O medo 

Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola. Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.

O Livro dos Abraços, de Galeano
 
Detesto o medo. Não aquele natural, essencial até, que nos resta da nossa condição de animal e que nos permite manter os sentidos alertas para tudo o que pode, efetivamente, por em risco a nossa vida. Desse também não gosto muito mas, no limite, impede-nos de saltar de cabeça a partir do alto de um prédio qualquer. E também não me refiro ao medo que advém da imensidão de amar, que nos desperta para a proteção, para o abraço, que nos comove para a necessidade de cuidar quando estamos perante alguém que sofre. Esse é-nos dado pela nossa condição humana, que nos faz ultrapassar-nos a nós próprios e às nossas conveniências. O medo que detesto mesmo é o medo irracional, que não existe em função das circunstâncias mas resulta da nossa projeção negativa sobre as circunstâncias. Esse é o medo que rouba, o medo que tolhe, que nos impede de sermos mais, de irmos mais longe, de darmos uso às asas que nos foram dadas para voar. Até porque essa irracionalidade tem, invariavelmente, raiz dentro, é tremendamente egoísta, auto-protetora. No fundo, não tememos o que acontece àqueles que amamos, mas o que nos acontece com a perda daqueles que amamos. E em nome desse medo acabamos por nos sufocarmos a nós próprios e àqueles que amamos, enquanto decretamos a morte desse amor. Este é um medo que não tem os pés assentos no presente mas na possibilidade de futuro, ou melhor, na mais negativa perspetiva de futuro: eu tenho tanto medo do que, eventualmente, vou sofrer, que acabo por escolher infligir esse sofrimento, tornando-o real. É como se o futuro fosse tão inconcebivelmente doloroso que escolho tornar essa dor presente hoje, aqui e agora, na pior das suas possíveis formas. Este medo já me roubou noites e sorrisos e futuros e pessoas e, por me ter roubado tudo isso, roubou-me vida. Valeram-me, sempre, aqueles que, amando-me, viam o que eu não conseguia ver. E a sua mão, sempre presente, sempre estendida, para que a pudesse agarrar.

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