20240911

Faz parte

Não lido mal com a dor. Alias, há muitos anos, acordo com dor, vivo com dor e adormeço com dor. De cabeça. Da que mói porque está sempre presente. Mas eu remeto-a para canto. E normalmente faço-o bem. Esqueço-me dela. Quando me convidaram para fazer mais um Caminho de Santiago, sabia que teria a dor por companhia. O Rumos, no princípio deste ano, acentuou mazelas e eu sabia que o Caminho, sendo muito mais violento, as deixaria mais profundas. E eu lidei com elas. Logo a partir dos primeiros kms do segundo dia as articulações deram de si, como eu previa. No final desse dia seguia o método de São Francisco e chamava amiga à dor. Ontem tinha o tornozelo como uma batata e fui ao médico. Ele perguntou-me porque raio andava assim há tanto tempo e, sobretudo, porque tinha feito assim o Caminho. Respondi "faz parte", como digo para mim próprio sempre que tenho que lidar com o lado B das coisas. Faz parte. A minha dificuldade não é propriamente a dor. Quando a conheço, quando a antecipo. puxo-a para mim, é minha amiga, faz parte do que sou. Não a procuro, mas acolho-a, como acontece com as coisas menos boas que me acontecem na vida. Faz parte. Nada é só bom. Nada é só mau. E recordo sempre Job, o primeiro livro que, era muito miúdo, li na Bíblia e me levou a querer estudar e aprofundar a Palavra. A minha dificuldade é com a dor inesperada. Quando ela vem sem contar e me apanha distraído, impreparado, mergulhado numa outra realidade onde ela não é suposto entrar. Essa é a dor que me abana. Sempre. Que tento, em vão, perceber. Que tento, em vão incorporar. Que tento, em vão chamar amiga mas que tudo em mim se recusa a fazê-lo. Mas esta é também uma dor que faz parte. Ou que tento que faça parte. Por vezes, infrutiferamente - o que deixa marcas irreparáveis (tenho algumas) - por vezes, racionalmente - engavetando-as, suspendendo-as, deixando para quando estiver minimamente preparado para lidar com elas. Voltar ao Caminho recordou-me que as dores maiores nunca são físicas. Voltar do caminho recordou-me que as dores da alma, as dores da ausência, as dores da saudade são as que pedem uma gaveta à sua medida. Venha ela. Tenho tantas!

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