Durante a viagem de finalistas deste ano entretive-me algumas vezes a apreciar a escuridão da noite misturada com fortes rajadas de vento em pleno Mediterrâneo. Sentia-me suficientemente confortável e seguro para o fazer, a bordo de um verdadeiro colosso dos mares. Pensava muitas vezes como seria estar perdido no meio daquele mar imenso, no meio daquela escuridão imensa, daquela hostilidade imensa. E recolhia-me para o conforto do meu camarote, confortável e seguro, e esquecia rapidamente aquela estupidez.

Acredito que há níveis de desespero que não consigo sequer calcular. Nem que seja por pudor. O que levará alguém a meter-se num barco daqueles, a meter consigo a sua família, sabendo que estará a correr risco de vida, a colocar em risco a vida daqueles que ama, é algo que me está demasiado inacessível para sequer me permitir opinar. Mas que deve ser algo muito próximo do desespero total, disso não tenho qualquer dúvida. Preferir enfrentar a morte daquela maneira, escolher correr e fazer correr tamanho risco apenas será entendível quando viver é uma alternativa ainda pior. É algo que eu, a partir do conforto e segurança do meu camarote, não consigo sequer imaginar. Nem que seja por pudor.

Num dos dias de reflexão falávamos do RAIZ e de como algumas pessoas vivem com tão pouco. Eu e o Paulo olhamos uns para o outro imediatamente, porque nos lembramos logo de uma imensidão de pessoas de Quelimane para quem o "pouco" que qualquer pessoa cá no país tem, seria imenso face ao imenso que não têm. São realidades incomparáveis, tal a desproporção. O politicamente correcto muitas vezes apenas serve de entrave à vida das pessoas. Conheci muitos em Quelimane que dariam tudo para poderem vir para Portugal para fazer o que fosse preciso. Ainda que vivessem a apanhar papel e latas para reciclar, ainda que vivessem a estacionar carros numa qualquer praceta, ainda que trabalhassem de sol a sol apenas pelo ordenado mínimo, muitos deles teriam já imensamente mais do que alguma vez podem aspirar a ter na sua terra natal. Pelo menos teriam a esperança da mudança e da melhoria de vida. Lá, quando trabalham em troco de comida, pelo menos têm comida. Outros, nem isso...

Há uma enorme arrogância da nossa parte. Não nos cairia os parentes na lama se abdicássemos de algum do nosso conforto, de alguma da nossa segurança, de alguma da nossa possibilidade de futuro em favor daqueles que nada têm. Custa-me entender e conciliar as nossas queixas da quebra da natalidade comprometedoras do futuro enquanto impedimos que outros encontrem junto de nós a possibilidade de viver. Só um egoísmo atroz é capaz de o explicar. Sei bem que não faltarão os defensores dos direitos dos trabalhadores a dizer que eles não poderão vir sem terem garantidas as condições para uma sobrevivência digna. Lá chegaríamos, com certeza, com muito trabalho, com muita discussão, com muitas manifestações, por certo. Mas primeiro o mais importante: pelo menos a sua sobrevivência estaria garantida.

E, isso sim, seria verdadeiramente o mais importante.

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