20241231

Bambora

 


Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos os fracassos e frustrações, o homem volta a recompor-se, volta a esperar, volta a por-se em marcha em direcção a algo. Há no ser humano algo que o chama uma e outra vez à vida e à esperança. Há sempre uma estrela que volta a acender. 

https://www.gruposdejesus.com/epifania-do-senhor-c-mateus-21-12-3/


É tão inevitável como a passagem do ano: chegado a esta altura, faço listagens e propósitos e compromissos, porque desta vez é que é. Cheio de certezas, registo tudo: estados de alma, condição física, horários de sono, contas… para que de hoje a um ano possa ver, ufano, o extraordinário progresso que fiz a nível pessoal, familiar e profissional. 2025 vai ser espetacular! Pego no excel, abro uma tabela nova, cheia de cálculos e esquemas , com horários, ajustando tudo ao nível do sonho. Claro que na segunda feira, mergulhado no que não consegui prever, tendo que me ajustar à vida vivida, já esqueci completamente o que tinha programado. Mas não importa, lá para finais de julho, em pleno tempo de férias, faço o balanço do ano letivo e preparo o próximo com novas tabelas, novos esquemas, porque aí é que vai ser.

Muda alguma coisa? Claro que sim. É como estar aqui a escrever. Fazer as tabelas, programar, escrever, é trazer cá para fora o que está dentro. E precisa de ser escrito, mesmo, porque senão fica uma nuvem cinzenta a pairar em cima da cabeça, onde tudo se mistura e nada se clarifica. E é muito importante para mim trazer essas coisas cá para fora. É muito importante o processo de recordar e avaliar o que aconteceu para que possa servir de impulso para o que gostaria que acontecesse. É muito importante para mim este parar, olhar, apreciar, saborear, para poder ajustar processos e caminhos, reorientar destinos e poder avançar um pouco melhor. Sim, por vezes os avanços não são significativos; sim os recuos são imensos e desanimadores; sim, isso tudo. Mas quando olho para trás vejo um rumo. Nem sempre cumprido, nem sempre linear, nem sempre progressivo, mas um rumo, isto é: um ponto de partida e um destino, que nós não somos de chegadas - eu, pelo menos, não sou.

O único cuidado que tenho de ter é libertar-me da culpa do não cumprido. É não esquecer que uma projeção é apenas uma projeção, não é uma fatalidade. E eu nisso sou muito português, sou muito fadista, tendo a procurar motivos para não ter cumprido e, invariavelmente, tropeço nas minhas enormes insuficiências. Portanto, não me posso esquecer: as listagens que este ano fiz e tenho diante de mim são apenas isso: listagens, rumos traçados, agulhas que apontam o caminho. Mas o que importa, mesmo, o que torna uma vida bem ou mal vivida, é o caminho. E esse é para se saborear. Passo a passo. Momento a momento. Intensamente. As coisas boas e as coisas más. Gargalhar quando é de rir; Chorar baba e ranho quando é de sofrer. A cada momento o seu momento. Inteiro. Intenso. Haverá tempo para ajustar o rumo.

Hoje termina 2024. Bambora!

Um excelente 2025 para todos!

20241208

"...é exactamente quando deixamos de esperar que a vida começa a valer a pena."

 https://www.publico.pt/2024/12/08/impar/cronica/dizelo-cantando-gente-2114734

Tenho lido muita coisa boa. Crónicas, sobretudo. Gosto imenso de crónicas, de textos de opinião, de partilhas em textos pequenos que, quando bem escritos, têm a capacidade de me fazer poesia: levam-me a ver o que, distraidamente, apenas olho. Claro que não substitui o intrincado enredo de um bom romance, mas têm outra coisa. São-me quase familiares, provocam aquela sensação de "eu já estive aqui" que me permitem identificar com o que leio. 

No nosso GEP temos falado da espera. De como é bom esperar, de como é bom aproveitar a espera para vivermos antecipadamente o que sabemos que vai acontecer. Não tenho vida para deitar fora e a espera faz parte da vida, logo há que a saber aproveitar e vive-la bem. E eu, que tenho imensa dificuldade com os tempos intermédios - os que são entre uma coisa e outra - tenho aprendido a viver a espera. Sim, eu sei que normalmente o tempo mais importante não é o da espera mas o do acontecimento. Mas quanto mais importante é o acontecimento, mais importante se torna a sua espera. E a sua memória, depois. Quando bem vivida, esta tríade - espera, acontecimento e memória - forma um todo intimamente ligado e é esse todo que se transforma, eventualmente, num grande acontecimento da nossa vida. 

O problema, então, não é o da espera. O problema tem outro nome, que se incidia na espera, perturba o acontecimento e estraga a memória. O problema é a expectativa. Essa é que, se tiver rédea solta, toma conta de tudo. E dá cabo de tudo.

20241201

Sentar e conversar. Nem sempre resulta. Aliás, é um processo, um caminho com várias etapas, sendo que apenas resulta no final. Mas até chegarmos lá, sentamos e conversamos várias vezes. Portanto, não é propriamente o sentar e conversar mas o conversarmos sentados. Uma das minhas experiências mais marcantes em Quelimane, Moçambique - é uma das maiores aprendizagens - teve justamente a ver com isso: sempre que chegava a casa de alguém eram colocadas duas cadeiras debaixo de uma árvore. Por muito que eu dissesse que iria ser rápido, insistiam sempre para que sentássemos. Mais tarde aprendi que era um sinal de respeito, que significava que eu era tão importante que me concediam o seu tempo. Sentar e conversar. Até hoje, sempre que consegui dar início a esse processo, com tempo, com calma e olhos nos olhos, nunca terminou mal. Houve alturas em que concordamos, houve alturas em que continuamos discordantes, mas acabamos sempre mais próximos um do outro e, sobretudo, respeitando-nos e admirando-nos mutuamente. E esse é o verdadeiro caminho, não o concordarmos, mas o aproximarmo-nos. É só para isso que sentamos e conversamos.

20241130

 Ontem tive encontro do CoMTigo. Não saí satisfeito comigo. Não estava claro o percurso, de onde iria partir e sobretudo onde queria chegar. E quando os miúdos começaram a colocar as suas questões à procura de respostas eu patinei, transferi a minha falta de clareza para eles. Agora mesmo perguntava-me porque é que isso aconteceu. Não costumo patinar assim, não costumo não ser claro em mim para poder ser claro para os outros. Diria até que essa clareza, esse mastigar para poder alimentar é uma das minhas melhores capacidades. E percebi: eu rezei pouco isto. Certo, não tive tempo para caminhar com isto na cabeça, estive mental e espiritualmente envolvido noutras lides, tudo boas justificações, mas que são apenas isso: justificações. O que importa mesmo é que fui, de certa forma, sobranceiro, confiei excessivamente nas minhas capacidades, no trabalho sem rede, no desenrascanço. E eu não posso não rezar o que vou dizer, o que vou transmitir, o que vou rezar com os outros. E rezar o que vou dizer é pensar nisso sob o guarda chuva da fé, é deixar que acampe cá por dentro e faça caminho, é permitir que o Espírito me trabalhe e me conduza, torne as coisas mais claras em mim para que eu as possa tornar mais claras para os outros. Ontem faltou-me isto. Não acaba o mundo. Mas não pode voltar a acontecer.

20241128

Por pouco ficava encurralado. A intenção não era má, talvez nem fosse consciente, mas tentaram encurralar-me. A propósito de uma discussão que tem tanto de atual como de superficial e estúpida: a da cor dos boletins de saúde. A pergunta que me colocaram era mais ou menos esta: se isso é assim tão importante, mais importante ainda é o nome que se dá à criança. Então não se dê nome para que ela o possa escolher quando quiser. Era mais ou menos isto.

Não dei seguimento. Neguei-me a seguir com a discussão. Não que a questão de fundo não seja importante – acredito que seja motivo de sofrimento para muitos – mas porque, se é importante, deve ser discutida seriamente. E só se discute seriamente com quem não está – voluntariamente ou não – entrincheirado. 


Discutir é dirimir argumentos. E isso apenas é possível com quem não está impermeabilizado, enquistado em si mesmo, mas põe a hipótese de não saber tudo. Por isso, não discuto com quem apenas tem certezas. São extremistas. Discuto com quem, como eu, anda sempre à procura. E que, ainda que no calor da discussão se diga disparates – dizem-se sempre disparates – permite que o que foi dito faça caminho dentro de si. E que tenha consciência que cada conclusão é passível de nova discussão. 


Hoje não me deixei encurralar. Pura e simplesmente disse que os termos da discussão eram tolos e que não discuto com tolos. Correu bem, como podem calcular . Paciência.

Mais um GEP. Mais uma consciencialização que somos de etapas, não de destinos. E como é importante termos essa consciência que somos etapas! Sobretudo se nos impedir de ficarmos ancorados ou na dor ou na euforia do sucesso. Ambos são momentos que se pretendem passageiros, não são a vida comum do dia a dia. Se entendermos a dor e a euforia como uma etapa sabemos que amanhã as coisas serão diferentes e que será retomada a normalidade. É importante, então, viver o momento - chorar quando é de chorar, celebrar quando é de celebrar - mas avançar. Avançar sempre. Pôr os pés no chão, encarar a realidade e fazer dela o nosso ponto de partida rumo a uma nova etapa. Sim, o rumo é importante. Não somos da deriva.

20241127

Há expressões que não deveriam constar do meu vocabulário. Expressões como "nunca mais" ou "para sempre" pura e simplesmente não deveriam existir. Porque são sempre ditas num contexto, numa circunstância, numa situação emocional que tem tudo para ser irrepetível. O contexto muda mas o peso dessas palavras, uma vez ditas, permanece. São expressões que doem porque assim que são ditas implicam perda. O que se perde porque "nunca mais"; o que se deixa para trás porque é "para sempre". E são ilusórias. Ambas. Servem para sossegar o espírito. Por isso, quanto mais inquieto sinto o meu espírito, maior a veemência com que são por mim utilizadas. Nunca levianamente, conheço-lhes bem o peso e a exigência. Mas sempre com algum grau de mágoa, ainda que silenciosa. Porque amordaçada. Emudecida. Por isso há recuos, também magoados, que me deixam-me um amargo de boca que seria absolutamente evitável se estivesse sempre consciente que a vida é tudo menos linear. Não é linear. Eu sei que não é linear. É muito mais como as ondas do mar, num vai e vem constante, que umas vezes é suave enquanto noutras arrasta tudo o que apanha à frente. A mim, principalmente. 

Primeira lapalissada: a dor dói. Não há dor que não doa. Não há dor que provoque alegria, ou risos, muito menos gargalhadas. Não há dor que seja felicidade, ou agradável, nem sequer bem disposta. Por isso não a procuramos, por isso a evitamos, tentamos fugir dela a sete pés. Segunda lapalissada: não adianta fugir. Não adianta escondermo-nos da dor, esconde-la de nós próprios, fazermos de conta que não existe, imaginarmos uma qualquer outra realidade onde ela não esteja. Quando a dor vem, faz-se sentir. Muitas vezes sem se fazer anunciar, sem avisos prévios, sem preparação, sem conjecturas. Quando chega, é. E quase sempre é, impedindo que qualquer outra coisa seja. Quando dói, e dói mesmo, dói que se farta. Por isso, o melhor mesmo é acolhe-la. Sem reservas nem pudor. É para sofrer? Sofre-se. É para chorar? Chora-se. É para rasgar vestes? Rasga-se. Terceira lapalissada: a vida não é dor. Não é para ficar por aí. Então, acolhe-se a dor, vive-se o momento, mas avança-se. Lentamente, se possível com a ajuda de alguém - é fundamental deixarmos-nos ajudar - vai-se colocando os pés no chão e parte-se dai: da realidade, por muito nua que seja, por muito crua que seja, por muito dolorosa que seja. Quarta lapalissada: a dor não se esquece. Quando a coisa corre bem, identifica-se a sua origem, cataloga-se, arquiva-se, sabendo que na fragilidade ela se encarrega de aparecer. Com intensidades variáveis, mas está sempre lá. Fica sempre lá. Se tiver sido corretamente identificada, devidamente catalogada, vale pelo que é: aquela dor. Não cresce em nós, não provoca angústias, medos das possibilidades do futuro: é aquela, tem nome próprio, tem lugar próprio, tem circunstâncias próprias e, ainda que tudo se conjugue para que se volte a manifestar, já a conhecemos. E porque a conhecemos já sabemos lidar um pouco melhor com ela. Faz parte de nós. Tão parte quanto os momentos felizes. E podemos avançar.

20241126

No outro dia alguém disse-me que me lia. E que gostava de me ler. Assusta-me sempre. Nunca escrevo para ser lido. Escrevo para escrever. Para organizar as ideias, os sentimentos, para me confrontar comigo. Para tentar descortinar um qualquer sentido no desejo quase secreto de descobrir esse sentido em mim e no que faço. Às vezes resulta. Às vezes descubro o Ahhh!!! por entre as palavras que vão aparecendo no ecrã do computador. Um Ahhh!!! tão genuíno que às vezes desconfio que essas palavras não foram escritas por mim mas por um dos vários eus que me habitam (como eu entendo o Dr Jekyll and Mr Hyde!) Mas lá está. Para que isso aconteça não posso estar preocupado com a construção das frases, com a correção linguística, com as normas a que devo obedecer para que a coisa seja bonita. Não é para ser bonita. Ou clara. Muito menos para quem lê. É para escrever. Só isso. Por isso nunca regresso. Nunca releio. Nunca corrijo para além daquilo que o computador sublinha a vermelho - sublinhasse ele a azul e provavelmente ficaria orgulhosamente evidenciado. 

20241120

Chegou aqui a pedido institucional. Dez anos, e a vida já num emaranhado de complicações: maus tratos, impedimento judicial de aproximação dos pais, mudança de lugar, de casa, de escola... Como é possível! O nosso primeiro embate não foi famoso. Não reagiu bem a mim. Não reagi bem a ele. É normal. em casos destes o equilíbrio é tudo menos fácil: fica algures entre o mimo, o cuidado e a exigência. É um triunviriato precioso que precisa ser administrado com parcimónia para que nenhum nem ninguém se perca algures no caminho. Passado o primeiro embate, com muitos mais gestos que palavras, lá nos fomos entendendo. A custo, muito devagar, mútua cedência aqui e acolá, e vamos fazendo caminho. Hoje, pela primeira vez, falávamos um pouco mais e ele olhava para mim com aquele ar que conheço bem. Sorri e disse-lhe: sabes que gaguejo, certo? Ele nem pestanejou: não tem problema,stor. Eu percebo bem o que diz.

Acredito que todos somos habitados por uma humanidade que o tempo e a vida muitas vezes se encarrega de distorcer. Infelizmente, conheço os suficientes para saber que aos dez anos essa humanidade se vai esboroando à força de pancada, de maus tratos, de abandonos. Mas por vezes percebo que em alguns casos - alguns deles bem improváveis - vai permanecendo, contra todas as evidências, contra todas as expectativas, contra todas as pancadas. E essas vezes são sempre motivos para sorrir. E dar Graças pelos milagres que todos os dias acontecem. Mesmo aqui. Ou sobretudo aqui.

20241106

 0751 Viver o despojamento que Jesus viveu é viver de acordo com uma convicção profunda acima de tudo. A convicção profunda de Jesus era a do Reino dos Céus: somos filhos amados pelo Pai. Esta era a sua convicção e foi em nome dela que viveu e morreu. Viver assim pressupõe uma escolha profunda e uma certeza capaz de combater todas as noites escuras. E Jesus também as teve, como no Getsémani, também rezou para não ter de as enfrentar e também se resignou a ter de o fazer. Até nisso partilhou da nossa humanidade. Uma humanidade em que o único verdadeiro privilégio é ser filho do Pai. Se até a mim, que tento viver mergulhado na fé, o sentido de tudo isto se me escapa tantas vezes, como não há de escapar àqueles para quem a fé não é mais que uma vaga ideia? Sobretudo quando o despojamento que nos é pedido nos toca naquilo que nos é mais fundamental: a necessidade absoluta de sermos reconhecidos. Note-se como também nisto a vida e morte de Jesus foi absolutamente paradigmática: Jesus só fez o bem e até pelos seus (exceção feita à Mãe, a Maria Madalena e a João) foi abandonado. E não foi só por medo, mas pela certeza que o reconhecimento de que seriam alvo - seria tudo menos positivo: “Nós pensávamos que…” diziam quando regressavam a Emaús. Quando perceberam que afinal não havia lugares à Sua direita mas perseguições, apressaram-se a negá-lo. É deste despojamento que nos falam as leituras do próximo domingo. O despojamento da viúva de Sarepta, o despojamento do sacerdote que apenas serve, o despojamento da viúva anónima que entrega o seu único garante de sustento - e de existência social. É este o despojamento que eu não consigo ter. Na verdade, se não tiver os meus do meu lado, o que vale a pena?

20241105

Deus está no leme poderia ser uma boa alegoria para a minha vida. E assim evitar o pânico. Ainda esta noite acordei às 4 e tive dificuldade em voltar a adormecer por causa do pânico provocado pela imensidão de coisas que tenho de fazer. E tudo para ontem! Mas preciso acalmar, serenar-me interiormente e confiar. Nada tenho de fazer que não seja capaz de fazer. Essa é a constatação do meu limite, da minha vulnerabilidade, da minha humanidade. Eu sou limitado. A minha medida é a do possível. Do irremediavelmente pequeno. Desde que por Amor.

 A propósito de Lc 14, 15-24: a única coisa que posso fazer é convidar. E não posso fazer outras coisas: ficar zangado se não participam; duvidar das suas justificações; deixar de convidar. O convite deve existir sempre, o acolhimento deve existir sempre, o aliviar da carga da culpa deve existir sempre. Mesmo sabendo que, se alguém escolhe não participar, ficarei e ficaremos todos mais pobres. Mas não sei, de todo, as dinâmicas familiares de cada um. Não sei de “estás sempre fora de casa”, não sei de “preciso de ti aqui”, não sei de “estou tão esgotado”, não sei de “se hoje for, rebento”. Não sei, não posso saber, e, francamente, não adiantaria de nada saber. A não ser para consolar. E para dizer “fica. Sem problema. Não faltarão oportunidades”

20241101

Acabo de chegar do cemitério. É tradição, cá por casa. Anos houve em que me custava imenso estar lá de pé, no meio de uma multidão da terra, durante a eucaristia ao ar livro. Á medida que os anos vão passando, a sensação é que me vai custando menos. Antes, junto à campa, éramos imensos. Agora já passaram bastantes para o outro lado. Ou melhor, para uns palmos mais abaixo. Mas continuamos a estar juntos neste dia. No final, o padre disse para rezarmos pelos que tínhamos diante de nós. Não consegui deixar de sorrir. Acredito muito que o contrário acontece: são os que estão junto do Pai que rezam por nós, pela nossa cegueira, pela nossa apetência, persistência e competência para a asneira. Não precisam que rezemos por eles. Parece-me sempre muito esquisita esta ideia de um Deus que precisaria que rezemos pelas almas para que Ele se lembre delas. Esquisita e muito contra tudo aquilo que Jesus testemunho: por acaso o Pai se esquece do Seu filho? Enfim! São coisas mais da mentalidade humana, viciada na recompensa, que do Amor. Talvez seja por isso que, pelo menos até aqui não temo a morte. Porque confio inteiramente no amor do Pai. Se assim não for, se estou à espera que sejam os meus méritos a fazer alguma coisa para me garantir a salvação, o melhor é despachar já a coisa: quanto menos viver mesmo asneiras faço. 

20241031

Ainda me espanto! Perante o desafio de pensar num adulto que tenha sido significativo na minha infância e adolescência - no sentido de me ter feito sentir amado, desejado, acarinhado - o que senti foi uma inesperada mas profunda solidão. E dor. Há perguntas que ainda não suporto. Há questões que ainda prefiro deixar arrumadas, bem ou mal arrumadas, para que não tenha de mexer nelas. Porque nada de bom daí virá se o fizer. Não tenho nada a ideia que se deve falar de tudo, pôr tudo a descoberto, para se resolver. Há coisas que não têm resolução possível. E há coisas cujo custo de resolução seria demasiado alto para muita gente, e eu não tenho o direito de, para ficar bem, pôr outras pessoas mal. É tão simples como isso. É até lógico. Ficaria eu bem sabendo que, para aliviar a minha pressão estaria apenas a enviá-la para outros? Claro que não. Então... Mais vale ficar quietinho no meu canto. Normalmente lido bem com estas dores: remeto-as para os confins e não penso nelas. Algures no tempo - nem que seja quando morrer - elas serão resolvidas. Ou não. É lidar.

 Gosto menso da ideia da serenidade. Gosto imenso do silêncio, da quietude, do abandono à aparentemente coisa nenhuma que a maior parte das vezes se transforma no mergulho na imensidão. Gosto do escuro, do recolhimento, do olhar para dentro e aí permanecer. Gosto do tempo, do dar tempo, do ter tempo, para poder acampar dentro de mim e deixar fluir e fruir, serenamente, do que me habita. 

O problema é que raramente consigo essa serenidade. Nos dias bons até posso procurar um lugar calmo e propício, até me posso isolar, até posso encontrar o silêncio exterior que me proporcionaria esse encontro profundo comigo mesmo. O problema é que nem sempre a cabeça se cala. Mal me acomodo, mal me aconchego, lá começa a sua berraria com a imensidão do que tenho para fazer, do que tenho para resolver do que ainda não fiz…

Hoje é um dia desses. Complicados. E preciso de serenar. Muito.

20241024


 

Nunca mais esqueci o filme Crash (Colisão), de Paul Haggis. Naquele filme não há maus absolutos nem bons imaculados: há pessoas e circunstâncias, há pequenos acontecimentos que vão envolvendo uns e outros, sendo que uns e outros são capazes de coisas boas e más dependendo das respostas que vão conseguindo dar ao que vai sucedendo. Há como que uma cozedura progressiva, um progressivo adormecimento da razão e dos sentidos que, tal como acontece com a rã, mantém a todos indiferentes a uma água que vai sendo, progressivamente, mais quente. Tenho-me lembrado tanto deste filme!

De acordo com a informação que vou conseguindo ter, não encontro grandes culpados nos acontecimentos mais recentes de Lisboa. Encontro medo. Encontro sofrimento. Encontro respostas ao medo e ao sofrimento. Por isso encontro tragédia. A tragédia de uns polícias cansados e a maioria das vezes frustrados face ao que, dia após dia, noite após noite, têm de enfrentar; a tragédia de pessoas remetidas para uma berma, cansados de tanto lutar para chegar a lado nenhum, para se sentirem coisa nenhuma. A tragédia do medo, que perpassa o dia de uns e de outros, um medo em tudo semelhante, que em tudo os une: medo do que possa acontecer aos que os esperam em casa e que uns e outros querem proteger; medo do que possa acontecer a eles próprios, medo da impotência, da irrelevância da sua própria vida.

Nada disto começou esta semana. Nada disto é absolutamente inesperado por nenhum de nós. E estamos, de certeza, a fazer qualquer coisa muito errada, para permitirmos, todos, que um caldo destes vá sendo cozinhado enquanto escolhemos não ver, não agir, não aliviar o sofrimento. De todos. Porque é de sofrimento que se trata. De todos. Sofrimento antes dos acontecimentos, sofrimento durante os acontecimentos, sofrimento depois dos acontecimentos. Um sofrimento que eu poderia aliviar, à medida das minhas possibilidades. Um sofrimento que cada um de eus poderia aliviar, à medida das possibilidades de cada um dos eus. Porque não adianta, agora, vociferar. Não é pela gritaria que chegamos lá. Nem pela massificação. É por aquilo que eu, hoje, aqui e agora, escolho fazer. Para aliviar o sofrimento daquele que está a escassos metros de mim. O resto são desculpas.

20241017

 Devemos passar de um “ser de” e um “ser para” para um “ser com”. Há uma verticalidade no "ser de" e "ser para" que é mais consentânea com uma relação de poder que com uma relação de amor. Na verdade, eu não sou "para" nem "de" Deus ou dos outros mas sou "com" Deus e "com" os outros. Esta horizontalidade, este "com", apela a uma comunhão, uma ausência de posse, uma aprendizagem mútua que conduz ao aprofundamento da relação, ao crescimento da intimidade e, por conseguinte, do amor. E ao reconhecimento. Tão importante!

No filme do Avatar o que retive mais não foi a tecnologia fabulosa mas o Na'vi "Oel ngati kameie" (I see you). O "eu vejo-te", sendo aparentemente simples, tem em si uma série de implicações absolutamente determinantes. O Papa Francisco chama-nos muitas a vezes a ver os invisíveis, aqueles por quem passamos e nem reparamos. E atrevo-me a dizer que esses nem sequer são os difíceis. Os particularmente complicados são aqueles com quem nos cruzamos frequentemente e que escolhemos ignorar, fazer de conta que não vemos, desejar que não existissem na nossa vida, Esses é que são o nosso desafio. Porque exigem uma proatividade que, para além da nossa atenção, apela à nossa vontade, ao esquecermos o ressentimento, e isso não é partir do zero mas do menos qualquer coisa para tentar construir algo de positivo. Neste caso, o eu vejo-te alia-se ao eu escuto-te e isso é já o eu sou contigo. Até o posso ser na discordância profunda, no desentendimento, mas isso é também aprendizagem, é mútuo contributo para o mútuo crescimento, é também "ser com".

20241016

Seguíamos para o aeroporto. A minha filha é coordenadora de uma equipa numa multinacional e volta e meia sou um pai Uber de todos os meus filhos. No caminho falava com ela de algo que me inquietou: na despedida do congresso das escolas católicas os dirigentes estavam em cima do palco. Só homens. Da área do ensino onde, como sabemos, as mulheres estão em larga maioria. A estranheza foi tanta que eu, que normalmente não ligo puto a isso, reparei. Só homens. O que significa uma de duas coisas: ou elas não são competentes para estar lá, ou são impedidas de lá chegar. Não gosto das quotas, não ligo se são homens ou mulheres, parto sempre do princípio que a competência fala mais alto. Sou ingénuo, claro. E partilhei isso com a minha filha. E ela, que nessa mesma semana tinha estado numa operação da Team Building da sua empresa, disse que o mesmo se passava lá: nas chefias superiores, só homens. Daí para baixo, quase só mulheres. Não entendo. Para mim nunca foi importante quem me dirigia, a não ser a sua competência. Não é importante o género, a orientação sexual, a altura, o peso, o nome, a condição... ninguém me merece mais ou menos respeito por causa das suas circunstâncias ou escolhas pessoais. E não tenho qualquer dúvida que é um erro considerar tudo isso um obstáculo para o que quer que seja num clima organizacional (já para não falar do âmbito das relações pessoais). Eu, que fico solenemente irritado com os "portugueses e portuguesas" dos nossos políticos, percebo que as mulheres se possam sentir relegadas para segundo plano quando me deparo com estas coisas. Mas acredito que não será por muito tempo. Nem elas deixam.

20240923

“Cada religião é um caminho para chegar a Deus. Existem diferentes línguas para chegar a Deus, mas Deus é Deus para todos…Existe apenas um Deus e cada um tem uma língua para chegar a Deus” (Papa Francisco)

É evidente, não é? Para mim já o é há imenso tempo, mas caímos sempre na tentação de enclausurar Deus, de O fazer nosso e apenas nosso como única maneira de nos sentirmos especiais diante d'Ele. Durante anos ouvi, nomeadamente na faculdade, a dizer que sim, todas as nossas religiões têm algo de validade, mas a nossa é a melhor. Desde sempre o contestei. No início porque intuía que não seria bem assim, depois, à medida que fui crescendo na fé, fui confirmando com alguma racionalidade essa intuição. 
Mas na verdade, o que me preocupa é a minha necessidade de validação. Apesar de ser para mim quase uma evidência o que disse o Papa Francisco, não consigo deixar de sentir alegria por ele dizer o mesmo que eu. Como se precisasse que ele o dissesse para que eu o diga à boca cheia. Na verdade, não preciso, porque já o dizia, mas há uma necessidade de validação, uma necessidade de me encontrar do lado certo da cerca, do "eu tinha razão, embrulha" que sendo humana, me desagrada em mim. Para começar, a cerca não me agrada. É-me constitutiva, faz parte de quem sou, mas não me agrada. Nada. Depois, porque na verdade não há lados certos e errados quando falamos de Deus, sobretudo se o fazemos a partir da verdade da experiência pessoal e comunitária de cada um. Quando falamos de Deus há patamares, há intenções, há fé - sim, há sempre fé nas afirmações positivas ou negativas acerca de Deus - há lugares a partir dos quais falamos, mas falamos sempre do que não conhecemos porque nos é infinitamente interior e infinitamente maior. Somos sempre infinitamente pequenos quando falamos de Deus. Quer seja eu, quer seja o papa. 

20240919

"São-lhe perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama." Lc 7, 36-50

Há uns anos, em Taizé, uma reflexão bíblica despertou-me para esta ligação íntima entre amor e pecado. Até essa altura, nunca me tinha sequer apercebido que estariam ligadas. Como é típico de Taizé, que procura sempre um outro olhar sobre as leituras - bíblica e da vida - a pergunta que era colocada era se o perdão era muito porque se tinha amado muito ou se o perdão era necessariamente muito porque, como se amava muito, pecava-se muito. Não é bem a mesma coisa. Perdoar muito porque se ama muito cheira a recompensa: Perdoar muito porque, por amor, se peca muito, cheira a risco aceitado. 

Acredito que as Escrituras nos dizem o que, em dado momento, precisamos de ouvir. É como se Deus viesse ao nosso encontro nas perguntas e inquietações mais profundas. Não nos fala exclusivamente através das Escrituras, claro, mas nelas encontro sempre o que procuro, sobretudo quando não sei que procuro, sobretudo quando não gosto particularmente do que encontro. 

Ser perdoado será, talvez, junto com a inquietação, a minha ânsia mais profunda. Não sei concretamente de quê, mas intuí sempre que ser perdoado seria a condição fundamental para poder colocar a hipótese de ser amado. Por isso, quando discuto, quando me chamam à atenção, quando as coisas não correm bem, geralmente tenho dois momentos: um, imediato, motivado pela vergonha, em que barafusto; outro, posterior, na solidão, motivado pela culpa, em que me pergunto o que fiz e não deveria ter feito ou não fiz e deveria ter feito. E chego, invariavelmente, à conclusão que estive - estou sempre - aquém do que deveria ser e que, invariavelmente, a culpa é minha. E nada nem ninguém é capaz de aliviar essa dor.

Amar muito é um bom motivo - talvez o único bom motivo - para errar muito. Amar muito e muito intensamente é correr muitos riscos, é ser como Pedro e viver com o coração perto da boca, é ser intempestivo e voluntarioso, irracional e, mais uma vez como Pedro, viver com a indelevelmente permanente sensação que apenas se é digno de se ser amado se fizermos grandes gestos, se proferirmos grandes proclamações, se formos maiores do que alguma vez fomos ou sentimos ser. É darmos passos maiores que a perna. É ouvirmos: Zé... tem juízo, hoje mesmo negar-me-ás três vezes... É sentir, todos os dias, esta necessidade de pedir perdão por existir. 

Por isso, quando, em Taizé, percebi que haveria a possibilidade de esta necessidade de perdão advir desta necessidade de amar e ser amado, a minha culpa ganhou um outro sentido. Um sentido que não permanece, que passa rápido, que facilmente se remete para o esquecimento. Mas que, como hoje, pode ser recordado. E sempre que o é, torna um dia qualquer, num dia bom.

Bom dia :-)

20240916

Hoje temos consulta. De novo. Juntos. Mais um dia de conversas, algumas sobre coisas mais ou menos importantes, a maioria sobre coisa nenhuma. O meu pai é mestre na conversa sobre coisa nenhuma. É normal. Sente o silêncio como incómodo. Vai daí, enche-o como se enchia uma almofada com sumaúma e ficava uma coisa meio disforme, cheia de grumos, onde a custo se repousava a cabeça. São mais ou menos assim, as nossas conversas. Nunca senti que nelas - ou nele - tivesse o suporte tantas vezes por mim precisado para pousar a cabeça. Mas tem sido bom. Muito bom. Mais uma vez, sou para o meu pai o que sempre fui: cuidador. O seu cuidador. Gosto de acreditar que, em determinada altura, ele se tenha preocupado em ser o meu. Não dei por isso. Sempre dei conta do contrário, desta inversão de papéis. Não apenas com ele, mas também com a minha mãe, os meus irmãos... Houve uma altura em que lidei mal com isso. Agora, à medida que vou ficando velho, vou lidando melhor. E hoje, é mais um passo nessa vontade de melhorar. Vamos juntos à consulta. Vamos conversar. E, com sorte, alguma coisa há de ser dita de significativa. Se não o for, não tem importância. Estaremos juntos. A conversar. Juntos. A construir memórias. 

20240912

"el milagro se trata de “personas pequeñas, en lugares pequeños, haciendo cosas pequeñas” a favor de los crucificados" 

https://www.religiondigital.org/cree_en_la_universidad/Dios-entienden-XXIV-Domingo-Ordinario_7_2705799408.html

Creio no Deus da pequenez. Creio no Deus que me troca as voltas e à minha insaciável, ocultada mas constante sede de protagonismo alicerçada num auto-imposto amor próprio que muitas vezes me conduz à tentação dos bicos de pés. Creio no Deus que me acontece por entre as batalhas do orgulho e me acorda chamando pelo meu nome. Creio no Deus que me chega de fora, nos outros e pelos outros, tantas vezes por palavras que magoam mas me recolocam no Seu caminho. Creio do Deus do sussurro, do inaudível, do inaudito, do pressentido, do intuído, que escolhe não prescindir de mim, da minha vontade, do meu desejo de acordar para poder ser.

Conversávamos o final do Caminho, como o fizemos em Taizé, no CoMTigo, nos corredores do colégio. Há já muito tempo que somos mais que os papéis que assumimos, há já muito tempo que somos mais que professor e aluno, há já muito tempo que partilhamos dúvidas e medos que descobrimos comuns, embora desfasados no tempo. Sempre que conversamos fico espantado com o que lê de mim: nas minhas quedas as suas quedas, nos meus medos os seus medos, nas minhas ressurreições a esperança das sua ressurreição. É a procura que nos une, a insaciedade interior que nos atormenta e nos impulsiona, mas sobretudo esta nefasta e omnipresente necessidade e dificuldade em nos sentirmos gostados. que nos torna inseguros, carentes, sedentos de atenção. E são sempre mutuamente importantes as nossas conversas.

Nunca entendi bem o "E quem dizeis vós que Eu Sou" de Jesus. Entendo-o em mim - falamos justamente nisso, na nossa conversa - mas não em quem é cheio de certezas. Mas depois penso que, calhando bem, talvez Jesus não fosse assim tão cheio de certezas. Talvez andasse à procura. Talvez tateasse a vida, talvez intuísse o Pai, talvez estivesse necessitado do Seu Amor. Talvez fosse mais como eu e menos como o deus que todos pensava que era. E sinto-me ainda mais próximo dele.

20240911

Faz parte

Não lido mal com a dor. Alias, há muitos anos, acordo com dor, vivo com dor e adormeço com dor. De cabeça. Da que mói porque está sempre presente. Mas eu remeto-a para canto. E normalmente faço-o bem. Esqueço-me dela. Quando me convidaram para fazer mais um Caminho de Santiago, sabia que teria a dor por companhia. O Rumos, no princípio deste ano, acentuou mazelas e eu sabia que o Caminho, sendo muito mais violento, as deixaria mais profundas. E eu lidei com elas. Logo a partir dos primeiros kms do segundo dia as articulações deram de si, como eu previa. No final desse dia seguia o método de São Francisco e chamava amiga à dor. Ontem tinha o tornozelo como uma batata e fui ao médico. Ele perguntou-me porque raio andava assim há tanto tempo e, sobretudo, porque tinha feito assim o Caminho. Respondi "faz parte", como digo para mim próprio sempre que tenho que lidar com o lado B das coisas. Faz parte. A minha dificuldade não é propriamente a dor. Quando a conheço, quando a antecipo. puxo-a para mim, é minha amiga, faz parte do que sou. Não a procuro, mas acolho-a, como acontece com as coisas menos boas que me acontecem na vida. Faz parte. Nada é só bom. Nada é só mau. E recordo sempre Job, o primeiro livro que, era muito miúdo, li na Bíblia e me levou a querer estudar e aprofundar a Palavra. A minha dificuldade é com a dor inesperada. Quando ela vem sem contar e me apanha distraído, impreparado, mergulhado numa outra realidade onde ela não é suposto entrar. Essa é a dor que me abana. Sempre. Que tento, em vão, perceber. Que tento, em vão incorporar. Que tento, em vão chamar amiga mas que tudo em mim se recusa a fazê-lo. Mas esta é também uma dor que faz parte. Ou que tento que faça parte. Por vezes, infrutiferamente - o que deixa marcas irreparáveis (tenho algumas) - por vezes, racionalmente - engavetando-as, suspendendo-as, deixando para quando estiver minimamente preparado para lidar com elas. Voltar ao Caminho recordou-me que as dores maiores nunca são físicas. Voltar do caminho recordou-me que as dores da alma, as dores da ausência, as dores da saudade são as que pedem uma gaveta à sua medida. Venha ela. Tenho tantas!

20240806

"We tell our stories because all of us have survived something, because stories are signposts from the past that give us clues about the future."

https://cac.org/daily-meditations/listening-to-the-stories/

Para mim, no silêncio e na solidão, não há história mais importante e decisiva que a da minha vida. Nem mais intransmissível. Provavelmente porque nem a leitura que faço do meu passado é definitiva. Aliás, é tudo menos definitiva. É feita sobretudo de perceções sobre acontecimentos, relevando uns e desvalorizando outros mediante a dor ou a alegria que provocaram, assim mesmo, nesta ordem. Mas é também feita das leituras sucessivas que vou fazendo à medida que vou vivendo, que vou envelhecendo, que me vou apropriando dos ensinamentos que a vida me vai proporcionando e me permitem deitar olhares sobre o meu passado, iluminando-os de maneira diferente. Sim, há alguns factos, alguns acontecimentos que vejo clara e distintamente e outros que estão permanentemente envoltos naquela névoa que apenas permite o vislumbramento dos vultos. E estes são os decisivos, os marcantes, os que me visitam o sono e dominam o sonho, recorrentemente. Estes são aqueles cuja explicação eu procuro, em vão, acabando a gaguejar ainda mais que o costume quando os tento transformar em palavras, em algo que possa ser minimamente inteligível para mim e transmissível para os outros. Estes são aqueles que, invariavelmente, acabo por calar pela falta de racionalidade e excesso de sentido. Estes são aqueles que permanecem, constantemente sucessivamente, inapelavelmente, cuja clareza eu procuro.

20240802

202408021125

Gosto dos Jogos Olímpicos. Desde miúdo que me fascinava a capacidade destes super homens e mulheres capazes de desafiar os limites com uma facilidade que me espantava sempre. Nem que eu vivesse cinco vidas conseguiria metade do que eles conseguem. Este ano tenho estado atento não tanto às suas batalhas físicas, mas às outras. Para além das alegrias, existem as dores. Para lá dos ganhos, as tremendas perdas. Por trás dos sorrisos, lágrimas e superações e renúncias para mim inimagináveis. Por isso, tenho um tremendo respeito por todos os atletas, quer tenham medalhas ou não, quer tenham chegado aos Jogos ou não. Refastelado no meu sofá, que mais posso fazer a não ser agradecer por nos representarem? Mas não é só a eles: são inúmeras as associações, os clubes de bairro que, graças à carolice de muitos, proporcionam as condições mínimas para que se possa competir. Eu também andei com os meus filhos pelo futebol, andebol e equitação e também eu gastei fins de semana e combustível para levar uns e outros às competições. E sempre fui grato aos dirigentes que se dedicavam de alma e corações à organização dos desportos dos meus filhos. Infelizmente, não é graças ao desporto escolar que eles chegam aos patamares competitivos, até porque imensas escolas carecem de equipamentos. E enquanto isso não acontecer verdadeiramente, enquanto o desporto não for assumido pelas políticas de ensino como uma disciplina fundamental para a saúde e educação dos nossos filhos - e netos - é mesmo de super homens e super mulheres que se trata. 

202408021009

 
 
Tenho lido, não sem algum espanto, a revolta de alguns católicos sobre o acontecimento espelhado por esta imagem. e tenho dificuldade em entender. Também tenho lido a fúria da cultura do cancelamento sobre as obras de Marko Rupnik por causa dos abusos de que é acusado. Parece-me que na base está o mesmo fenómeno: o endeusamento da arte, esquecendo que os artistas são pessoas quase sempre desafiadoras do seu tempo, mas são pessoas. 
Sempre que estou no Vaticano lembro-me de uma conversa com um aluno. Tínhamos estado juntos, nesse ano, em Taizé e, cá fora, disse-me "isto é belíssimo, mas é um museu. Igreja, para mim, é muito mais Taizé". Não podia concordar mais com ele. Arte é arte. É enorme, é tremenda, arrepia-nos o âmago, questiona-nos e aos nossos fundamentos, irrompe o comum, o quotidiano, transporta-nos muitas vezes para outro patamar. Mas é arte. Lembro-me dos imensos debates a propósito do Código Da Vinci, como se Dan Brown fosse um novo Moisés e não um artista que escreveu um livro. Mais, como se a última ceia de Da Vinci encerrasse em si uma verdade divina e não fosse um mero belíssimo quadro. 
Eu gosto muito de arte. Gosto imenso quando vou ao CCB e o guia me ajuda a ver o que, sem ele, me passaria completamente ao lado. Todos os dias me deixo espantar pela fotografia, pela música, pela literatura, pela escultura, e por tantas outras formas de arte, como o riso ou a arquitetura. Todos os dias me espanto pela enorme capacidade - pelo tremendo dom - que alguns têm e arriscam revelar aos outros, sujeitando-se às críticas, muitas vezes impiedosas, que incidem sobre algo que lhes saiu das entranhas. Mas não os endeuso. Nem aos artistas nem às suas obras. Não acredito que sejam particularmente abençoados por Deus, porque acredito que todos somos abençoados por Deus. Acredito que algumas das suas obras me educam o olhar sobre a realidade e, nessa medida, me aproximam de Deus, mas outras nada fazem para isso. Nem têm que fazer. 
Claro que também eu fico momentaneamente zangado ou chateado quando vejo referirem-se a algo que me é querido de forma abusiva ou enganadora. Claro que também eu insulto baixinho os que usam as minhas referências de vida para chocar e assim venderem mais. Claro que tenho direito à indignação. Mas não confundo isso com a profanação de Deus. Essa, da última vez que me envergonhou verdadeiramente, veio de dentro. E não foi cometida sobre obras de arte. Foi contra pessoas, as únicas imagens de Deus que o são de verdade. 
Só para colocar as coisas em perspetiva.

20240712

202407121542

 

Este desconforto de não pertença é-me frequente. Normalmente é acompanhado de uma outra sensação, mais corrosiva, de não dignidade, de pequenez. A maior parte das vezes não me acho suficientemente digno ou importante para estar onde estou, com quem estou, e por isso remeto-me a um canto. Em algumas dessas vezes vêm ter comigo e conversam e interrompem a minha confortável letargia. Por vezes gosto quando isso acontece. Às vezes é apenas desconfortável.

Aprendi que a melhor solução é correr para enfrentar a besta e tomar as rédeas dos acontecimentos. Por isso é também frequente ver-me no meio de muita gente - normalmente malta nova - de guitarra na mão a animar cantorias e danças. Esse ato de enfrentar e assumir o comando é-me absolutamente contranatura. Fi-lo a primeira vez há uma vintena de anos - já adulto, portanto - perante uma centena de jovens que não me conhecia e não sabia que eu gaguejo. Fi-lo porque ou o fazia ou me encolhia e me remetia ao silêncio, e não estava lá para isso. Despoletei a gargalhada geral nos primeiros 5 minutos contando piadas de gagos - com eles a pensarem que imito bem os gagos - para depois, quando já tinham rido tudo, perceberem que afinal não estava a imitar ninguém quando gaguejo. Depois foi só continuar.

Mas isso é trabalho. É autoimposto. Porque mal acabo, mal saio de cena, remeto-me a mim e ao meu recolhimento, ao meu sossego, ao meu pequeno mas imprescindível mundo particular, a minha Magic Land feita de sonhos e memórias de futuro. E aí, aí sim, sinto-me perfeitamente confortável.

20240628

202406281814

"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas nossas comunidades», afirma bispo"

https://agencia.ecclesia.pt/portal/guarda-temos-menos-sacerdotes-e-por-isso-precisamos-de-valorizar-cada-vez-mais-os-diferentes-ministerios-e-servicos-laicais-nas-nossas-comunidades-afirma-bispo/

Não entendo. Ou faço por não entender. Os leigos não são um mal menor. Nós não somos tapa furos ou remendos que, à falta de melhor, têm que funcionar. Nós, leigos, não somos chamados à Missão - onde quer que ela tenha lugar - apenas porque há poucos padres. Não é nada disso. Nós somos chamados à Missão porque somos batizados. E este nós é mesmo todos nós, homens e mulheres, consagrados ou leigos, mais novos ou mais velhos, mais à procura ou mais encontrados, mas com esta sede e fome comum que apenas pode ser saciada no encontro profundo com Deus e com os outros.

Quando irá a nossa Igreja levar isto a sério?

20240618

Para O Poço

 

“Depois de terem entoado os hinos, saíram para o Monte das Oliveiras. Disse-lhes Jesus: «Todos caireis em escândalo, porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. Mas, depois de Eu ter ressuscitado, irei à vossa frente para a Galileia». Pedro disse-lhe: «Ainda que todos caiam em escândalo, eu não». Disse-lhe Jesus: «Amen te digo: Tu, hoje, esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás». Mas ele dizia com grande insistência: «Ainda que seja necessário eu morrer contigo, jamais te negarei». E todos diziam o mesmo.” Mc 14, 26-31

 

“Entretanto, estando Pedro em baixo, no pátio, veio uma das jovens servas do sumo-sacerdote e, ao ver Pedro a aquecer-se, fixou nele o olhar e disse-lhe: «Também tu estavas com o Nazareno, com Jesus». Mas ele negou, dizendo: «Não sei, nem entendo o que tu dizes». Foi, então, para fora, para o pátio anterior, e um galo cantou. A jovem serva, ao vê-lo, começou de novo a dizer aos que estavam ali perto: «Este é um deles!». Mas ele de novo negou. Pouco depois, os que estavam ali perto diziam de novo a Pedro: «É verdade que és um deles, pois também és galileu!». Mas ele começou a dizer anátemas e a jurar: «Não conheço esse homem de quem falais». E imediatamente, pela segunda vez, um galo cantou. Pedro lembrou-se, então, daquilo que Jesus lhe dissera: «Antes que um galo cante duas vezes, três vezes me negarás». E irrompeu num pranto.” Mc 14, 66-72

Todos conhecemos bem estas passagens descritas pelos 4 evangelistas: Pedro, que jurara fidelidade até á morte a Jesus, acaba por o negar três vezes, cheio de medo de que lhe fizessem o mesmo que ao Mestre.

Não há assim tantas passagens comuns aos sinópticos e a João, e o facto de este relato ser comum aos quatro evangelistas confere-lhe um atestado de autenticidade, que é reforçado pelo facto de Pedro não sair particularmente bem visto neste relato. Na realidade, é preciso uma humildade muito fora do comum para que alguém se permita ficar na história como aquele que, por cobardia, negou o seu Mestre, o seu Líder, o seu Amigo. Se assim o desejasse, Pedro, como responsável pela Igreja emergente, teria poder suficiente para refazer a história, para argumentar, para dizer “não foi bem assim”, e reescrever para si um outro papel, mais heroico, mais consentâneo com aquele que desejamos todos, uma forma – verdadeira ou não – de ficar bem visto na fotografia. E estes relatos teriam desaparecido. Mas Pedro não o quis.

Uma das coisas que as passagens acima revelam é que Jesus conhece bem quem tem diante de si. Jesus conhecia os corações daqueles que Ele escolhera, sabia das suas virtudes e limitações – não os mandara à cidade arranjar mantimentos para que não perturbassem a conversa com a Samaritana? – sabia da sua generosidade, das suas dúvidas, sabia que não entendiam muitas coisas nem estariam preparados para o que viria a acontecer. E sabia muito bem que Pedro, aquele espalha brasas, por vezes colérico, por vezes temeroso, tinha uma ideia errada de si mesmo: acreditava que podia tudo, que conseguiria fazer e desfazer mundos e fundos à custa da sua coragem, da sua têmpera, de si próprio. Pedro, como se diz agora, vivia cheio de si.

Tenho o pranto de Pedro, depois de negar Jesus, como o momento da sua verdadeira conversão. Na verdade, não me é muito difícil perceber o que lhe passaria pela cabeça naquela altura: a profunda vergonha sentida pela negação do Mestre apenas confirma e reafirma a vergonha de si próprio quando, desnudado pelos acontecimentos, se confronta consigo mesmo. Naquela altura, esse abrir de olhos é extremamente doloroso e devastador: “eu não valho nada, eu não sou digno de ser amado”. É a Paixão de Pedro, o momento em que mergulha na dor profunda, indizível e solitária de quem se sente completamente perdido. No entanto, tal como acontece connosco, é esse bater no fundo que lhe permite libertar-se de si próprio, é a sua Pessach, a sua passagem, a sua libertação, o mergulho nas águas da fé que lhe permitem nascer de novo, esvaziado de si para poder ficar cheio de Amor.

Pedro, no entanto, perde a imagem de si, mas não perde a esperança, que se começa a revestir de fé. Por isso internamente espera, e corre ao primeiro sinal que as mulheres lhe trazem, e acredita, de uma maneira nova, que algo de maravilhoso está para acontecer. Por isso Pedro reconhece Jesus na margem do Tiberíades e, sem poder esperar, se lança ao mar para ir ao Seu encontro. O diálogo que se segue é maravilhoso, é a ressurreição de Pedro:

“Depois de terem comido, disse Jesus a Simão Pedro: «Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?». Disse-lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». Disse-lhe Ele: «Apascenta os meus cordeiros». Disse-lhe de novo, pela segunda vez: «Simão, filho de João, amas-me?». Disse-lhe: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». Disse-lhe Jesus: «Pastoreia as minhas ovelhas». Disse-lhe pela terceira vez: «Simão, filho de João, és meu amigo?». Pedro entristeceu-se por Jesus lhe ter dito pela terceira vez: «És meu amigo?» e disse-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que sou teu amigo!». Disse-lhe Jesus: «Apascenta as minhas ovelhas. Amen, amen te digo: quando eras mais novo, a ti mesmo te vestias e andavas por onde querias; mas, quando envelheceres, estenderás as tuas mãos e outro te vestirá e levará para onde não queres». E, tendo dito isto, disse-lhe: «Segue-me».” (Jo, 21, 15-19)

Podemos, com facilidade, perceber a diferença que ecoa na voz de Pedro: o voluntarismo irrefletido deu agora lugar ao comedimento, à simplicidade, à humildade tão profunda que Pedro é incapaz de dizer a Jesus, àquele que sabe tudo, que o conhece intimamente, que O ama. É justamente esse despojamento de Pedro, anteriormente tão familiar a Jesus quanto desconhecido do próprio, que tem como consequência o mandamento de Jesus: “apascenta as minhas ovelhas”. Um despojamento que fará de Pedro o servidor que será levado para onde não quer até ao momento em que, envelhecido, será vestido por outro, um dos paradigmas atuais da fragilidade.

Gosto muito de São Pedro. Gosto do seu voluntarismo, do seu coração, da força que emana das suas palavras e da sua capacidade de entrega. Sempre me inquietou o facto de Jesus ter confiado a Igreja a Pedro e não a João. As passagens bíblicas que estão neste texto ajudaram-me a tentar perceber o motivo: a Pessach de Pedro, a sua passagem, a sua Páscoa é a nossa Páscoa. Pedro persistia em apresentar-se diante de Jesus ainda coberto das suas convicções, porventura tentando esconder-se de si próprio, evidenciando a sua imagem, esquecendo que Ele conhece o nosso íntimo e que nos ama assim mesmo, exatamente como somos. Pedro, no fundo, não confiava no Amor radical do Pai, tal como nós não confiamos. Enquanto formos cheios de nós, enquanto confiarmos nos nossos recursos, nas nossas capacidades, enquanto não nos esvaziarmos de nós próprios, dessa imagem egocentrista que, hoje, é tão socialmente cultivada, não daremos lugar a Jesus. Estou convencido que este é um dos motivos por que somos cada vez menos na Igreja: ainda estamos na fase da negação.

20240617

202406171346

Ter muito que fazer para ontem afasta-me do essencial. Transforma-me em mera ferramenta, em agenda, num qualquer mecanismo que tem uma tarefa a cumprir, e a seguir outra, e outra... Sei bem que são coisas que fazem parte do que faço - e um pouco de quem sou - e que é muito por causa delas que no final do mês tenho dinheiro na conta bancária. E não me queixo. Longe disso. Porque estas coisas, em mim, no meu trabalho, não são assim tão frequentemente assoberbantes. Normalmente, como acordo muito cedo, tenho tempo para desfrutar das minhas caminhadas, das minhas orações, dos meus pensamentos devidamente acompanhados pela minha música. E isso proporciona-me equilíbrio e, sobretudo, sorrisos interiores. Quando isso me falta, falta-me imensa coisa. Inclusivamente, não acho nada que faça melhor o que tenho que fazer, fico menos produtivo e, sobretudo, menos imaginativo, o que é fundamental para muito do que faço. É só perdas. Menos no tic da agenda. Essa fica feita. Next.

20240614

202406141809

 

Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em consideração a sua individualidade mas a nossa preguiça. 

Eu tenho a sorte de trabalhar com pessoas oriundas de muitos estratos sociais e por isso sei que as catalogações podem ser boas para objetos mas não servem para as pessoas. 

Hoje, os meus miúdos do RAIZ tiveram prova. E uma delas veio ter comigo e, com um sorriso do tamanho do mundo, partilhou comigo um papel escrito pela mãe, o que está acima deste texto. Não é por acaso que é uma menina feliz, equilibrada, com os valores certos no lugar certo: é amada e sabe que é amada. E como isso é importante!

Não gosto de catalogações. Gosto de pessoas, de olhos, de sorrisos e lágrimas, mas de pessoas, autênticas, concretas, diante de mim. Claro que volta e meia também catalogo - não sou mais nem menos que ninguém - mas a vida cedo se encarrega de me acordar à lambada. Como hoje. E fico mesmo feliz com isso. Pela mãe, pela filha, e pela certeza que o amor acontece quaisquer que sejam as circunstâncias. 

Hoje ganhei o dia :-)

20240613

202406131008

Ao passar de um corredor a outro, ouvi vozes de crianças a cantar na portaria. Dirigi-me para lá e parei a escutá-los. Era um dos nossos coros de crianças. Abençoado lugar de trabalho onde podemos nos deparar com o belo ao virar da esquina. Particularmente numa altura em que estamos todos mergulhados nos papéis e a maioria dos professores no stress das correções, avaliações e reuniões finais. São momentos muito difíceis para os professores, que acompanham os alunos durante vários anos, os conhecem bem e às suas circunstâncias, e têm que os avaliar com justiça. Não é um equilíbrio fácil, rouba sono à noite, e causa um desgaste suplementar numa altura em que o cansaço é palavra de ordem. Também por isso, escutar um coro de crianças tem este efeito de nos recordar que a vida é muito mais que a batalha que travamos em cima da secretária. E trabalhar num lugar que, a cada momento, nos permite recordar o lado Belo da vida, é um verdadeiro privilégio.

20240612

202406121832

Acabo de ler que o Fernando Santos, com 69 anos, vai treinar o Azerbaijão. E dou comigo a pensar: o que pode levar alguém que, calculo eu, não precisa de dinheiro, a escolher ir para o Azerbaijão trabalhar e não ficar em casa com as pantufas calçadas? Só pode ser por paixão, claro. Muita paixão. Eu tenho dificuldade em entender esse nível de paixão pelo trabalho. E eu adoro o que faço, note-se. Mas é, ainda assim, trabalho. Calculo que, uma vez reformado, até nem faça coisas muito diferentes das que faço agora. Mas fá-las-ei por puro gozo, quando quiser, como quiser e com quem quiser. Espero - anseio - ter zero chatices, zero compromissos daqueles que nos obrigam a  dar o que temos e o que não temos e, finalmente, poder ter descanso: acordar quando me apetecer, deitar quando quiser, ler e ler e caminhar e ler. Assim Deus me ajude.

20240605

202406051616

Tenho destes dias, em que o profano me diz mais que o sagrado. Normalmente são dias em que, ou acordo zangado ou alguma coisa me põe zangado logo depois de acordar. São dias de pavio curto. em que não tenho grande pachorra para rodriguinhos e me apetece ir direito ao assunto. São dias de dessintonia, de algum desencanto, de copo mais vazio que cheio, o que não é muito comum em mim. Por isso, nestas alturas a minha oração é tudo menos natural, é arrancada, é consciente, é conscientemente forçada, como se tivesse que cumprir calendário. E é, por isso mesmo, invariavelmente péssima, feita de palavras e não de vida.

 

20240604

202406040816

O "faça-se em mim" de Maria está ligado ao "faça-se" de Deus no início da Criação. E está ligado ao contínuo fazer de Deus em mim próprio. Este é um contínuo, uma realidade, que apenas eu posso impedir que aconteça. Como? Não dando tempo para o silêncio, não parando, vivendo na sofreguidão dos acontecimentos e não na serenidade da escuta. Escutar-me liga-me ao transcendente que me habita; escutar o outro é, por isso, mais que escutar a sua humanidade: é permitir o mútuo encontro na transcendentalidade que nos une.

20240603

202406031612

Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lícito matar seja quem for para que a minha vida possa ser, eventualmente, melhor. Já tive horas de discussões acesas olhos nos olhos e online a propósito deste tema. Já não tenho. Porque este tema não é passível de discussão. Assim, quando alguém quer conversar comigo acerca disto, eu pergunto: quando acreditas que começa a vida? Porque este é, ainda, um ponto passível de discussão. Não conheço prova científica do início da vida, conheço aquilo em que acredito: que Deus tem um nome e um sonho para cada um de nós. Mas isso é aquilo em que eu acredito, também por causa da fé. E ninguém é forçado a acreditar naquilo em que acredito. Por isso, não há discussão neste ponto. Há crenças. E as crenças podem ser conversadas, partilhadas, não devem ser dirimidas. Aquilo em que acredito pode e deve ser partilhado com outros. Mas assim como não permito a ninguém que me impeça de acreditar, não me passa pela cabeça fazê-lo a quem acredita em algo diferente.

Agora vamos à segunda parte: sou contra a penalização contra o aborto. Aos motivos acima apresentados, adiciono outro: acredito que, para muitas mães, é uma dor imensa verem-se na inevitabilidade do aborto. Acredito que isso seja assim mesmo para aquelas que aparentemente se referem à IVG com laivos de leviandade. Muitas vezes defendemo-nos da dor encobrindo-a de nós próprios, subterrando-a sob os mais variadíssimos argumentos. E a última coisa que quero - e a que tenho direito - é de acusar uma mulher que, muitas vezes em circunstâncias que estou longe de imaginar, se vê perante uma inevitabilidade da escolha da dor que menos dói.

Posto isto, é para mim muito claro que o aborto não pode ser um direito fundamental. Não se pode considerar a morte de alguém um direito fundamental. Ponto

20240531

Não há momento, na minha vida religiosa, que necessite tanto do meu salto de fé como a eucaristia. Eu acredito na Eucaristia. Eu necessito da eucaristia. Muito. Acredito em Jesus à volta da mesa, acredito na partilha, acredito na comunhão, acredito na comunidade, acredito no companheirismo, acredito no reconhecimento, acredito do Cristo que nos habita, acredito que o Espírito Santo está efetivamente entre nós...

Mas já tenho muita dificuldade em acreditar quando me dizem: ajoelhai-vos, está a passar o rei do universo, tenho muita dificuldade em acreditar que o sacerdote não possa tocar no ostensório quando, momentos antes, na consagração, tocou no Corpo, tenho muita dificuldade em acreditar nas procissões, no pálio, em toda aquela ostentação que nos pede para olharmos para o chão e vez de olharmos uns para os outros. Quando testemunho tudo aquilo penso logo no Deus do Antigo Testamento, que nos exige submissão e não nos oferece amor. Imagino Jesus a descer o Monte Sinai e a ver-nos, embasbacado e magoado, a continuar a adorar com símbolos um Deus que Ele nos disse que é Pai. 

Ontem participei na eucaristia, não participei na procissão. Sinto-me sempre mal, muito pouco genuíno, quando percebo que também eu faço parte de todo aquele aparato, do qual não acredito, com o qual não concordo e que nada tem a ver com a minha fé em Jesus. Esta não é a Igreja a que pertenço. 

Eu sou do pequeno. Do simples. Do quotidiano. Do comum. Do olhos nos olhos. O aparato é coisa dos homens, de quem precisa do "de cima para baixo", de quem se acha herdeiro do "de cima para baixo", de quem se acha gestor do "de cima para baixo". E estes, claro está, nunca estão em baixo. Eu prefiro o de dentro para fora. Eu prefiro Jesus à Igreja. E esta distinção deixa-me, invariavelmente, muito triste.

20240529

202405291642


Isto esteve colado a semana toda na porta da sala dos professores. Ironia nas ironias. Logo na sala dos professores. Logo nesta altura de testes e notas e reuniões em cima de reuniões, de avaliações, de tensões. Não é fácil ser professor aqui. Menos que tudo é pouco. Menos que tudo e sentimo-nos pouco. Mesmo que já não haja dedos apontados, mas a exigência de nós para nós próprios é implacável. Não acontece com todos. Nunca acontece com todos. Mas acontece com alguns. A maioria, eu diria. Os que vestem a camisola e encontram algum tipo de compensação. Seja no sentido do que se faz, seja na camaradagem, seja no brio profissional, seja porque o outro também faz e o seu exemplo impele-me a fazer. Antes assim. Eu teria dificuldade em viver de outra maneira. E sei do que falo: fi-lo anos a fio, noutros lugares, e estava longe, muito longe de ser tão feliz como sou, aqui, (quase) todos os dias.  

 

202405290756

“Já há demasiadas bichas”. Esta foi a declaração que percorreu o mundo e porquê? Porque foi proferida pelo Papa Francisco. A informação foi avançada pela imprensa italiana e dava conta de que o Papa usou o termo italiano “frociaggine”, uma espécie de calão que em português se aproxima de algo semelhante a "bichas" ou “maricas", proferida no passado dia 20 durante um encontro à porta fechada com bispos italianos.

O Vaticano já reagiu e pediu desculpa pelas declarações do Papa Francisco. Em comunicado emitido esta terça-feira, e divulgado pela agência italiana ANSA, lê-se que "o Papa nunca teve a intenção de ofender ou de se exprimir em termos homofóbicos, e pede desculpa a quem se sentiu ofendido pelo uso de um termo referido por outros.”.

 “Como ele afirmou em várias ocasiões, 'Na Igreja há lugar para todos, para todos! Ninguém é inútil, ninguém é supérfluo, há lugar para todos. Tal como nós somos, todos nós”, pode ler-se no comunicado.

 

https://sicnoticias.pt/mundo/2024-05-28-vaticano-pede-desculpa-apos-declaracao-polemica-do-papa-sobre-homossexuais-a31a9237

 

Os lapsus linguae são tramados. Porque, mais cedo ou mais tarde, tramam todos os que dizem coisas sem convicção, na casca, no politicamente correto, e que não está em sintonia com aquilo em que se acredita. O jargão popular diz-nos que se apanha mais rapidamente um mentiroso que um coxo, e isto é bem verdade. Na semana passada foi o presidente do Sporting que, falando supostamente em off, disse que não pretendia apenas vencer, mas esmagar o FCP. Agora o Papa, com a questão dos "maricas". Um e outro estavam à vontade, em off, e permitiram-se dizer aquilo que realmente pensam. Nada que não aconteça comigo. Também eu, por vezes, sou grosseiro, sobretudo junto daqueles que me são mais íntimos e com quem me sinto particularmente à vontade. Sou, o que se diz, um desbocado: nas condições certas, as coisas saem pela boca sem passar pela cabeça. Por isso normalmente tenho tanto cuidado comigo, por causa do cheiro a bairro que me está entranhado. E isto é um problema. Ou pode ser. Poderia ser até bom se o que digo nessas circunstâncias correspondesse ao que efetivamente penso. Mas corresponde mais ao que sinto naquele momento que ao que penso. E o que sinto é quase sempre brincadeira, é o à vontadinha, o clima de laracha, o despertar do riso e da alegria partindo do princípio que, como estou entre os meus, todos me conhecem o suficiente para conseguirem destrinçar o que digo a sério do que digo a brincar. Não me aprece que tenha sido esse o caso do Papa Francisco. Parece-me que ele, provavelmente, estaria mais cansado, mais à vontade e, sobretudo, com menos filtros. E disse exatamente o que pensa. Há um lado, no padre Francisco homem, que acredito seja instintivo e contraria o institucional Papa Francisco fofinho: sobretudo quando fala das mulheres e dos homossexuais tem muita dificuldade em conciliar o seu "Todos, todos, todos" - que, acredito, é o que vai ficar para a história e se vai tornando uma armadilha fatal para ele próprio - com, efetivamente, todos. Quanto se lhe é colocada esta questão ele dá voltas e mais voltas sem responder claramente e eu lembro-me sempre da nova ordem da Quinta dos Animais, do Orwell: "todos os animais são iguais... mas uns são mais iguais que outros". A verdade é que temos, todos, todos todos, ainda muito para caminhar.

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O meu amigo frequenta uma igreja de imigrantes caribenhos no centro de Los Angeles. Um dia, o seu pastor pregou: 

Imaginem que estão a passear na baixa de Los Angeles, ou em Chicago, ou em Nova Iorque. Um homem nu corre à vossa frente no passeio, gritando e praguejando. O que é que fazem? A maior parte de nós, claro, atravessa a rua rapidamente. O tipo não está bem, pensamos nós. 
Mas imagine que vive numa pequena cidade com cerca de cinquenta casas. Um dia, está a passear quando um homem nu passa à sua frente no passeio, a gritar e a praguejar. E como vives numa cidade pequena, conheces esse homem... é o Henrique. Na semana passada, por acaso sabes, houve uma tragédia terrível e o fogo queimou a casa do Henrique, deixando-o sem nada. O que é que tu fazes?  “Henrique”, dizes tu, “vem comigo, amigo. Precisas de uma refeição quente e de um lugar seguro para ficar”.  

O que é preciso para mudar a nossa consciência colectiva de estranho que não está bem para Henry, o meu vizinho, criado à imagem de Deus? 

O desafio é imaginar uma realidade fundamentalmente diferente: um mundo em que reconhecemos e lutamos pela dignidade uns dos outros. Um mundo em que ... treinamos os nossos corações para ver até mesmo as pessoas que os outros podem tornar invisíveis. Um mundo em que reconhecemos que nós - imagens do Divino - estamos todos ligados uns aos outros pelos laços da vida. E o nosso trabalho mais difícil e mais sagrado é não desviar o olhar.

https://cac.org/daily-meditations/knowing-our-neighbors/

Este é sem dúvida, um dos meus desafios maiores: não desviar o olhar. Ainda vivo muito de acordo com a lógica dos meus e dos outros. No fundo, no fundo, acredito que a radicalidade do serviço ao outro exige total dedicação, exige libertação total das amarras a que nos prendemos, das responsabilidades outras que assumimos em função das escolhas que fazemos. Quando penso nesta radicalidade penso sempre na Madre Teresa de Calcutá. Menos que isso já é compromisso, já é distração, já é outra coisa. A dedicação total pelo outro exige uma liberdade que eu não tenho. Porque tenho mulher e filhos e reuniões e encontros e compromissos e fiz escolhas diferentes. Por isso as pessoas consagradas são tão importantes, tão decisivas, na vida da Igreja. De que outra forma se pode ser radicalmente do outro que não se conhece? Mas, ainda assim, mesmo nas minhas circunstâncias, mesmo nos meus compromissos, quem me dera sair vencedor de mim mesmo e permitir-me olhar!

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Ando fora da linha. Sinto-me um desalinhado. Em quase tudo.  

Não sou pessoa de redes sociais - só mantenho o twitter, o resto eliminei há pouco tempo – mas sempre fui de blogues e podcasts. Talvez porque ambos privilegiem a palavra e não o fugaz. Quem escreve ou quem fala tem a possibilidade – quando não a obrigatoriedade – de explanar o que pensa, o que diz e porque o diz. Isto tem-me permitido ir conhecendo as opiniões dos políticos, dos jornalistas, dos comentadores, ou mesmo dos anónimos como eu – alguns que sigo e com quem troco impressões há anos - o que me fornece ferramentas para que eu próprio possa enriquecer o meu pensamento. Claro que aqui e ali vou sendo influenciado pelo que leio e oiço - se assim não fosse, estaria apenas a perder tempo – mas ultimamente sinto-me cada vez mais a solo, sobretudo face à irrazoabilidade que vai sendo  cada vez mais comum. Seja na Igreja, seja na política, seja no futebol, seja em qualquer outra dimensão mais ou menos pública, parece que a palavra da ordem é a desordem, o insulto fácil, o extremar das posições, onde a ponderação é vista como sinal de fraqueza. Eu conheço, intuitivamente, este modo entrincheirado de viver a vida, é-me muito natural o instinto de diabolização do outro – permanente resquício do bairro – e sei como é fácil e apelativa a segurança do grupo dos que pensam como eu penso. Mas passei anos a fugir disso, a aprender a escutar, a dar lugar, a tentar perceber a argumentária diferente da minha e a vê-la como a melhor maneira de crescer.  

E não me apetece nada recuar. 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...