Acabo de ver o quarto episódio da terceira série do House of Cards. Durante todo o episódio a questão de Deus, do sacrifício de Jacob, da entrega de Abraão do seu próprio filho para que ele seja sacrificado e o paralelismo com o próprio Deus que entrega o Seu próprio Filho para que, por amor, seja sacrificado, está latente. E termina com uma cena forte, como é típico desta série. Não é isso que me traz aqui.

A determinada altura, Francis diz que percebe bem o Deus do Antigo Testamento, com o seu poder absoluto, mas não percebe Jesus, que abdica do seu poder absoluto. Não é o único. Custa-nos sempre muito perceber como é que Jesus, que tudo pode, tudo entrega. Por amor.

A questão é que percebemos sempre melhor a linguagem do confronto que a linguagem do amor. A linguagem do confronto dá-nos mais garantias, mais segurança, é mais óbvia, corresponde de forma mais imediata aos nossos instintos de protecção. No instinto do confronto continuamos a ser bichos por excelência, marcamos posições, marcamos territórios, e privilegiamos a pose ameaçadora como garantia de sucesso. Somos instintivamente implacáveis e esperamos que quem nos confronta o seja para connosco. A linguagem do amor desconcerta-nos, desarma-nos, conduz a que contrariemos todos os nossos instintos de protecção e torna-nos mais inseguros, mais dependentes, muito mais imprevisíveis.

Quando era miúdo andava muitas vezes à pancada. Era normal num meio onde tudo é conquistado, onde nada é dado. Marca-se território, ameaça-se, parte-se para o confronto, apanha-se e dá-se, e no final ganha quem fica de pé. Da última vez que tive uma coisa destas - teria cerca de 17 anos - o meu contendor - por acaso visivelmente com mais cabedal que eu - não fez nada, não disse nada, limitou-se a olhar para mim enquanto eu o sacudia, violentamente, provocando a sua reacção. Ao fim de pouco tempo desisti. Não valia a pena. Na altura estava ainda naquela zona de fronteira entre o bairro e a capela e já sabia quem era Jesus e a forma como tinha reagido à condenação. E lembrei-me d'Ele. E desisti. Dei meia volta. Não fazer nada, não dizer nada e, sobretudo, olhar para mim enquanto eu estava de cabeça perdida, tinha-me batido mais forte do que eu alguma vez lhe poderia bater.

É muito isto, o que não percebemos. Percebemos quem se cala porque não pode, percebemos quem se acobarda, percebemos quem é suficientemente realista para saber quando se deve recolher, quando se sente impotente, percebemos quem não tem alternativa. Percebemos a lógica do poder. Não percebemos quem, podendo, escolhe não poder. Não percebemos a lógica da humildade.
Que não tem nada a ver com não poder.
Que não tem nada a ver com realismo.
Que não tem nada a ver com impotência.
Que não tem nada a ver com ser pequeno.
Tem a ver com escolha.
Com escolher ser pequeno.
Para que outros possam, simplesmente, ser.

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