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Tenho lido, não sem algum espanto, a revolta de alguns católicos sobre o acontecimento espelhado por esta imagem. e tenho dificuldade em entender. Também tenho lido a fúria da cultura do cancelamento sobre as obras de Marko Rupnik por causa dos abusos de que é acusado. Parece-me que na base está o mesmo fenómeno: o endeusamento da arte, esquecendo que os artistas são pessoas quase sempre desafiadoras do seu tempo, mas são pessoas. 
Sempre que estou no Vaticano lembro-me de uma conversa com um aluno. Tínhamos estado juntos, nesse ano, em Taizé e, cá fora, disse-me "isto é belíssimo, mas é um museu. Igreja, para mim, é muito mais Taizé". Não podia concordar mais com ele. Arte é arte. É enorme, é tremenda, arrepia-nos o âmago, questiona-nos e aos nossos fundamentos, irrompe o comum, o quotidiano, transporta-nos muitas vezes para outro patamar. Mas é arte. Lembro-me dos imensos debates a propósito do Código Da Vinci, como se Dan Brown fosse um novo Moisés e não um artista que escreveu um livro. Mais, como se a última ceia de Da Vinci encerrasse em si uma verdade divina e não fosse um mero belíssimo quadro. 
Eu gosto muito de arte. Gosto imenso quando vou ao CCB e o guia me ajuda a ver o que, sem ele, me passaria completamente ao lado. Todos os dias me deixo espantar pela fotografia, pela música, pela literatura, pela escultura, e por tantas outras formas de arte, como o riso ou a arquitetura. Todos os dias me espanto pela enorme capacidade - pelo tremendo dom - que alguns têm e arriscam revelar aos outros, sujeitando-se às críticas, muitas vezes impiedosas, que incidem sobre algo que lhes saiu das entranhas. Mas não os endeuso. Nem aos artistas nem às suas obras. Não acredito que sejam particularmente abençoados por Deus, porque acredito que todos somos abençoados por Deus. Acredito que algumas das suas obras me educam o olhar sobre a realidade e, nessa medida, me aproximam de Deus, mas outras nada fazem para isso. Nem têm que fazer. 
Claro que também eu fico momentaneamente zangado ou chateado quando vejo referirem-se a algo que me é querido de forma abusiva ou enganadora. Claro que também eu insulto baixinho os que usam as minhas referências de vida para chocar e assim venderem mais. Claro que tenho direito à indignação. Mas não confundo isso com a profanação de Deus. Essa, da última vez que me envergonhou verdadeiramente, veio de dentro. E não foi cometida sobre obras de arte. Foi contra pessoas, as únicas imagens de Deus que o são de verdade. 
Só para colocar as coisas em perspetiva.

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