias travessas, descobri a imensidão de Jesus, provavelmente por isso tudo e mais alguma coisa, há aspetos na Igreja que eu não entendo e por isso não posso defender. Um deles, que vem recorrentemente à liça, é a questão do purgatório, que está ligado às almas que se pretensamente se salvam graças à nossa oração, que está ligada às intenções das missas e isso tudo.
Eu acredito num Deus infinitamente bom, num Deus que espera até à ultima para acolher quem O busca, um Deus que não depende em nada dos homens a não ser para Lhe abrirmos a porta. Acredito, por isso, em termos meramente hipotéticos, na existência do Inferno, que é "apenas" a negação de Deus. Outra das coisas em que acredito, e que está intimamente ligada a tudo isto, é que estaremos, todos, face a face com Deus, olhos nos olhos, e por Ele seremos acolhidos, da mesma forma, com o mesmo amor, com a mesma disponibilidade e alegria por parte do Pai, independentemente do que tivermos feito nesta vida. Acredito que nada disso terá importância perante um Pai que corre ao nosso encontro para nos abraçar sem sequer nos perguntar o que fizemos e porque o fizemos. Por tudo isto, acredito que, mesmo aqueles que O negaram irão finalmente (re)conhecê-lo e, face ao seu olhar de Amor, a Ele se irão entregar. Todos, repito. Todos de igual maneira, com o mesmo amor, com a mesma alegria. 
Não percebo, por isso, onde encaixa aqui o purgatório. Não percebo as orações pela salvação das almas, como se o amor de Deus estivesse dependente da quantidade de pessoas que por elas reza (não serão estes, aqueles de quem ninguém se lembra e por quem ninguém reza efetivamente, os últimos? E não é para os últimos o olhar do Pai?). Não percebo porque se reza pelas pessoas na missa e muito menos porque se paga para que se reze por elas (quer dizer, até percebo, mas não são bons motivos). 
Eu rezo com os meus mortos, não pelos meus mortos. Rezo com eles porque sei que eles já estão junto do Pai, e por isso têm já uma clarividência que a mim me escapa, que têm uma sabedoria de que necessito, que são já Amor no Amor do Pai, e que por isso me perdoam de todas as vezes que meto água - sem sequer se cansarem de me perdoar essa imensidão de vezes. Rezo com eles porque rezo com os santos, para que me ajudem a ver, para que me ajudem a serenar, para que me ajudem a tentar caminhar o melhor possível. Mas não rezo por eles. Quem sou eu para o fazer?

20221017


 

Voltamos a conversar acerca deste buraco, hoje. Mais uma vez, fica a sensação que não me fiz entender. Não há maneira de o fazer. Como posso falar destes buracos a quem nunca os sentiu, nunca lhe pôs a vista em cima, nunca fez parte da sua realidade? Como falar de incompletude a quem se sente completo? Não é possível. Mas também não é possível, ou desejável sequer, tapar esse buraco. Mais vale assumir a sua presença, perceber que está lá, permanentemente lá, e viver com isso, tendo o cuidado de o contornar, tendo a sensatez de lhe encontrar a corda ou as escadas ou pelo menos a mão disponível quando lá se cai. Assim será com os buracos da nossa vida: de nada adianta varrê-los para debaixo do tapete, torná-los omnipresentes de tanto se forçar o seu desaparecimento. Porque o buraco é também parte do que somos. E uma importante parte.

20221010

Já tinha imensas saudades! Este fim de semana voltamos a ter Encontro Nacional do ComTigo. Cheguei lá a ir buscar energia ao fundo de mim porque a semana tina sido uma verdadeira loucura. Como acredito que acontece muitas vezes a quem é educador, vesti o sorriso na esperança que com ele pudesse contagiar quem tinha diante de mim, que sabia estarem cheios de expectativa da boa. Nestas coisas, ou são conquistados nos primeiros 15 minutos ou dificilmente vão lá das pernas, por isso dou couro e cabelo nesse curto período, sabendo que depois a coisa entra em modo de gestão. Então, nesse momento, ninguém canta mais alto, ninguém dança mais escangalhado, ninguém tem o sorriso mais aberto que o meu. Depois é ir. Depois foi deixar ir, deixar fluir, ficarmos permeáveis à alegria e à energia que nos rodeia, permitindo-nos invadir pelo elixir da juventude. E foi tão bom! Cheguei ao fim rebentado, com a cabeça a estoirar de cansaço, mas chegamos todos felizes. E quando é assim, vale bem a pena. Como valeu bem a pena! Foi mesmo bom. Já tinha imensas saudades!

20220926

Politicamente, não sou nem de direita nem de esquerda, sou adepto da Doutrina Social da Igreja que, como deve ser, bebe em ambas as margens, sem exclusividades nem radicalismos. No centro está sempre a pessoa, na sua circunstância, na sua luta, fundamentalmente no seu direito à dignidade - e quantas vezes é a própria Igreja a esquecê-lo! Tenho, por isso, uma costela de esquerda no que toca à defesa intransigente dos que mais precisam e se encontram indefesos perante um capital que é demolidor na sua cegueira de busca incessante do lucro; e uma costela de direita perante aqueles que se querem substituir às pessoas e ao seu direito a construir um futuro devidamente recompensado pelo seu esforço e mérito. Esquerda e Direita não me assustam, por isso. O mesmo já não posso dizer dos extremos, quaisquer que eles sejam. Porque vêm da cegueira ideológica e conduzem à cegueira ideológica, à desatenção pelas pessoas concretas nas suas situações concretas e se guiam por agrupamentos ideológicos que mais não são que sacos onde enfiam todos aqueles cujas vozes são discordantes da sua própria cegueira. Porque se movem por interesses de classe e não têm adversários mas inimigos e, porque os têm, são cegos e surdos à realidade, em nome de uma ideologia que é sempre, sempre, desenraizada. Não gosto dos extremos, de nenhum deles, em nenhuma área da vida. E não gosto deles ao ponto de os aceitar, de tentar conviver com eles, de os tentar perceber e, em vão, os tentar demover da extremidade.

20220920

A técnica do Pateta

Perceber que a sabedoria é sempre sábia, qualquer que seja a sua origem, sempre foi um dos meus melhores instintos. Isso permite-me a gratidão de aprender, todos os dias, com as mais diversas pessoas e situações. E sempre foi assim. Ainda agora, em conversa mais ou menos divertida, dizia que este ano irei aplicar o Técnica do Pateta. E recontei como, em miúdo, me ficou marcada uma pequena BD em que o Pateta, por castigo, se viu forçado a varrer todo o pavimento até Roma. Quando o Mickey lhe perguntou como iria cumprir essa impossível tarefa, o Pateta respondeu "é fácil: varres um quadrado, respiras, varres o quadrado seguinte, respiras..." Este ano irei tentar fazer isso mesmo: concentro-me na tarefa que tenho entre mãos, respiro, concentro-me na tarefa seguinte, respiro... Na verdade, a sabedoria, quando é verdadeiramente sábia, é de uma simplicidade que estranha.

20220901

 
 
Recebi, logo de manhãzinha, a mensagem de uma amigo: "Parabéns, 17 anos é muito tempo!" Sorri. Sim, é muito tempo. Mais do que estive ligado a qualquer outra organização. Foram também muitos (e bons e, sobretudo, fundamentais) anos na G2E, alguns outros na minha empresa e, finalmente, o restante aqui, nesta casa. Vi a sua mensagem no momento em que entrava para a capela do colégio e me sentia invadir por aquele maravilhoso sentimento do regresso a casa. Foi, aliás, isso o que respondi: "não é muito tempo, quando te sentes na casa da família". Sim, isso é uma bênção. Uma verdadeira bênção. Não tardaram a chegar os rostos conhecidos, os rostos amigos, com a (passageira) jovialidade de quem regressa de férias. Alguns deles são também, para mim, regresso. Ás boas conversas, ao conhecimento mútuo, à mútua entrega na confiança, aos enormes desafios que nos esperam a todos ao longo deste ano que agora se inicia. 
Algures na minha vida, já me foi extremamente penoso ir trabalhar. Ficava zangado com o mundo logo no sábado à noite, porque só faltava um dia para regressar ao inferno. Odiava o que fazia, era profundamente incapaz e ineficaz, era um peixe que lutava até à exaustão para não se afogar num mar de dificuldades amargos sabores. Hoje, Graças a Deus - e aos que me rodeiam, todos os dias, isso já não acontece. Sim, é trabalho, sim, é fazer coisas que por vezes nos custam, sim não escolhemos todos aqueles com quem trabalhamos, e sim, são chatices e problemas e coisas para resolver. Mas, sim, é bom. É muito bom. E eu já tinha saudades!

20220818


É sempre assim: por volta desta altura das férias, sinto uma enorme necessidade de me voltar a sentar ao computador e preparar o futuro.

A nível profissional e pessoal sou de projetos. Não consigo ficar quieto por muito tempo e tenho aquela doença das borboletas na barriga que me leva a desejar meter-me de cabeça quando um bom projeto me é bem apresentado. Com alguma facilidade, emprenho pelos ouvidos e, uma vez metido, não sei viver de outra forma que não seja totalmente imerso no que faço, e como os dias me são pequenos, é muito frequente que as noites sejam povoadas com aquilo que, de dia, me ocupa o ser. Se é verdade que Deus nos fala através dos sonhos, então Ele é um chefe que não se cala. E às vezes bem precisava do descanso!

A minha forma de fazer tem algo a haver com as vacas: primeiro engulo tudo sem mastigar e só depois, nas minhas caminhadas, na minha elíptica, nos momentos em que aparentemente estou a fazer cera, é que o que me alimenta volta à atualidade e aí é devidamente processado, por vezes durante semanas, para que possa finalmente ser distribuída. Durante esse processo mantenho os olhos abertos e os ouvidos atentos a todos os contributos que, conscientemente ou não, me possam chegar através do imenso que me rodeia. Tenho o privilégio de trabalhar com pessoas bem mais tudo que eu e que ainda por cima não se importam de se partilhar comigo, tendo eu apenas que recolher, processar e redistribuir, numa espécie de hipermercado do ser, em que nada produzo mas vivo à custa de colocar nas prateleiras a produção dos outros.

Hoje é esse dia. Em que me sento, registo uma e outra vez os projetos em que estou metido - Graças a Deus! - e recomeço o plano.

Adoro este nervoso miudinho :-)!

 

20220817

vergonha

Todos nós já sentimos, em alguma altura, vergonha alheia. Seja com um tio desbragado numa qualquer cerimónia, um amigo que sabemos ser impecável apesar do seu ocasional comportamento desapropriado, ou, neste caso, com uma Igreja que sabemos, por experiência própria, ser imensamente mais do que aquilo que tem sido manifestamente noticiado. Nestas alturas não tenho por hábito sacudir a água do capote: defendo, quando muito, calo, e deixo para uma outra altura uma conversa mais apropriada que nos permita enriquecer mutuamente. 

Nesta altura é-me particularmente difícil lidar com a vergonha que, ainda por cima, não sinto como propriamente alheia mas como também minha, da família que escolhi para viver comigo a fé: a Igreja. Em momento algum senti que este era um problema que não me diz respeito. Não porque tenha contactado direta ou indiretamente com casos de pedofilia ou qualquer tipo de abuso físico, mas porque, agora que se têm provado - ainda que não em tribunal - tornam mais clara uma realidade que eu pensava (desejava) longínqua. 

Sobre estes casos só podemos ter tolerância zero. Ponto final. Sem mas, sem porques, sem atenuantes, quaisquer que elas sejam. Aconteceu suspeita de abuso? Comunica~se às autoridades competentes (civis, claro), e ativam-se os procedimentos de mútua proteção até ao apuramento da verdade. Confirmou-se? Condene-se. Não era verdade? Condene-se quem acusou. Assim. Simples. O único cuidado que se deve ter é o do direito à privacidade, particularmente se existirem crianças envolvidas, pelo que se dispensa tanto a condenação em praça pública como a condenação em praça exclusivamente eclesial. Abuso é pecado, sim, e acredito que a misericórdia do Pai não tem limites, mas é também crime, e não pode ser escondido ou varrido para debaixo do tapete. 

E quando alguém me aponta o dedo, porque sou católico, a minha resposta é apenas uma: baixar a cabeça e dizer que têm razão. Também eu estou na berlinda. 

20220718



Trabalho há tempo suficiente com malta nova para saber que as imagens que muitas vezes são projetadas não correspondem à verdade. Na verdade, não são nem anjos imaculados nem diabinhos à solta, são pessoas em construção num universo muitas vezes demasiado confuso e multidisciplinar para que eles consigam perceber o chão que pisam. Por isso, normalmente, no que toca a malta nova, tenho ambos os pés no chão. Não que não me deixe contagiar e entusiasmar e sonhar e projetar com eles. Pelo contrário, sou muitas vezes quem (ainda) despoleta essa alegria e esse voar para além do que lhes é dado a viver. Há miúdos, então, que pelas suas circunstâncias precisam muito mais de sonhar que de pão para a boca, que esse vão tendo, apesar de tudo. Sim, voo com eles e a partir deles. Muitas vezes. Mas sei que, na melhor das hipóteses, seremos andaimes, nada mais que isso. E que é justamente andaimes, o que deveremos ser. E andaimes unipessoais, feitos à medida de cada um e, mesmo com cada um, adaptáveis a cada circunstância. Quando lidamos com malta nova não há pronto a vestir e muito menos medidas definitivas. É importante por isso, que tenhamos ambos os pés no chão e acolhamos a montanha russa, que pode acontecer num mesmo dia. Ora têm uma atitude que nos faz encher de orgulho, ora têm uma outra que nos leva a perguntar como é possível tamanha barbaridade acontecer. 

E isto é, a meu ver, um sinal de respeito. Por cada um deles. É atendermos a quem vão sendo, a cada momento, sob determinada circunstância. Porque é com cada um deles, com cada circunstância que trabalhamos, é com essa realidade concreta dessa pessoa concreta que temos diante de nós. Não, não são anjos nem demónios, mas pessoas, com confusões e sentidos de humor, não raras vezes mais exacerbados que os dos adultos. Por isso não me parece, de todo, conveniente idealizá-los ou diabolizá-los - encarcerando-os numa qualquer etiqueta - mas trazê-los e às suas circunstâncias para a discussão do que se deve ser e do que não se deve ser. Porque é nessa realidade que ambos nos movemos: educadores e educandos. Estar a desvalorizar qualquer um desses fatores - educador, educando, circunstância em que a a relação acontece - é fazer histórias que poderão ser muito bonitas mas nada têm a haver coma  realidade. É sermos andaimes de construções de areia, que se desfazem logo que nos retiramos.


20220708


 
 
Começa-se a respirar um outro ar, neste nosso pequeno burgo que é o nosso local de trabalho. 
 
Há menos de um mês, chegava à sala dos professores, dizia bom dia e, no máximo, obtinha como resposta um ou dois grunhidos mais ou menos percetíveis. Eu, que não sou professor - e que nessas alturas vivo numa outra cadência - olhava e via tudo pressionado pelo tempo, pelos resultados, pelos projetos, pelas agendas. Ninguém falava com ninguém de outra coisa que não fosse correções e provas e notas e reuniões e pautas e escalas. Chegavam todos demasiado cedo e saiam todos demasiado tarde e, invariavelmente, era quase visível a olho nu o peso do sentimento de culpa de não terem tempo para aqueles que amam, porque sofriam na pele o paradoxo da sensação do abandono daqueles que amam em nome do seu cuidado. Não admira, por isso, a enormidade de caras fechas, algo zangadas até, com que me deparava todos os dias. 
 
E nós não somos assim. Não somos mesmo assim. 
 
Nestes últimos dias, passado o frenesim dos exames e das notas e das pautas e das reuniões já oiço rir na sala dos professores. Ainda se trabalha, claro, mas a pressão é já outra. Aqui e ali ouvem-se brincadeiras, combinam-se almoços, acertam-se saídas, e escuta-se até alguns ohhhs quando alguém, finalmente recuperado do sentimento de culpa,  mostra as fotos dos filhos, dos pais ou dos netos. Agora já respiramos vida, já sentimos vida, já somos vida. De novo. E isso é tão bom! Eu próprio já me fui sentando com um e com outro e conversando, por vezes durante escasso tempo, noutras vezes esquecendo o tempo, e fomos partilhando vivências e dificuldades e projetos para o próximo ano, porque na verdade temos imensa dificuldade em desligar e a nossa cabeça fervilha sempre de novos projetos e novos sonhos que se transformem em novos desafios e nos transformem com eles. E isso é tão bom!

Nenhum de nós é parafuso. Ou prego. Ou uma qualquer outra peça de um qualquer mecanismo que fique satisfeito apenas porque a máquina funciona bem e produz bons resultados. Nenhum de nós consegue ser máquina durante muito tempo. Por vezes permitimo-nos sê-lo, por pouco tempo, desligando-nos da imensidão que nos ajuda a ser quem somos. Por vezes até nos esquecemos que somos mais, que somos chamados a ser mais, e por vezes até confundimos tudo e achamos que esse mais a que somos chamados está ligado à produção quando na verdade está ligado ao ser, ao ser para os outros, ao ser com os outros. E é quando somos, quando verdadeiramente somos, com os outros e para os outros, é justamente aí, nesse momento, que sabemos como é ser feliz, como é cumprir esta imensidão que nos habita e a que somos chamados a habitar. E isso é tão bom!

20220704


 

Dê-se à miudagem um belíssimo dia de sol, uma piscina e uns escorregas, e teremos semeado as memórias de um dia absolutamente inesquecível. Sobretudo se nunca o fizeram antes.

Continuo a deixar que a realidade me surpreenda! "Deixo a caixa dos comprimidos do enjoo para a minha filha. Não sei se ela enjoa, porque nunca andou de autocarro nem de camioneta, mas leva de qualquer maneira. E se algum miúdo precisar, pode dar desses." Quando comentava isto, espantado pelo facto de uma miúda com 7 anos nunca ter andado de camioneta, fiquei ainda mais espantado quando soube que ela nunca viu o mar. O nosso Espaço RAIZ fica a pouco mais 1 km do das praias da Foz do Douro, e aquela miúda, que vive junto ao RAIZ, nunca viu o mar! Em 2022, neste país à beira mar plantado, há pessoas nascidas neste século que ainda não viram o mar!

Estas coisas provocam em mim o efeito necessário: coloco os pés no chão e abro os olhos, permitindo-me ver bem quem tenho diante de mim. E ainda bem que tudo isto sucedeu ainda antes do dia de hoje, do primeiro dia de colónias de uns miúdos que, fruto do COVID, nunca as tinham tido. Porque deu-me o privilégio de testemunhar o seu espanto, os seus gritos de alegria, a sua descoberta da água, o seu primeiro almoço com os amigos e, sobretudo, apreciar de perto os seus olhos lindos, abertos, cheios daquela ilusão que apenas se tem quando a vida vivida  ultrapassa a vida sonhada. Demasiadas vezes temos demasiadas coisas dadas por garantidas. Podermos espantar-nos com o espanto das crianças é um verdadeiro privilégio. É também por isso que adoro o que faço!

20220701


 

Apesar de tudo aquilo com que me deparo todos os dias, estranho bastante o mal. Não o mal por acidente, o que acontece inadvertidamente, sem querer, que é consequência de um qualquer deslize ou atitude menos refletida. Esse tem remendo, mais ou menos fácil, em função da verticalidade de quem o comete. Mas existe aquele mal, pensado, programado, intencional, profundamente desumano e desligado da vida, porque nem sequer animalesco é, mas a negação da própria vida. Sua ou dos outros. E esse mal existe. É-me muitas vezes inimaginável. Mas por vezes encontro-o. Olhos nos olhos. E desarma-me.

Eu estou longe de viver numa bolha ou num conto de fadas. Como acontece com qualquer pessoa minimamente vivida, eu conheço a dor, provocada e sentida, a desilusão, profunda ou passageira, a falsidade (com a qual tenho tremenda dificuldade em lidar), que deixa sempre marcas profundas, e tantas outras formas engenhosas de fazer mal. Sei como o mal habita as margens, quer de cada um de nós, quer da sociedade, de forma mais ou menos insidiosa, mais ou menos declarada, mais ou menos permitida ou resultante das circunstâncias que a todos nós condicionam.

Sei disso tudo, mas raramente me deparo com uma pessoa má. Porque a verdade é que nós fazemos coisas más mas dificilmente somos intrinsecamente maus. Mesmo se fazemos essas coisas más com relativa frequência. Numa das margens do meu trabalho conheço muita gente assim, que não conhece limites, que não tem noção clara do bom e do mau, que é muito mais impulsiva que racional, mas que, quando confrontado com o mal que fez, pede desculpa - porque sente culpa - ainda que passado um par de dias esteja a fazer a mesma coisa com a mesma impulsividade. Normalmente o trabalho a ser feito com pessoas assim é ensinar como podem ser racionais, como podem ponderar os seus atos e as suas palavras antes de, com eles, agredir os outros. E normalmente - com muito tempo e muita paciência e muita oportunidade para recomeçar - conseguem-se bons resultados. Na outra margem, curiosamente, é tudo mais requintado, mais frio e calculista. E mais difícil de contrariar.

Mas pessoas más, mesmo más, que pensam, prepararam, maquinam o mal que fazem antecipando a dor provocada, desejando-a, essas são raras de encontrar. Mas não me são totalmente estranhas, também. E, quando as encontro, abalam-me. As certezas, as convicções, as reações. E isso não é bom. Porque me colocam mais perto de responder na mesma moeda.

20220629

 

Foi um bom ensinamento. Estava eu casado há pouco tempo e tinha a folia do exercício físico. Como frequentemente me acontece - agora menos - não conseguia perceber como é que aquilo que era tão evidente para mim - a importância do exercício em termos físicos e mentais - podia ser tão desprezível para os outros. E inscrevi a Isabel no ginásio, claro, porque lhe faria bem à cabeça. Como raramente ia, fui percebendo, algo contrariado, que para a Isabel meia hora de jardinagem era tão fundamental quanto uma hora de ginásio para mim. E aprendi. Várias coisas. A primeira foi a ver com olhos de ver. Mas a principal é que eu não sou a medida de ninguém: aquilo que é notório e evidente para mim não o é necessariamente para os outros. E aprendi que somos felizes de maneira diferente. E que todos temos o direito de procurar essa felicidade sem termos que lidar com os achismos dos outros.

Esta é uma lição que preciso de ir buscar várias vezes ao baú da memória. Assim aconteceu com as escolhas dos meus filhos, pessoais, assumidas, de cabeça erguida, mas claro que algumas delas diferentes das que eu faria. Pudera! São as suas escolhas, não são as minhas, e mesmo quando nos pedem conselhos e sentamos e conversamos, são sempre as escolhas deles, feitas em liberdade, de acordo com a sua leitura das suas circunstâncias. E fazemos questão que saibam e sintam que estamos de corpo e alma com eles quaisquer que sejam essas escolhas. 

Algo semelhante acontece com aqueles que me habitam, com quem vou caminhando e aprendendo e ensinando, e que me são muito significativos. Porque o são, porque são imensas as memórias que a ambos habitam, porque é muito o caminho e a partilha, não me é sempre fácil lidar com as suas escolhas. Mas são as suas, não as minhas. E então lá tenho eu que recorrer àquela memória e perceber que, apesar do que nos une, estou longe de vestir a sua pele e perceber a fundo as suas circunstâncias. Que são as que são e que a mim apenas me compete fazer-lhes saber e sentir que é sempre tempo para nos voltarmos a sentar e a conversar, assim a vida o proporcione e a vontade se mantenha.

Perguntaram-me há pouco tempo se tenho facilidade em deixar ir. Não, não tenho. Nunca tive. E a primeira sensação é sempre a dor da perda. E a verdade é que, passados todos estes anos, não sinto que ninguém que me tenha habitado tenha partido verdadeiramente. Pode estar do outro lado do mundo, tem a sua vida, tem as suas escolhas, tem a sua ânsia de futuro, pelo qual tem o dever de batalhar o melhor que pode e sabe. Mas permanece. Sempre. Sem mágoa, sempre, com progressivo atenuar da dor, sobretudo se encontrar e cumprir a felicidade a que todos estamos votados. E sem achismos da minha parte. Que são absolutamente desnecessários. 

Afinal, é de felicidade que se trata. 

E todos somos felizes de maneiras diferentes.

E eu não sou a medida de coisa nenhuma.

20220620

 

Caminho cedo, à beira mar, nesta maravilhosa manhã. Hoje, sozinho, entretido com os meus botões, apenas ocasionalmente interrompido pelos sorrisos trocados com aqueles com quem me cruzo todas as manhãs. Princípio da semana em que farei 56, altura, em termos profissionais e pessoais, de balanços, de avaliar rumos e pertenças, de pesos e medidas. A contragosto, que já cheguei ao tempo de não me contrariar, nestes e noutros aspetos de prós e contras, limitando-me a perceber e a tentar abraçar o que vou sendo. E é justamente esse o gerúndio que habito: vou sendo.

No fim de semana aconteceu a festa das famílias, e dos alunos, e daqueles com quem trabalho. Inevitavelmente, mal coloquei o pé dentro, instalou-se o desconforto. Num acontecimento que é concebido para que nos reconheçamos mutuamente no imenso que nos une, procuro o impossível, refugiando-me num canto, olhando, cumprimentando aqui e ali, quando não o consigo evitar, sorrindo genuína mas atabalhoadamente, com o mesmo à vontade com que um elefante está numa loja de porcelana. Gosto imenso, admiro imenso, tanta gente que me rodeia, e no entanto, anseio por sair e me remeter ao sossego.

Não sei por que acontece. Sei que é assim. Que sou assim.

Por vezes acho que o contacto de todos os dias com pessoas de um lado e do outro desta invisível mas real barricada com a qual sou quotidianamente confrontado me torna habitante das margens. Outras vezes - hoje, por exemplo - sinto que nem as margens habito verdadeiramente, mas apenas a terra de ninguém. Mesmo quando sou efusivo, quando pego na guitarra e ponho a canta e a dançar - adoro pôr as pessoas a cantar e a dançar! - ou quando sinto que estou a conseguir comunicar com a plateia que tenho diante de mim - seja uma turma, um grupo de adultos em Taizé ou a assembleia da eucaristia das 11 - preciso do momento seguinte, daquele em que paro, em que me reconheço nos meus pensamentos, na minha naturalidade, no berço de quem sou. Como se me estranhasse naquela sensação que mesmo eu, de mim para mim, mais que as minhas margens, habito a minhas próprias terra de ninguém. 

Curiosamente, sinto-me feliz nestas terras. Na verdade, é como se a vida se tivesse encarregado de se ajustar a mim fazendo-me ajustar a ela. Na verdade, não sei se serei causa ou consequência, ou ambas, num caminho que - lá está o meu amigo gerúndio - que se vai fazendo, que vai acontecendo, no qual vou descobrindo e tentando ser. Na verdade, é que todas as manhãs dou Graças pelo imenso que me habita. E pelos tantos que me habitam. E - esses sim - que me fazem ser.

20220526

Não tenho por hábito reler o que escrevo. Nem sequer para corrigir. Já na faculdade utilizava um método que sempre me deu bons resultados: gastava tempo a hierarquizar a resposta por tópicos que ia riscando à medida que os colocava na folha de exame. Colocado o ponto final, fechava o exame, exausto, e entregava-o assim, sem o reler. 

Na verdade, tendo a escrever como vivo: de supetão, sem pensar demasiado, atirando-me de cabeça, e espantando-me, mais tarde, com as enormidades que disse ou cometi. Durante imenso tempo, como não aprecio por aí além esta forma de ser, batalhei contra ela, forçando-me a ser outro, porventura de quem gostasse mais. Está bom de ver que esta sempre foi uma batalha perdida. E fui aprendendo a apreciar mais a autenticidade, ainda que esta acarrete maior confusão.

Não relendo o que escrevo, sou, no entanto, curioso à frequência com que o faço. Há alturas em que escrevo dias seguidos, em que transbordo (para mim a escrita é sempre um vomitar) dias seguidos como se não houvesse amanhã, em que todos os dias sinto, vejo, respiro algo que me faz sentir vivo e sinto necessidade de espelhar em palavras. E depois há... nada. Absolutamente nada. Ou melhor, há agendas e reuniões e trabalhos e orações e cânticos e tudo isso e muito mais tem que ser pensado e preparado e ensaiado e executado, ocupando todo o espaço em mim que deveria ser ocupado pelo lado B (de Belo) da vida. São as alturas em que me sinto pouco mais que um parafuso numa qualquer engrenagem que me despersonaliza e sei bem que uma pessoa despersonalizada nada tem a dizer, apenas tem a executar. Ou então são momentos (normalmente coincidentes com estes que acabei de descrever) em que a energia se vai, a vontade se vai, o olhar se vai, e tudo o que se deseja é, com o final do dia e da semana, chegar a casa e calçar as pantufas. E espanta-me sempre a facilidade com que fazemos do nosso e dos nossos o intervalo, e não o filme da nossa vida, como se a razão da nossa existência fosse fazer, e não ser!

Mas ando nesta vida há tempo suficiente para saber como tudo isto é cíclico. E necessário. Que vivemos (eu e os que me rodeiam todos os dias) num tipo de missão que exige nada menos que tudo o que temos para entregar, por amor - ainda que por vezes tenhamos necessidade que nos recordem que é por amor que o fazemos. Que, bem vistas as coisas, seria de difícil compreensão que chegássemos à fase final de cada ano letivo como se o estivéssemos a iniciar. Que, quando olhamos para trás, ou encontramos um rasto de pegadas profundas, ou percebemos que nem sequer caminhamos e apenas o tempo passou. Na verdade, quem caminha sabe que não há marcas quando se levita inocuamente sobre a vida, mas prefere a dor nos músculos das pernas cansadas da caminhada. É, ando nesta vida há tempo suficiente para perceber que, se nesta altura do campeonato estivesse fresco como uma alface, radiante e sem queixume, seria um péssimo sinal. 

Abraço, por isso, estes momentos como tento abraçar a vida: por inteiro, fazendo-os meus, antecipando o sorriso do futuro. Afinal, como sabiamente diz o Padre Almiro, mais vale uma vida gasta que uma vida enferrujada.

20220511

 

Não sou muito das redes sociais imediatas. Acho-as, hoje, fundamentais para comunicar aquilo que é breve e passageiro, mas prefiro o que deixa lastro. Por isso sou mais de blogues e de podcasts. Hoje de manhã ouvia um dos muitos podcasts que oiço onde se discutia a última prova de Formula 1, que aconteceu em Miami. Nunca tinha acontecido ali uma prova antes e o que o repórter disse foi que aquilo teve imensa gente, muita animação, mas que apenas 5% dos que estavam lá é que viram a prova ou sabem sequer o que é a Formula 1: os restantes foram apenas para o espetáculo e estariam qualquer que fosse a modalidade. E concluiu "se calhar é isso que é suposto acontecer e eu estou a ser demasiado exigente". Eu pensei imediatamente nas JMJ, que acontecerão no próximo ano. Nada a haver? Na minha opinião, tudo. Sim, será um enorme espetáculo, sim, terá milhares de pessoas, de jovens, sim, será um enorme acontecimento para a Igreja, para Portugal, para o mundo. Será? Até pela minha história de vida, acredito que Deus nos fala por meio de muitas circunstâncias e de muitas pessoas, que Ele está onde menos se espera e em quem menos se espera. E já tive o privilégio de testemunhar algumas dessas formas que Deus tem de se encontrar no íntimo de cada um - em Taizé tantas vezes! - e a transformação que fez acontecer a partir desse encontro. Também já acompanhei pessoas - novas e menos novas - a deixarem diluir Deus nos acontecimentos das suas vidas até O sentirem como um incómodo e a Ele regressarem quando "os ossos doem" e precisam de um amor maior. Acredito, por isso, que todas as pessoas e todos os lugares são possibilidades de encontro. Também as JMJ. Mas não acredito em multidões. Não para além do frenesim interior que, sendo intenso, tende a ser passageiro e em tudo semelhante a um concerto de música pop. É bom? É ótimo. O espetáculo, o estarmos muitos, aos saltos, sentidos à for da pele, a sintonia da multidão vibrante unida num mesmo objetivo, é profundamente inebriante. Eu próprio o farei, este fim de semana, em pleno Dragão, na celebração de mais um campeonato do meu FCP. É significativo para a vida? Em alguns, raros, casos, poderá ser. Mas no que toca às coisas de Deus, acredito que Ele escolhe o pequeno.

20220429

 

Há já muito tempo que abandonei a pretensão de ser percebido na minha maneira de amar. Cada um terá a sua, fruto do seu entorno pessoal, do amor e do desamor que experienciou, às vezes com dor, outras com inusitada felicidade, e eu, claro, não escapo à regra. 

Eu amo com pudor. 

O amor é uma porta que se abre apenas por dentro, que exige um consentimento e uma disponibilidade interior que nada nem situação alguma consegue forçar. É um diálogo, mútuo, íntimo, profundo, e porque é diálogo é propício a malentendidos, que, porque é profundo, são sempre dolorosos, que, porque são íntimos, nem sempre são portadores da clareza que facilmente tudo resolveria no amor. Há todo um cuidado, revestido de atenção, que se exige no amor. Um constante lidar com pinças onde as palavras, os gestos, as atitudes, os olhares, adquirem um peso que apenas no amor é o seu, específico, exclusivo, absoluto. A forma como olho, como falo, como escuto, como me entrego, a quem amo, é por isso diferente, também dependente da relação específica que tenho com quem amo. Não se ama da mesma maneira os pais e os filhos, os amigos de longa data e os de ocasião, e mesmo de entre todos estes, cada pessoa, cada relação tem uma vida própria que resulta da nossa história comum, da nossa partilha, da interioridade que nos habita.

Eu acredito que é perfeitamente possível amar apesar da distância física. Como não? Alguns dos meus filhos estão fora há algum tempo; não visito frequentemente os meus pais e os meus irmãos; raramente vejo alguns dos meus amigos mais perenes; não sou de estar sempre a telefonar e a combinar coisas e, com toda a sinceridade, prezo muito o meu espaço e o meu silêncio e a minha necessidade de não fazer sala, que normalmente carecem de uma urgência maior que a de me ver rodeado de pessoas, mesmo as que amo. Claro que adoro quando estamos na galhofa à volta da mesa, claro que preciso do encontro dos olhares, claro que o meu coração apenas sossega convenientemente quando vou sabendo que estão bem, que são felizes e que vivem as suas vidas de peito aberto. E claro que sei que, ao mínimo sinal, corremos todos uns para os outros sem qualquer reserva ou questão. Mas é muito bom quando amamos sem mútua dependência. Absolutamente de borla.

E termos a consciência que, por muito que amemos, não possuímos. Nunca.

20220425


Não é todos os dias que testemunho o nascimento de Deus em alguém.

Demasiadas vezes tenho Deus como garantidamente certo. Mesmo eu, que vivo imerso por entre pessoas para quem a referência mais imediata de Jesus é a do treinador de futebol, esqueço-me frequentemente que Deus é um habitante desconhecido em tantas pessoas das comunidades que habito. Este fim de semana foi de Rumos: uma caminhada de Ansião a Fátima por entre aldeias e caminhos de santiago entrecortadas por dinâmicas de reflexão e oração. Connosco, pela primeira vez, foram alguns miúdos do RAIZ para quem tudo aquilo era novo: o caminho, as aldeias, as paisagens, as reflexões, mas sobretudo as orações. Durante a primeira - feita logo no arranque - só se conseguiam rir de espanto e nervosismo: tudo era estranheza e sentiam-se peixes fora de água. Pouco tempo depois já no caminho, conversamos: "stor, eu não sei rezar, nunca rezei". "Não te preocupes, não tens que fazer nada, nem responder: limita-te a ficar em silêncio e a escutar. Se ajudar, fecha os olhos." Em cada reflexão, em cada oração, a cada passo, fui tendo-os debaixo de olho. No final do dia já não se riam, no dia seguinte já cantavam. Quando chegamos a Fátima entrei no recinto com dois deles. Testemunhar o seu espanto foi maravilhoso: de olhos esbugalhados, boca aberta, saiu-lhes um "isto é tão grande! Tem tanta gente!". Fui explicando o que era aquele lugar, porque estavam tantas pessoas vindas de tão longe, porque estávamos nós próprios ali. Sem grandes teorias, disponibilizando apenas as pistas fundamentais para se sentirem acolhidos na casa da Mãe. 

E louvei a Deus!

Eu já fiz missão em Moçambique. Sei por isso como é importante que alguns de nós tenham a coragem de ir para longe. Mas, mesmo naquelas (para mim) recônditas terras de Quelimane, nunca tinha sido parteiro de Deus. Demasiadas vezes tenho Deus como garantidamente certo. Demasiadas vezes esqueço que há pessoas que, olhando para a sua vida, a veem como alguns viram o túmulo: vazio de Deus. Iludidos pela aparência das circunstâncias, veem apenas que Ele não está lá. E não sabem que é em si que Deus habita. Porque nunca ninguém lhes disse isso. Porque nunca ninguém lhes forneceu a chave que permite sentir e viver a partir dessa novidade. Porque eu, conhecendo-os e conhecendo-O, não os apresentei mutuamente. E essa é, também, minha responsabilidade.

20220405

 
 
Espanto dos espantos: todos nós somos diferentes em função da companhia. Talvez não na essência - embora por vezes aconteça - mas na forma, com certeza que sim. Não faria sentido, aliás, se assim não fosse. Se não tivéssemos pessoas especiais e momentos especiais não teríamos amigos nem namorados nem casamentos nem confidentes e seria tudo a mesma coisa. E sabemos como isso não acontece. E sabemos também que não falamos com todos da mesma maneira, não dizemos a todos o mesmo e muito menos com a mesma profundidade. E isso não é menosprezo, mas escolha, o que torna as nossas pessoas muito especiais. As minhas são. E mesmo essas não se deparam com a mesma versão de mim. Até por causa das circunstâncias! Eu, por exemplo, tenho extraordinária facilidade em me comover enquanto testemunha direta de uma qualquer dor e, pelo contrário, tenho enorme dificuldade em agir à distância. Ainda agora, com a pandemia e, depois, a guerra da Ucrânia, confirmei que me é muito mais natural e imediato entregar-me a alguém para quem trabalho e passa dificuldades, que mobilizar-me para enviar bens ou dinheiro ou a mim próprio para uma situação que se passa longe daqui e com pessoas que não conheço. Se racionalizar a questão até chego lá, claro, e sei que é horrível, e acabo por me comover (sempre no sentido de mover com) mas nunca é um processo imediato. Por isso, é natural que, nas conversas com os meus filhos, eles por vezes pensem que o pai deles é alguém que se preocupa com os outros e noutras alturas, em função do que estamos a discutir, que eu não quero saber deles para nada. Quer isto dizer que me falta a justa medida, a perspetiva global, que sou inconstante e inconsistente? Talvez. Não digo que não. Mas também por isso me são tão importantes aqueles que amo, aqueles com quem converso, aqueles com quem aprendo, aqueles que leio e observo, todos os dias. Porque encontro neles o fiel da minha balança, a minha medida, as pessoas com quem me meço na sempre presente tentativa de descortinar o meu lugar. Por isso eu chego, invariavelmente, à conclusão, que sou melhor pessoa com as minhas pessoas que sozinho. E isso, para além de ser muito bom, é uma sorte do caraças. Quando me imagino noutro contexto... não seria bonito!

20220330

 

Para além de todas as teorias, de todas as homilias, de todas as liturgias, há duas atitudes fundamentais de Jesus que me levaram e levam todos os dias a tentar aderir, de corpo e alma, à fé cristã: acolher e perdoar. Nas turmas onde tenho testemunhado algumas destas coisas de viver com Deus dentro refiro sempre a profunda humanidade de Jesus. Sim, para mim, Jesus é a imagem do Pai, é o Seu filho, é aquele que une céu e terra, no sentido em que, sendo Deus, vem ao nosso encontro e, sendo homem, leva-nos ao encontro com o Pai. No entanto, para alguns daqueles a quem eu falo, dizer isto é dizer pouco mais que nada. Por isso falo-lhes da humanidade de Jesus, da maneira como Ele sentava e conversava, no olhar que fazia incidir sobre as pessoas que habitavam as margens a quem, invariavelmente, fazia recordar uma dignidade que todos davam como perdida. A começar pelos próprios. E recordo-lhes como isso é algo que todos podemos fazer. Não precisamos de ter fé, não precisamos de ter grandes teorias nem de grandes questões. Precisamos, sim, de reaprender a olhar para quem temos diante de nós, qualquer que seja a sua e a nossa circunstância, e nos recordarmos - e fazermos recordar - da sua dignidade. À fé chegar-se-à noutras alturas, porventura mais tarde, aquando da interrogação de onde provém tamanha dignidade, ou daquilo a que um padre em Taizé sabiamente chamava "dor nos ossos", referindo-se às grandes questões que nos abanam até ao tutano quando a vida nos põe à prova. Até lá, não nos fará mal nenhum recordarmos esta verdade simples e absolutamente decisiva para que o Reino possa ser já hoje, aqui e agora, ainda que não na sua totalidade: todas as pessoas têm, em si, conscientemente ou não, uma dignidade que lhes é inalienável, qualquer que seja a sua circunstância, qualquer que seja a sua história de vida, quaisquer que sejam as consequências dos seus atos. E muitos vezes só precisam que alguém lhes recorde disso mesmo. Eu que o diga!

20220329

 

O medo 

Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola. Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.

O Livro dos Abraços, de Galeano
 
Detesto o medo. Não aquele natural, essencial até, que nos resta da nossa condição de animal e que nos permite manter os sentidos alertas para tudo o que pode, efetivamente, por em risco a nossa vida. Desse também não gosto muito mas, no limite, impede-nos de saltar de cabeça a partir do alto de um prédio qualquer. E também não me refiro ao medo que advém da imensidão de amar, que nos desperta para a proteção, para o abraço, que nos comove para a necessidade de cuidar quando estamos perante alguém que sofre. Esse é-nos dado pela nossa condição humana, que nos faz ultrapassar-nos a nós próprios e às nossas conveniências. O medo que detesto mesmo é o medo irracional, que não existe em função das circunstâncias mas resulta da nossa projeção negativa sobre as circunstâncias. Esse é o medo que rouba, o medo que tolhe, que nos impede de sermos mais, de irmos mais longe, de darmos uso às asas que nos foram dadas para voar. Até porque essa irracionalidade tem, invariavelmente, raiz dentro, é tremendamente egoísta, auto-protetora. No fundo, não tememos o que acontece àqueles que amamos, mas o que nos acontece com a perda daqueles que amamos. E em nome desse medo acabamos por nos sufocarmos a nós próprios e àqueles que amamos, enquanto decretamos a morte desse amor. Este é um medo que não tem os pés assentos no presente mas na possibilidade de futuro, ou melhor, na mais negativa perspetiva de futuro: eu tenho tanto medo do que, eventualmente, vou sofrer, que acabo por escolher infligir esse sofrimento, tornando-o real. É como se o futuro fosse tão inconcebivelmente doloroso que escolho tornar essa dor presente hoje, aqui e agora, na pior das suas possíveis formas. Este medo já me roubou noites e sorrisos e futuros e pessoas e, por me ter roubado tudo isso, roubou-me vida. Valeram-me, sempre, aqueles que, amando-me, viam o que eu não conseguia ver. E a sua mão, sempre presente, sempre estendida, para que a pudesse agarrar.

20220324

 

Hoje, numa turma, tive dificuldade em fazer-lhes perceber a importância do sonho. Talvez porque são miúdos imersos numa (demasiado?) boa realidade, feita de objetivos claros, de percursos há muito delineados, onde não há grande lugar para devaneios. Muitos deles são miúdos já com muito pouco de miúdos, tal é a carga que lhes é imposta por eles próprios e pelos seus pais e pelas elevadíssimas expectativas que uns e outros têm para as suas vidas. Eu olho para eles e tenho alguma dificuldade em perceber. Naquela idade não deveriam ainda levar as coisas demasiado a sério. Deveriam ser capazes de arriscar, de viver a felicidade ao máximo, de aprender que as noites podem ser infinitas e os amanheceres irrepetíveis na melhor das companhias, com todos os sentidos bem despertos para poderem usufruir o imensamente belo e o maravilhosamente novo, tão próprios da idade que têm. E no entanto... olho-os e a muitos deles falta vida, demasiadamente preocupados com os testes e com as matérias e com as notas e com as explicações e com aquilo que os pais vão dizer quando virem o 19,2 quando a expectativa era, pelo menos, um 19,7. Falei-lhes do sonho e ficaram a olhar para mim, com necessidade de explicações extra que os fizessem perceber o que é isso de sonhar. Afinal a realidade que habitam é, aparentemente, tão boa, tão cheia de dinheiro, tão cheia de lugares da moda, de roupas da moda, de bebidas da moda, de pessoas da moda... vão sonhar para quê? vão sonhar com quê? para que realidade? com o que sonha quem acha que nada lhe falta?

Que mundo estamos nós a criar?

20220323

 

 

Um dos livros que ando a ler, Ikigai, de Ken Mogi, refere a importância do saber estar "aqui e agora" como um dos pilares fundamentais para a felicidade. Eu gosto muito desse aqui e agora, desse carpe diem, dessa capacidade de aproveitar cada momento como se fosse o último, como se nada mais importasse. Naturalmente, não pode ser tomada por si só, como se não existisse continuidade como se a vida não tivesse ou não deixasse lastro. O saber viver aqui e agora é importante quando devidamente enquadrado num percurso de vida onde cabe a memória grata do caminho percorrido, das pessoas que nos habitam e nos permitem que nelas habitemos. E a esperança, essa quase ingénua confiança que a vida nos reserva coisas boas. O aqui e agora não implica, por isso, alheamento ou inconsciência, mas o louvor. Pela oportunidade de ser feliz, pela capacidade de viver a vida até ao tutano, intensamente, completamente, sem dar lugar à ressaca da culpa do dia seguinte. E sempre na forma partilhada. Porque quem ama, quem se sente amado, nunca se sente verdadeiramente perdido, nunca se sente verdadeiramente só. Ainda que esse aqui e agora seja usufruído sozinho.


20220316

 

Não tenho desculpas. Não me adiantam justificações. Não é por falta de interesse, ou de conhecimento, ou de vontade. Começo os meus dias a rezar, a procurar na Palavra do dia o sentido, a motivação, o desejo, não para viver mas para viver melhor, para ser melhor. Invariavelmente, chego ao fim do filme do dia com um sabor amargo na alma: aqui e ali, num ou noutro momento, não consegui, não fui capaz. E nem sequer é um sentimento vago de dever ser melhor, de conseguir ser outro. São momentos definidos, palavras concretas, conversas ditas e escutadas, atitudes testemunhas e exercidas, no concreto do meu dia, da minha vida, daquilo que vou sendo, com os outros. Diria que este amargo sabor a pouco é profiláctico. Que me restitui ao lugar a que pertenço, que me impede de deixar ainda mais a desejar, que é um incentivo a que eu nunca deixe de, pelo menos, tentar, de conseguir ser um bocadinho melhor a cada dia que passa. É azeda, contudo, esta sensação de não chegar. É cansativa esta constante tentativa, este constante propósito de tentar, ainda assim, chegar. Pelo menos já não arranjo desculpas, já não invento justificações. Pelo menos já vou conseguindo olhar e perceber, com alguma clareza - por vezes com muita dureza - onde fiquei aquém. Pelo menos tenho a sensação que estou a caminho. Num caminho que apenas tem princípio - a cada manhã que desponta - mas a caminho. Será apenas isso o que importa?

20220314

 

De entre os inúmeros aspetos da minha personalidade que, pudesse eu, seriam rifados com uma alegria imensa, há um que me mete sempre em trabalhos. Não sei bem porquê, mas não sou muito dado a unanimidades. Quando está toda a gente de acordo, com um olhar monofocado sobre o que quer que seja, eu descubro-me a, instintivamente, procurar a falha e a alterar a forma como eu vejo a coisa. Nesta altura com a guerra na Ucrânia, passa-se um bocadinho isso. Claro que sou contra a estupidez do Putin, claro que é uma agressão bárbara, claro devemos fazer tudo para acolher os refugiados, claro que estamos todos de acordo que nestas alturas quem se lixa é o mexilhão e é para ele, fundamentalmente, que devemos olhar e, sobretudo, acolher. No entanto, isso não me faz tecer loas nem à Ucrânia nem ao seu presidente. Nem me predispõe grande coisa a embarcar nas inúmeras campanhas de solidariedade que nesta altura abundam por esta europa fora. Por um lado por causa do excesso de emotividade - que me põe sempre de pé atrás nestas coisas; por outro, por insuficiência de racionalidade da forma de apoio. Mas isso eu até entendo: nós comovemo-nos com facilidade e, ainda que o efeito não seja totalmente cumprido, pelo menos é sinal que não estamos ainda inteiramente adormecidos. O que tenho mais dificuldade em entender é este preto e branco absolutamente distintos, este culpados e inocentes absolutamente claros, esta diabolização do Putin e glorificação do Zielisnki. Talvez seja porque a história já me ensinou à saciedade a não acreditar em homens providenciais. Talvez seja por saber que é "apenas" política. Talvez seja por saber que enquanto nos movemos pelas imagens da televisão, não ligamos puto ao que se passa noutro ponto do globo... ou ao fundo da rua. Não que isto nos deva impedir de acudir a quem precisa. Seja quem for. Mas porque não sou tão otimista que acredite que. logo que o fogo passe, voltemos a atenção para outra coisa completamente diferente. A começar por mim.

20220301

 

Quando fui para a faculdade  estudar Ciências Religiosas, uma amiga fez-me um aviso que nunca mais esqueci: "Tem cuidado. Num curso desses ou a tua fé tem raízes e sai fortalecida ou corres o risco sério de a perder." Ao longo dos vários anos da faculdade tive sempre bem presente este aviso. Que se revelou verdadeiro. Quando estudava a História da Igreja, a Eclesiologia e outras disciplinas deste género, deparei-me com muitos acontecimentos nossos, da Igreja, que estavam bem longe de Jesus. E isso pode ser verdadeiramente perturbador. Afinal, eu estou completamente imerso na Igreja, faço parte dela, quero fazer parte da sua história, da sua realidade, e nem sempre o legado é aquele que eu gostaria que fosse. Recentemente, isso tornou-se gritantemente evidente com os inúmeros casos de pedofilia que ocorreram no nosso seio. Perante esses acontecimentos, só me resta a vergonha - que nem sequer é alheia mas também minha porque não me posso por de fora quando me é convenientemente - e o silêncio dorido e respeitoso por todos aqueles que sofreram. E, naturalmente, impedir que volte a acontecer. Mas nem tudo é mau. E com este Papa posso até afirmar que tudo é um pouco melhor. Confesso que não acolhi particularmente bem a sua chegada. Eu tenho um fascínio pela erudição - aliás, tenho um fascínio por tudo aquilo que eu sou incapaz de alcançar - e deliciavam-me as horas dedicadas à leitura de tudo o que saía do Papa Bento XVI. Adorava a sua batalha por recuperar o lugar do sabedoria católica junto dos meios eruditos, junto das faculdades e das ciências. E no início o Papa Francisco parecia-me um passo o sentido oposto, do simplismo, do superficial. E era, em parte. Na realidade, o Papa Francisco é um passo em sentido oposto ao que temos tido, mas apenas porque é um passo de regresso a casa. Por isso, à medida que o fui lendo e, sobretudo, fui testemunhando o desassombro com que nos faz regressar aos que habitam as margens e afronta os que se atravessam no caminho do evangelho, fui admirando cada vez mais aquele homem que não hesita nem revela medo. E fico genuinamente feliz quando vejo como são justamente esses que habitam as margens que valorizam mais as suas palavras e os seus gestos. Bastaria isso para ter a certeza que estamos de volta ao caminho certo.

20220222

 

Por vezes há coisas que dizemos e ouvimos dizer que soam a mais do mesmo, a verbo para encher meninos, como o meu pai me dizia. Outras, porém, constituem oportunidades para a desconstrução dos nossos próprios conceitos. E eu adoro quando isso acontece.

Há algum tempo, fui convidado para falar em algumas turmas acerca do que é esta coisa de viver com fé. Como eu não sei bem o que isso seja - nem tenha capacidade de dizer o que quer que seja acerca do assunto - preferi falar do que é viver com Deus dentro. Porque essas são certezas: a que sou habitado por Ele e a que quero que Ele me habite, mas, mais que isso, que essa cohabitação tem consequências práticas na minha vida e na dos que me rodeiam. E eu gosto de alicerçar o que digo naquilo que vivo.

Numa das últimas aulas, uma aluna, provavelmente algo insatisfeita por eu não ter abordado convenientemente a fé (a propósito, engana-se redondamente quem acha que os miúdos hoje não querem saber da fé para nada), perguntou-me o que era a fé para mim. Depois de hesitar - não contava com aquela pergunta, tão direta - falei-lhe de um episódio marcante da minha vida, enquanto pai, em que a minha filha mais velha correu, verdadeiramente, risco de vida. Liguei, portanto, automaticamente, a fé à eventualidade da morte de um filho, naquela que eu calculo que seja, de muito longe, a experiência-limite mais dolorosa de todas. Os miúdos perceberam a ideia, mas eu, que sou como as vacas - quando as ideias chegam eu meto-as cá dentro e só depois é que me dou tempo para as ruminar - andei com aquela questão a incomodar-me durante alguns dias. E recordei-me de uma conversa que tive algures em 1991 com alguém que, perante a notícia que eu iria ser pai, me disse que a minha vida jamais seria a mesma porque nada há de mais definitivo que ter um filho.

Hoje voltei a falar noutra turma. E, curiosamente, hoje, no final, foi-me colocada a mesmíssima questão. Então lá voltei a referir o episódio com a minha filha, mas desta vez tive a oportunidade de dar um outro rumo, feito de um pormaior que, na verdade, tudo muda. Na realidade, estamos todos habituados a ouvir que nada há de mais certo e definitivo que a morte e no entanto, para nós, para aqueles que acreditam, para aqueles que têm fé, nada há de mais certo e definitivo que a vida. Poderá parecer um mero jogo de palavras mas, na verdade, há uma imensidão de novidade nesta certeza. Quando aceitamos a vida - e não a morte - como aquilo que é verdadeiramente definitivo, a nossa própria vida, a nossa herança, o nosso legado, ganham uma nova roupagem, e nós uma nova responsabilidade. E um outro sentido.

E fiquei feliz. Triplamente feliz. Primeiro, porque uma simples questão permitiu-me desconstruir uma ideia feita, tantas vezes badalada. Depois, pela recordação dessa verdade sempre nova - e são tantas as vezes que preciso de ser recordado das verdades mais simples! Finalmente, pela oportunidade de fazer perceber de forma tão natural que o nosso é, verdadeiramente, o Deus da Vida!

Já valeu a pena!

Sentar e escutar, acolher, com o coração aberto, um outro coração, eventualmente ferido, eventualmente magoado, eventualmente perdido, ser admitido na dor dos outros, é um privilégio. Pena é que eu nem sempre tenha a serenidade, a abertura e a coragem de me dispor a fazê-lo.

20220209

 


Quando estou com a cabeça cheia, assoberbada, recorro ao básico, ao primeiro. Passeio-me no Parque da Cidade, sento-me junto ao mar, deixo que a brisa me envolva e o som das ondas me invada. Abandono-me. Não faço qualquer esforço para calar o que a cabeça me grita mas, pelo contrário, deixo fluir, até que a sua voz enrouqueça e atenue, lentamente, recuperando a sua normal tonalidade para que, finalmente, abracemos juntos o silêncio. 

O abandono tem muito de confiança, de deixar correr, de permitir a passagem do controlo. No meu caso, decorre da necessidade de regresso. À minha finitude, à minha pequenez, ao meu lugar. É um reganhar de consciência, de pertença, de reconhecimento. Recordo-me que não posso tudo e por isso abandono-me, conscientemente, a quem sei que tudo pode. Remeto-me ao conforto do silêncio profundo, que acontece no lugar onde, calculo, estará colocada a alma. Este silêncio que não é ausência mas inelutável presença, admitida, concedida, desejada intensamente para ser saboreada com intensidade semelhante. E habito, temporariamente, num tempo que pede meças à eternidade, um prenhe silêncio. 

O abandono, este abandono, resulta por isso em encontro. Um encontro que é íntimo, profundo, que seria quase secreto se não se desse a inevitabilidade do transbordo. Um encontro que é de mim para comigo, certamente, mas apenas porque aí habita Deus. Encontro-me sobretudo com a beleza, como se tivesse sido necessário varrer a alma para que nela coubessem as coisas belas da vida. Sendo o mesmo, regresso outro. Mais atento, mais sensível, mais vivo, mais permeável aos sons e ao sol que me invade o corpo e aquece a alma. Mais disposto à escuta, ao abraço, ao reconhecimento. Regresso mais feliz, refeito, reencontrado, acolhido. 

E pronto para acolher o que quer que o dia tenha para me oferecer.

 

20220207

 

Tenho falado do Encontro de Cristo na minha vida em várias turmas. 

Mais valia ler-lhes isto que encontrei hoje:

 

Maria Madalena - Sobre o primeiro encontro com Jesus

Vi-o pela primeira vez em junho. Ele caminhava pelas plantações de trigo, quando passei por perto com minhas criadas. Ele estava só. O ritmo de seus passos não se comparava com o de outros homens, e jamais vi um corpo mover-se como o seu. Homens não pisam a terra daquela maneira. Até agora não sei se ele ia rápido ou devagar. Minhas criadas apontaram para ele, cochichando timidamente umas com as outras. Eu parei por um momento e levantei o braço para saudá-lo, mas ele não virou o rosto, nem sequer me olhou. Como o odiei nesse momento! Retraí-me, fria como se tivesse atravessado uma nevasca. Eu tremia.

Naquela noite, sonhei com ele. Contaram-me depois que cheguei a gritar enquanto dormia e que meu sono havia sido agitado.

Foi em agosto que voltei a vê-lo, pela janela. Ele estava sentado à sombra de um cipreste, do outro lado de meu jardim, imóvel, como se tivesse sido esculpido em pedra, feito as estátuas de Antioquia e outras cidades do Norte. Minha escrava egípcia veio até mim e disse:

– Aquele homem está aqui de novo. Está sentado em teu jardim.”

Olhei para ele e minha alma estremeceu, porque ele era muito bonito. Seu corpo era singular, cada parte parecia amar as outras partes. Então, vesti meu traje de Damasco, saí de casa e fui em sua direção. Era minha solidão ou sua fragrância o que me atraía nele? Eram meus olhos sedentos que ansiavam por beleza ou sua beleza que buscava a luz de meus olhos? Até agora não sei.

Aproximei-me dele com minhas roupas perfumadas e minhas sandálias douradas, as sandálias que o capitão romano tinha me dado. Essas sandálias mesmo. Já à sua frente, disse-lhe:

– Bom dia.

– Bom dia, Maria – respondeu ele. E me olhou, com aqueles olhos noturnos, de um modo que nenhum homem jamais tinha me olhado. De repente, senti-me nua e envergonhada. Mas ele só havia dito isso: “Bom dia”.

– Não queres vir à minha casa? – perguntei.

E ele respondeu:

– Não estou já em tua casa?

No momento, não entendi o que ele queria dizer com aquilo, mas agora entendo.

– Não queres partilhar o pão e o vinho comigo? – perguntei.

– Sim, Maria, mas não agora.

Não agora, não agora, disse ele. E era a voz do mar que se fazia ouvir nessas duas palavras, a voz do vento e a voz das árvores. E quando ele pronunciou essas duas palavras, a vida falou com a morte. Pois saiba, meu amigo, eu estava morta. Eu era uma mulher divorciada de sua alma. Vivia afastada desse ser que vês agora. Pertencia a todos os homens e a nenhum. Chamavam-me de prostituta, uma mulher possuída por sete demônios. Fui amaldiçoada e era invejada. Mas quando seus olhos alvorecentes olharam nos meus, todas as estrelas de minha noite se apagaram, e eu me tornei Maria, somente Maria, uma mulher perdida para o mundo que tinha conhecido, encontrando-se em novos lugares.

– Vem à minha casa partilhar o pão e o vinho comigo – repeti o convite.

– Por que me pedes que seja teu convidado? – ele quis saber.

– Imploro-te que venhas à minha casa – respondi. E tudo o que era relva em mim e tudo o que em mim era céu clamava por ele.

Então, ele me olhou, com os olhos de meio-dia, e disse:

– Tu tens muitos amantes, mas apenas eu te amo de verdade. Os outros homens amam a si mesmos quando estão perto de ti. Eu te amo por ti mesma. Os outros homens veem em ti uma beleza que desaparecerá antes deles. Mas eu vejo em ti uma beleza permanente, e, no outono de teus dias, essa beleza não precisará ter medo de se olhar no espelho, e ela não será abalada. Só eu amo o que não se pode ver em ti.

Nesse momento, ele disse, com a voz baixa:

– Vai agora. Se este cipreste é teu e não queres que me sente à sua sombra, seguirei meu caminho.

– Mestre, vem à minha casa – insisti. – Tenho incenso para queimar para ti e uma bacia de prata para lavar teus pés. És um estrangeiro, mas não um estranho. Suplico-te: vem à minha casa.

Ele se levantou, olhou para mim como as estações olham para os campos e sorriu.

– Todos os homens te amam pelo que eles são – disse mais uma vez. – Eu te amo pelo que tu és.

E foi embora.

Nenhum outro homem jamais andou como ele andava. Foi uma brisa formada ali no meu jardim que se encaminhou para o oeste? Ou terá sido um vendaval que abala todos os alicerces?

Eu não sabia, mas naquele mesmo dia o ocaso de seus olhos matou o dragão em mim e me tornei mulher, me tornei Maria: Maria Madalena.”

 

Excerto de Jesus, o filho do homem, por Gibran Khalil Gibran

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Ontem sabia que teria um dia cheio. No entanto, não era essa a mossa que sentia: dias cheios são o pão nosso de cada um dos meus dias e dou Graças por isso. O que me fazia mossa era a ânsia da normalidade que, há muito tempo, teima em primar pela ausência. Eu sempre gostei da normalidade da rotina, de saber, no início de cada manhã, com o que vou contar e antecipar os trabalhos, os temas, as reações. Por causa disso, dessa ilusão do controlo, os meus primeiros 5 segundos depois de uma qualquer surpresa dificilmente são positivos: reajo sempre com protesto. Depois acalmo, racionalizo, incorporo e encaixo-me no que a vida me dá. Mas, entretanto, esses 5 segundos já estiveram lá e foram visíveis para o autor da surpresa. E isso não costuma ser bom. Por outro lado, não gosto da queixa do antes é que era bom ou do éramos tão felizes e não sabíamos. Apesar das imensas memórias que me habitam - e que eu prezo, independentemente de me fazerem sorrir ou sofrer - creio que nunca fui um saudosista. O melhor tempo é sempre este, agora, aqui, e nestas circunstâncias. Faço por não ser um revisionista da minha própria história e, sobretudo, por tentar fazer e ser o melhor em cada altura, em cada circunstância, sabendo sempre que esta é uma batalha por mim invariavelmente perdida, mas que reflete o que vou conseguindo ser, em cada momento, em cada passo que dou. Leituras posteriores implicam sempre algum esquecimento das circunstâncias concretas que me levaram a ser e a agir de determinada maneira e isso implica sempre uma culpa que me é tão intrínseca que faço por menorizar sob pena de ficar tolhido e são sair do lugar. 

Mas gostava muito de regressar à normalidade. De saber, no início de cada manhã, com o que poderia contar, com quem poderia contar, da tranquilidade da antecipação do desafio e a segurança que o desafio será mais ou menos aquele e não o que é ditado pela pandemia. Há um cansaço generalizado no ar. Um cansaço que é físico - são tantos os que ficaram com repercussões do COVID! - mas também psicológico, que não consegue já ser colmatado por uma mera escapadela ou emoção passageira. Sim, são estas as circunstâncias em que somos chamados a dar o nosso melhor. No entanto, ilusoriamente, temos tentado viver na normalidade, como se estes não fossem tempos extraordinários, de um extraordinário desgaste. Mantemos o ritmo, mantemos as agendas, mantemos os procedimentos, forçando uma realidade que apenas acontece nas nossas expectativas. Fingimos que conseguiremos como sempre conseguimos. Pintamos com cores bonitas o que não conseguimos para iludir os nossos dias. Temo que, como numa maratona, mesmo que consigamos chegar à meta, estejamos todos no nosso limite. Sem forças, sem energias, sem ilusões. Desaproveitando a normalidade, se e quando chegar.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...