O lugar comum é inevitável!

Estávamos em mais uma acção de formação do ER. São sempre muito úteis, até porque no dia a dia a exigência é tanta e tão absorvente que é raro podermos sentar, olhar-nos e conversarmos, com calma. Ainda para mais, naquele dia e pela primeira vez, estavam alguns dos voluntários que todos os dias nos ajudam a construir sonhos.  A determinada altura lá vem o tema das dificuldades que sentimos, todos os dias, que são mais ou menos as de todos os que trabalham com crianças: resistência ao estudo, alguma falta de respeito pelos educadores, dificuldades na postura em sala de aula, a sensação que elas pensam que somos criados delas. E eis que lá vem o lugar comum: pois, são crianças dos bairros, sem regras, sem ninguém que lhes diga como devem ser e fazer e se comportar... são uns pobres coitados que importa salvar (claro que não se diz isto com as palavras todas, mas é isto o que se quer dizer).

Tenho a graça de trabalhar todos os dias com miúdos das franjas opostas da sociedade. E posso afiançar que, no que diz respeito a necessidade de "salvação", não diferem assim tanto entre si. Muito menos no que diz respeito à necessidade de os salvar dos pais. Aliás, não temos, no ER, assim tantos casos de crianças invisíveis, o que já não posso garantir que não aconteça no pólo oposto.

Nos bairros, para o bem e para o mal, os filhos sentem que têm pais, ou tios, ou avós, ou primos, ou vizinhos que tomam o seu lugar - mesmo quando, como acontece bastante, alguns destes estão na cadeia. São pais que ralham muito, que por vezes batem muito, a quem, mal desperta a adolescência, os filhos não respeitam muito, mas são pais presentes, constantemente presentes, até porque a maioria deles não tem outra ocupação que não seja ir levar o filho a escola e ir buscar o filho à escola e ir chatear o professor do filho na escola. Não é raro naquele meio encontrarmos pais para quem os filhos são tudo e estragam-nos de mimos - chocolates, batatas fritas, refrigerantes, gomas, e tudo o que faz mal são uma constante nos miúdos. Mimam da pior maneira, mas mimam como sabem.

Ao longo destes anos tenho-me deparado com filhos invisíveis, mas raramente deste lado da sociedade. Conheço filhos para quem a ama ou a criada ou a avó é muito mais mãe e pai que a mãe ou o pai. Conheço filhos que nunca fazem as refeições com os pais, que nunca passam férias com os pais - ainda que estejam na mesma casa - para quem os pais são os que lhes dão o dinheiro para irem para a noite e de férias para outros países e quem lhes garantirá o emprego no futuro, mas que não são pais. E conheço pais, e não são poucos, para quem o que importa verdadeiramente é a nota na pauta que, uma vez conquistada, serve de carta de alforria para o(a) filho(a) fazer o que lhe dá na real gana, "tens o 20, fazes o que queres" o que, convenhamos, para quem tem pouco mais de 15 anos e os bolsos cheios, é pouco menos que criminoso. Quais dos filhos precisam de maior acompanhamento? Quais dos pais precisam de maior acompanhamento? E quais dos pais e dos filhos estão mais abertos a receber acompanhamento?

Quando fui a Moçambique apercebi-me que. na essência, todos somos iguaizinhos. E quanto mais perto da infância, mais iguais somos. As necessidades de carinho, de afecto, de atenção, são, na essência, as mesmas, qualquer que seja o horizonte que têm diante dos olhos. O que muda, isso sim, são as necessidades que garantam a subsistência. Porque enquanto uns têm o futuro mais ou menos garantido, outros têm a incógnita permanente como realidade. E, isso sim, faz toda a diferença.

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