Lembrei-me logo dela. Com um sorriso. Lembrei-me de muitos, ontem, ao longo de toda a manhã, enquanto carregava a cruz, literalmente, de casa em casa, literalmente, testemunhando a alegria espelhada nos olhares dos que acolhem o ressuscitado em suas casas, pelo menos neste dia, no dia do ressuscitado.

Lembrei-me do seu choque quando viu, finalmente, as marcas da idade representadas naquela fotografia. Passada a ilusória certeza que estava a brincar, percebi que não fingia, percebi que provavelmente não enfrentaria o espelho, todos os dias, sem antes, todos os dias, aplicar na sua cara toda a camada de cremes e retardadores e embelezadores - digo de cor porque não faço a mínima ideia do que as mulheres usam - percebi que acredita, vãmente, ilusoriamente, irrisoriamente, que é possível adiar a idade.

Lembrei-me do que me dissera quando lhe sugeri a cruz: "eu e a cruz temos uma má relação. Já tive a minha dose de cruz, não quero outra." Sugeri-lhe que, algures ao longo do tempo que nos restava, se sentasse junto àquela cruz - bela, por sinal! - e deixasse que ela lhe falasse. Pensava que lhe tivesse caído em saco roto até que, dias mais tarde, disse-me, quase sussurando "fiz o que me disseste".

Lembrei-me do que dissera à minha mais-que-tudo quando a conheceu "espero que faças dele um homem", assim como quem se confessa, como quem admite a sua impotência, como quem passa um fardo que era seu enquanto lava as mãos. Aquele "espero que faças dele um homem" nunca deixou de ecoar, nunca deixou de tentar encontrar o seu caminho, nunca deixou de perseverar, de ficar à espera, de espreitar um dos tantos momentos de fragilidade, de impotência, para fazer o seu caminho. Provavelmente, ontem, quando estivemos juntos, se lho tentasse recordar, diria que aquelas não são, nunca foram, palavras suas. Espero que por não as reconhecer, agora, como suas. Espero que por não me reconhecer, agora, como destinatário delas.

Lembrei-me do ano passado. Que quando chegáramos à sua casa, provavelmente a mais pobre desta paupérrima zona de São Pedro que nos acolhe, encontrámos tudo menos a alegria. Ela veio ao nosso encontro, a correr, não fora esquecermo-nos de si, e pediu-nos para entrar. Ele, sem se poder levantar, babava-se a cada aleluia por nós proclamado, chorava a cada aleluia por nós proclamado, gemia em surdina a cada aleluia por nós proclamado, provocando, em nós, os que proclamávamos a Ressurreição, os que levávamos a notícia da Ressurreição, o incómodo de nos depararmos com a alegria oculta, a alegria invisível, a alegria que tem que ser muito interior, muito anterior ao conhecimento da dor, à permanência do sofrimento. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que aquele casal, naquela pequeníssima casa, acolha Jesus. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que, aquele casal, naquela pequeníssima casa, reconheça Aquele que com eles habita todos os dias. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que, naquele casal, naquela pequeníssima casa, tenhamos a oportunidade de O ver, efectivamente, feito vida, feito encontro, feito ressurreição.

Lembrei-me de muita vida vivida enquanto andava, ontem, ao longo de toda a manhã, enquanto carregava a cruz, literalmente, de casa em casa, literalmente, testemunhando a alegria e o sofrimento espelhados nos olhares dos que acolhem o ressuscitado em suas casas, pelo menos neste dia, no dia do ressuscitado. E fui dando graças. Pela minha idade, que, entre outras coisas, me permite carregar a cruz com a consciência de quem carrego, de casa em casa; pela cruz, que carrego nas minhas mãos e que entrego, a um e a outro, calmamente, solenemente, de casa em casa; pelo meu pai, que, não tendo muito, me confiou a quem fez de mim um homem; por aquelas casas que nos abriam as portas apesar da miséria evidente, pelos que nelas nos acolhiam, e me recordam, todos os anos, que é para eles que Jesus Ressuscitou.
E por Jesus, que faz de cada momento da minha vida uma oportunidade para O encontrar, para me dar testemunho da Sua presença.

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