20150428



"Sou o teu anjo da guarda".

Eu sei. Sempre acreditei no meu anjo da guarda. Ou anjos, para ser mais exacto. Porque sempre acreditei naqueles que estão atentos ao que vou fazendo, ao que vou dizendo, ao que vou escrevendo, ao que vou revelando, inadvertidamente ou não, e me dão o toque, quase sempre de forma discreta, de olhos nos olhos, e me puxam de volta para o trilho certo.

"Estás sempre no teu centro"

Recordo-me do choque que senti quando o ouvi a primeira vez. Calmamente, serenamente, magoadamente, disse-mo como se me estivesse a proclamar uma qualquer evidência por mim sabida há muito. Não o sabia na altura, há quase trinta anos! E doeu-me. Não o ouvia há algum tempo. Há demasiado tempo! Tinha-o esquecido. E não me doeu menos!

"Tens que cuidar daqueles que amas. E que te amam."

É quando percebo melhor que falhei. Em toda a linha. Sem qualquer sombra de dúvida. É quando dói mais, é quando me apercebo que tudo o que tinha sido dito antes tinha uma raiz profunda, real, efectiva. É quando sei que tenho mesmo que parar, que baralhar e voltar a dar, que tenho andado numa outra realidade, demasiado desfasada com a realidade dos outros, Dos que valem a pena. Daqueles de quem é suposto que eu cuide.

"Sem querer, dá um passo em falso e mergulha no abismo. Os fantasmas assustam-no, a solidão atormenta-o. Como sempre procurou o bom combate, não pensava que isto acontecesse com ele. Mas aconteceu. Envolto na escuridão, comunica com o seu mestre.
“Mestre, caí no abismo. As águas são fundas e escuras.” 
“Lembra-te: o que afoga alguém não é o mergulho, mas o fato de permanecer debaixo de água.” 

Isto não foi dito. Foi lido. Hoje mesmo. Quando andava à procura, mais uma vez à procura.

20150423


"A minha vida é muito má, os meus irmãos estão na cadeia e tenho muitas saudades deles" Enquanto me dizia isto, chorava compulsivamente, pela terceira vez esta semana. Tínhamos ambos ido para o recato do gabinete depois de ela andar, mais uma vez, à pancada dentro da sala. Agarrei-me a ela, todo partido por dentro, e disse-lhe que ali todos gostamos muito dela e que a queremos lá, junto de nós, e que ela pode contar sempre connosco. Abraçou-me e, lentamente, os soluços foram serenando, e pouco tempo depois já me sorria, na sala.

Que se diz nestas alturas a uma miúda de oito anos? Dá vontade de pegar nela, de a meter numa redoma e garantir-lhe que o que aconteceu aos irmãos não lhe acontecerá. Não posso. Eu conheço outros irmãos seus. Já me passaram pelas mãos, há alguns anos, e são daqueles miúdos que até metem dó. Boa gente, serena, educada, sem qualquer outra perspectiva de futuro que não seja fazerem o que os mais velhos faziam antes de ir parar à cadeia. Volta e meia aparecem por cá e conversamos um bocado. Reconheço-lhes ainda a doçura no olhar, a simpatia no trato, o respeito nas palavras. Sabem que aqui, nesta casa, todos gostamos deles, e por isso prescindem da defesa e da cara de mau que vestem fora destes portões. Não invalida que há meia dúzia de meses ambos se tivessem envolvido num tiroteio e um deles tivesse sido baleado numa perna. Barra dura, como costumo dizer. Que parece de filme, mas que se passa aqui, a meia dúzia de metros, com miúdos que, noutras condições, noutras circunstâncias, poderiam ter sido tudo aquilo que quisessem. Assim, serão apenas mais um. A ler nas notícias do JN, não tarda muito.

Não tenho ilusões nem compro teorias dos coitadinhos. Muitos deles colhem aquilo que foram semeando, apesar do que lhes dissemos, apesar do que conversamos, apesar dos nossos esforços, invariavelmente mais exigentes que os dos seus pais, invariavelmente menos definidores que os dos seus amigos com tempo e dinheiro a mais no bolso. Mas isso não serve de nada. Talvez para aliviar as nossas consciências. Mas é coisa pouca. Pode funcionar em dias bons. Não hoje.

Há dias bons e outros nem tanto, aqui. Hoje já sei que não vou conseguir calar a cabeça. Vai ser uma longa noite!

Olho para o meu anelar esquerdo e não acredito. Já não o via assim despido há mitos anos. E despido é como quem diz, pois tem ainda bem patente, bem vincada, a marca da aliança que o envolve há quase vinte e cinco anos. Que saiu agora para servir de medida a uma outra, de prata fingida (parece que é ouro branco, ou lá o que é).

Ainda ontem conversávamos e eu disse, para seu grande desgosto, que não precisava de nada disso. Que não tem sido mau porque tenho visto na sua cara a alegria e a excitação enquanto marca o local, enquanto faz e entrega os convites, enquanto vamos a casa dos nossos amigos mais antigos para combinarmos as coisas. Fora isso, não precisava nem de convites, nem de jantar, nem de bodas. Bastar-me-ia nós os dois e os filhos, todos juntos, num fim de semana em qualquer sítio, a festejarmos juntos, o que tem sido a nossa vida. Juntos. Seria perfeito!

Ainda ontem, numa das conversas com os nossos amigos mais antigos, falávamos acerca da opção de alguns dos seus filhos que, alegando não ter dinheiro para casar, optaram por viver com os seus namorados. Não entendo. Não existe isso de não ter dinheiro para casar. O processo de casamento não custa mais que cem ou duzentos euros. Não é por aí, portanto. O que eles não têm é dinheiro para as quintas e para os temas das quintas e para os foguetes e a banda e toda a festança que agora é moda envolver um casamento. Eu não tenho nada contra aqueles que escolhem viver com os namorados. Principalmente se não têm vida de fé ou entendem que o matrimónio não é importante. Pelo contrário. Entendo-os melhor e respeito-os mais que aqueles que casam junto de um altar apenas porque sim. Mas não entendo que digam que não casam porque não têm dinheiro. Não casam porque querem boda. E não a podem pagar. Ponto final!

Ainda ontem conversávamos que tínhamos tido uma boa escola de vida. O JUP, com os convívios e retiros, com as catequeses, com os cânticos, depois com os fins de semana juntos enquanto os nossos filhos eram pequenos, foi, verdadeiramente, uma boa escola de vida. Passávamos férias juntos, acampávamos, organizávamos encontros de coros, escrevíamos jornais e assumíamos toda a vida juvenil numa paróquia em que o pároco primava pela ausência. E tudo aquilo que fazíamos revelou ser, à medida que o futuro nos foi chegando, uma rede de conhecimentos e ferramentas importantíssimas nos nossos casamentos, nas nossas profissões, na forma como vivemos, separadamente, a nossa fé. Agora que os nossos filhos começam a definir o seu presente e futuro, começamos a sentir necessidade de voltarmos a estar juntos, de retomarmos conversas e cumplicidades que nunca sentíramos que se tinham perdido mas apenas ficaram suspensas, por tempo indeterminado, até que voltássemos a ter vida própria.

Ainda ontem, quando regressávamos a casa, disse-lhe que isto sim, sabia-me bem. Este retomar de conversas e de partilhas, este pretexto para voltarmos a estar juntos, esta sensação que nunca nos deixamos de ter uns aos outros apesar do tempo, apesar dos filhos, apesar da vida que se foi interpondo, naturalmente, dirigindo o nosso olhar para o que ia sendo mais importante. E que, como sempre, tinha escolhido bem ao decidir fazer a festa não apenas com os nossos filhos mas também com alguns dos que têm capítulos dedicados da nossa vida. Mas que, ainda assim, dispensava bem a aliança de prata, ou ouro branco, ou lá o que é.

Ainda ontem, quando nos deitamos, recordei em silêncio as palavras que dissera, para mim há bem pouco tempo: "recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo." E disse-lhe que bom mesmo, para mim, iria ser repetir estas palavras na nossa cerimónia. Sabendo que elas estão cheias de verdade, de vida vivida mas também de ânsias de futuro. O resto - ela que me desculpe - é folclore.

20150422




A propósito do Tedx Porto, tem bailado cá por dentro uma pergunta: afinal, qual será a minha Main Thing? Não sei se o consigo definir. Desde que me conheço que não parei ainda de procurar. Nem acho que alguma vez isso irá acontecer, para ser verdadeiro. Talvez a minha Main Thing seja mesmo a inquietação, que me impede de estar parado e quieto, que me catapulta para outras coisas, para tentar sentir as coisas sempre novas, ainda que as faça pela enésima vez, que me põe em estado de caminho permanente sem, contudo, deixar de ir apreciando a paisagem.

Este ano comemoramos as nossas Bodas de Prata. Vinte e cinco anos de casamento, trinta de relação, porque assim que pusemos os olhos um no outro apaixonamo-nos e começamos a permitir-nos construirmo-nos mutuamente. Quando pensava na Main Thing e na inquietação que permanentemente me acompanha, perguntava-me como é possível conciliar essa inquietação com uma relação tão longa, tão exclusiva, tão cheia. Afinal, tantos anos juntos pressupõe, aos olhares alheios, quase uma estagnação, quase um acomodamento, quase uma resignação ao que está e ao que deve ser, como se tivéssemos sido condenados em vida, sem qualquer possibilidade de voltar a trás. E isso raras vezes aconteceu. E quando aconteceu, quando nos apercebemos que as coisas estavam de alguma forma a esfriar, a cair no rame-rame do quotidiano, sem qualquer frenesim, um de nós tinha a sabedoria de agitar as águas, às vezes da melhor maneira - um fim de semana a dois, um jantar a dois, uma caminhada a dois ou, quando o tempo escasseia, uma boa conversa a dois - outras vezes de maneira menos ortodoxa - às vezes uma boa discussão (com limites, claro) contribui verdadeiramente para a manutenção de uma relação saudável.

Se esta inquietação permanente - e os filhos, e a nossa vida voltada para fora, e a intensidade com que mergulhamos no trabalho, e a partilha profunda de grandes objectivos e visões de vida - impediu que o nosso casamento adormecesse, por outro lado também trouxe algumas vicissitudes, Levei tempo a perceber que eu não me esgotava enquanto marido e enquanto pai, que tenho outras dimensões que, não sendo tão fundamentais, são muito importantes para o meu equilíbrio e para a forma como me vejo enquanto pessoa, enquanto cristão. E se levei tempo a perceber isso, levei muito tempo a tentar fazer percebe-lo, sem magoar, sem que fossem colocados em causa os alicerces profundos do nosso casamento: verdade, exclusividade, cumplicidade, amor. Também nesta tarefa o tempo corre a nosso favor: com calma, com serenidade, temos conseguido entender que nem sempre estamos juntos quando estamos fisicamente próximos um do outro. Nesta, como noutras pequenas e grandes coisas, estamos ainda em caminho. E isso é bom.

Em boa verdade, não sei se será a inquietação a minha Main Thing. Mas é uma boa questão, uma boa inquietação, e a ela voltarei com toda a certeza.

20150421


Durante a viagem de finalistas deste ano entretive-me algumas vezes a apreciar a escuridão da noite misturada com fortes rajadas de vento em pleno Mediterrâneo. Sentia-me suficientemente confortável e seguro para o fazer, a bordo de um verdadeiro colosso dos mares. Pensava muitas vezes como seria estar perdido no meio daquele mar imenso, no meio daquela escuridão imensa, daquela hostilidade imensa. E recolhia-me para o conforto do meu camarote, confortável e seguro, e esquecia rapidamente aquela estupidez.

Acredito que há níveis de desespero que não consigo sequer calcular. Nem que seja por pudor. O que levará alguém a meter-se num barco daqueles, a meter consigo a sua família, sabendo que estará a correr risco de vida, a colocar em risco a vida daqueles que ama, é algo que me está demasiado inacessível para sequer me permitir opinar. Mas que deve ser algo muito próximo do desespero total, disso não tenho qualquer dúvida. Preferir enfrentar a morte daquela maneira, escolher correr e fazer correr tamanho risco apenas será entendível quando viver é uma alternativa ainda pior. É algo que eu, a partir do conforto e segurança do meu camarote, não consigo sequer imaginar. Nem que seja por pudor.

Num dos dias de reflexão falávamos do RAIZ e de como algumas pessoas vivem com tão pouco. Eu e o Paulo olhamos uns para o outro imediatamente, porque nos lembramos logo de uma imensidão de pessoas de Quelimane para quem o "pouco" que qualquer pessoa cá no país tem, seria imenso face ao imenso que não têm. São realidades incomparáveis, tal a desproporção. O politicamente correcto muitas vezes apenas serve de entrave à vida das pessoas. Conheci muitos em Quelimane que dariam tudo para poderem vir para Portugal para fazer o que fosse preciso. Ainda que vivessem a apanhar papel e latas para reciclar, ainda que vivessem a estacionar carros numa qualquer praceta, ainda que trabalhassem de sol a sol apenas pelo ordenado mínimo, muitos deles teriam já imensamente mais do que alguma vez podem aspirar a ter na sua terra natal. Pelo menos teriam a esperança da mudança e da melhoria de vida. Lá, quando trabalham em troco de comida, pelo menos têm comida. Outros, nem isso...

Há uma enorme arrogância da nossa parte. Não nos cairia os parentes na lama se abdicássemos de algum do nosso conforto, de alguma da nossa segurança, de alguma da nossa possibilidade de futuro em favor daqueles que nada têm. Custa-me entender e conciliar as nossas queixas da quebra da natalidade comprometedoras do futuro enquanto impedimos que outros encontrem junto de nós a possibilidade de viver. Só um egoísmo atroz é capaz de o explicar. Sei bem que não faltarão os defensores dos direitos dos trabalhadores a dizer que eles não poderão vir sem terem garantidas as condições para uma sobrevivência digna. Lá chegaríamos, com certeza, com muito trabalho, com muita discussão, com muitas manifestações, por certo. Mas primeiro o mais importante: pelo menos a sua sobrevivência estaria garantida.

E, isso sim, seria verdadeiramente o mais importante.

20150417



Pelo brilho do seu olhar sabia que vinha aí coisa boa. Não calculava é que seria tão boa. "Estou grávida!"

Eu adoro, a cada momento, ser pai. Ainda que nada tivesse feito, ainda que tudo o resto fosse puro desperdício, bastar-me-ia ser pai para sentir que tudo tinha valido a pena. Mas ser mãe, no entanto, é outra coisa! Não é ter apenas alguém dentro, é ter, efectivamente, uma vida dentro, albergar um milagre inteiro dentro, e sentir o bebé mexer e crescer e palpitar e passar de um lado para o outro uma e outra vez e dar a volta e depois sentir que se tem um papel fundamental, físico, efectivo, para que nasça e aí, só aí, entramos nós os pais, babados, sofridos, sôfregos, a tentar recuperar de nove longos meses de espera, de suposições, de olhar para ecografias e não perceber puto, de tentarmos imaginar como será e desejarmos imaginar como será e ficarmos felizes porque sentimos um pontapé quando nos encostamos à mãe, e ficarmos embevecidos quando dormimos com a mão naquela barrigaça e temos um vislumbre do milagre que é albergar uma vida quando sentimos - senti? ou foi imaginação minha à custa de tanto desejar sentir? - que o seu calcanhar está ali, ao alcance da nossa mão, e ficamos felizes, tão felizes como se fossemos efectivamente nós os grávidos. (As nossas mulheres condescendem ao ponto de nos deixarem dizer que também nós estamos grávidos. Por vezes somos mesmo ridículos!)

Ontem fui de autocarro para casa e comecei a ler, nessa viagem, a bula de Francisco. Ás tantas o meu olhar deteve-se "... sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador." Quem me conhece sabe que tenho mixed feelings acerca do Papa Francisco. Tem gestos extremamente importantes mas depois tem muitas alturas em que vai longe de mais, em que é quase pimba, tal é a vulgaridade. E que, quando escreve, me faz ter muitas saudades do Papa Bento XVI. No entanto, ontem, aquela frase levou-me à revisitação do meu dia, a uma reinterpretação, a uma revalorização, como se, de repente, se tivesse feito luz. A seu pretexto percorri, pela segunda vez no mesmo dia, conversas e olhares e dores e lágrimas, e renovei esperanças e confianças na vida e no amor. A seu pretexto agradeci por quem tem a coragem de recomeçar, de construir sobre escombros, de prescindir da fase do sonho e da ilusão e ainda assim acreditar suficientemente na vida para conseguir dar lugar ao perdão, por amor, superando dores e cansaços, medos e desilusões, preparando-se para as duras batalhas que aí vêm. A seu pretexto agradeci essas pessoas, que são quem melhor me fala de Deus, de um Deus que permite recomeçar sempre, de um Deus que se entrega sempre, de um Deus que ama sempre, que prefere sempre o amor ao ressentimento, a alegria à amargura, a docilidade ao azedume, sem perder no entanto a lucidez de quem tem os pés assentes no chão.  A seu pretexto sorri, mais uma vez, ao recordar o que me fez ganhar o dia: "Estou grávida!".

E, naquele autocarro cheio de gente a caminho de casa, louvei a Deus!

20150416


Há alturas em que me sinto mesmo deslocado como católico.

Sigo muitos blogues religiosos, católicos e protestantes, de outras confissões religiosas, de ateus... Tento sempre fazer com as leituras o que tento fazer com as pessoas: dou mais atenção ao que é escrito que à sua proveniência. É mais importante para mim o que é dito e feito que de quem vem o que é dito e feito. E tento sempre ver como se fosse novo, tentando evitar catalogar à partida. Muitas vezes não passa de um processo de intenções, muitas vezes o que faço fica muito aquém do que quero fazer e tendo a condenar ou apreciar à partida consoante a origem. Mas esforço-me sempre para que isso não aconteça, e às vezes sou bem sucedido.

Tenho sempre alguma dificuldade em perceber quem, de entre nós, prefere a letra à vida. Eu sei bem que a teologia é fundamental, sei bem que precisamos ter bons alicerces sob pena de andarmos como penas ao sabor do vento, sei bem que, particularmente num mundo em que as coisas nos são apresentadas com roupagens que não correspondem à realidade, tem que haver pessoas que, com muito esforço e dedicação, nos vão chamando à atenção, profetas dos nossos tempos, para que possamos saber sempre que chão pisamos. E sinto-me genuinamente grato por esse esforço, por esse cuidado, por essa assumpção de missão. No entanto, a linha que separa a obstinação dessa verdade alicerçada no papel é muito ténue, e eu vejo-me algumas vezes - sempre com desconforto! - do outro lado da barricada.

Sempre que me sinto desconfortável com a minha religião tenho um remédio simples. Pego numa das minhas meninas, procuro o sossego da capela, e canto e rezo e encontro-me. Recordo-me o que prometi quando, era ainda muito miúdo, comecei a tocar: que isto seja um meio de Te servir. Terá sido, provavelmente, o único compromisso consciente que fiz na altura, e regresso muitas vezes a ele. Digo muitas vezes que, quando as coisas se complicam cá por dentro, tento regressar às coisas simples, a ver quase como uma criança, para quem a única coisa que importa é o fundamental. Na minha fé nada há de mais simples que isto: pegar numa das minhas meninas e cantar e rezar e tornar-me com outros, e abandonar-me com outros e nos outros e, juntos, deixarmos que Deus nos mexa por dentro.

Não acho nada que isto seja mais importante que a teologia, não acho nada que esta seja a forma certa de se estar na fé, não acho nada que abandonar-nos à fé seja mais importante que pensar a fé. Todos temos um papel a desempenhar na Igreja, todos temos dons que importa colocarmos ao serviço da Igreja, todos temos o nosso lugar da Igreja. Em determinadas alturas preciso muito da sabedoria de quem pensa a fé. Noutras, porém, preciso mais de a sentir, de a partilhar por dentro. É este lugar à diversidade que torna a Igreja tão minha. Apesar do desconforto. Que é sempre ocasional.

20150414


Desenganem-se aqueles que pensam que o tempo se mede em dias
ou em semanas
ou meses e anos

Desenganem-se aqueles que pensam que podemos contar os dias
que podemos alicerçar-nos nessa contagem
que podemos garantir que essa contagem dita a distância
do que nos faz sofrer
de quem nos faz sofrer
de quem nos fez chorar
ou feliz, ou sorrir, ou amar

Desenganem-se aqueles que pensam que a contagem do tempo acalma as feridas
suaviza a saudade
dilui o desejo de voltarmos a estar
de voltarmos a ser
de fazermos sempre de novo
de nos fazermos sempre de novo
de fazermos o sempre novo
esquecido o que foi antes
acreditando no que será depois

Desenganem-se aqueles que pensam que o tempo nos limita o desejo
nos conforma a alma
nos limita o horizonte
nos rouba o sonho e o desejo e a vontade indómita de o alcançar
e ultrapassar
e nos ultrapassarmos com ele

Desenganem-se aqueles que pensam que o tempo tudo cura
tudo resolve
tudo faz passar

O tempo aprofunda
sempre
o que esteve lá
sempre
- ainda que escondido -
- ainda que debaixo do tapete -
à espera que o seu tempo chegasse
à espera que se pudesse cumprir

Desenganem-se aqueles que pensam que o tempo se mede em dias
ou em semanas
ou meses e anos

O tempo
o tempo que conta
mede-se em saudade
do ainda não

20150413


Por vezes acho que o meu estado mais natural é estar a caminho. Sinto uma enorme saudade da mochila nas costas, da roupa leve, do dia a nascer com todos os seus cheiros e sons e alterações de cor e de temperatura. Sinto saudades da chegada ao destino, satisfeito, cansado mas satisfeito, depois de ter ultrapassado as várias tentações de desistir, depois de me ter insultado baixinho, depois de me ter perguntado que raio é faço ali, àquela hora, depois de me ter dito silenciosamente que tenho idade é para estar no sofá, de pantufas calçadas e robe vestido, à espera que o futuro chegue, depois de me ter prometido que nunca mais, depois de ter desfeito todas as promessas e juras e esquecido todos os insultos mal avisto o albergue, mal percebo que, afinal (ainda) sou capaz e que passada meia hora estou completamente pronto para outra, que espero ansiosamente.

Estava a caminho quando senti, pela primeira vez, que afinal também eu tenho limites físicos. Estar assim, muito perto do não posso mais e saber que não tinha alternativa a não ser caminhar - faltavam ainda 5 kms para o albergue - é uma tremenda lição de humildade. Que ainda tenho dificuldade em incorporar. Nunca pedi ajuda, dificilmente deixei transparecer, e nunca deixei de estar disponível para quem precisasse, mesmo nessas alturas. Mas pelos piores motivos: em vez do altruísmo é a vergonha que me impede de dar a conhecer que atingi o limite. É o orgulho. E isso é estúpido.

Mas também por isso, estar a caminho é muito importante para mim. Tenho ainda muito a aprender acerca da humildade, em deixar que cuidem de mim, particularmente em termos físicos. Sempre tive a noção que partilho a alma com muito maior facilidade com que partilho o corpo, também na sua fragilidade, particularmente na sua fragilidade, como se fosse um último reduto que importa preservar, o que é profundamente contraditório com a importância que dou às coisas da vida. Por isso importa-me caminhar, chegar aos meus limites físicos, aprender a deixar que me ajudem, que me perguntem se preciso que me carreguem a mochila, ou então, vergonha das vergonhas, a ter que dizer que não posso mais, que não podem contar comigo para carregar seja o que for de ninguém, que atingi o meu limite. Estou sempre à espera que aconteça.
Talvez no próximo caminho.
Talvez não.

Quase todos os dias da semana caminho pelos mesmos sítios, passo pelas mesmas pessoas, que vão entretidas a correr, ou a caminhar energicamente, ou a passear o cão, oiço o som das ondas, das gaivotas, do vento quando há vento, de tudo o que acontece cá por dentro, quando cá por dentro acontece alguma coisa que valha a pena ouvir. Poder-se-ia pensar que é sempre a mesma coisa, mas nunca o é. Nunca tinha feito isto tanto tempo seguido, durante um período tão prolongado. Normalmente, nestas coisas que não me são essenciais, a minha resistência é menor que pouca. Acho muito giro na primeira semana, cumpro com algum sacrifício na segunda e depois sou muito bom a arranjar desculpas e justificações para não ter que o fazer. Desta vez, porém, não tem sido assim e, na medida do que me é possível e o trabalho me permite, desde Outubro que começo os meus dias a caminhar. O percurso que faço é sistematicamente o mesmo: estaciono no mesmo sítio, atravesso a avenida no mesmo sítio, desço até ao mar no mesmo sítio, retomo a avenida no mesmo sítio e reencontro-me com os Sinais, do Fernando Alves, enquanto me dirijo para aqui. Tenho muito de kantiano na forma como gosto de cumprir as minhas rotinas. Caminhar quase todos os dias quase à mesma hora pelos mesmos lugares tem-me permitido reparar no que não via antes. O crescimento dos arbustos depois de terem sido podados, a limpeza dos passeios antecipando o movimento primaveril que se anuncia a passos largos, a instalação progressiva dos abrigos onde se passa o dia a jogar às cartas, e até a evolução física daquele senhor de idade que começou por caminhar a custo e agora já passa por mim a correr.

Sempre preferi o tempo à novidade. Apesar de me adaptar com facilidade ao que a vida me vai dando, podendo escolher, normalmente escolho o que dura, o que leva tempo, o que se vai imprimindo em nós e nos permite imprimir algo de nós. Talvez por isso nunca percebi a freima em pintar o cabelo, a trabalheira das maquilhagens que - julgam elas - supostamente nos deliciam, o medo das rugas, a vã tentativa dos homens em esconder a barriguinha, ou a calvície. Eu gosto de ver as marcas do tempo. Nas pessoas e nas coisas. Talvez porque ilumine o suficiente para que possamos distinguir o que é do que aparenta ser. E isso é sempre bom!

20150411


Acredito mesmo que escolhemos o que queremos ver.

Acabei ontem a season 3 do House of Cards. Para mim, esta será a melhor temporada desta fabulosa série. Elemento transversal ao longo de toda esta temporada? a relação de Francis com Claire, a maneira como vivem o seu casamento, a forma como estiveram ao lado um do outro, para o bem e para o mal, nos períodos mais significativos das suas vidas. Uma relação longe de ser pacífica, altamente conflituosa, tremendamente interesseira, com jogos de poder constantes na tentativa de perceber quem, afinal, beneficiou de quem. Igualmente transversal, acontecem outras relações, paralelas, difíceis, outras famílias, e sempre a mesma questão de fundo: a importância e a dificuldade de amar, num casamento, numa relação fraterna, numa amizade.

Hoje, como quase sempre ao sábado - fruto, principalmente, do desejo da minha mais-que-tudo - vimos mais um Alta Definição. É o tipo de programa que normalmente não escolho ver mas que, quando está a passar, tem o condão de me agarrar. Mais uma vez, naquilo que é quase uma constante em todas as entrevistas, o valor da amizade, da família e da fé, omnipresentes nas vidas vividas dos entrevistados. É o que eu  mais gosto naquelas entrevistas: a desconstrução da personagem para que possamos ver a pessoa. Não sou ingénuo ao ponto de tomar tudo aquilo como verdade absoluta, mas também não creio que seja isso o mais importante. Aquilo que importa verdadeiramente é que se eles referem a família, a fé e as amizades é porque reconhecem nesse triunvirato alicerces importantes que, se não os têm, gostariam de os ter. Na esmagadora maioria das entrevistas que vi, sempre a mesma questão de fundo: a importância e a dificuldade de amar, num casamento, numa relação fraterna, numa amizade.

Por vezes sinto-me sintonizado com a vida. Como se todo o universo conspirasse para me chamar a atenção num determinado sentido, num determinado rumo. Não sei se acredito nisso, em boa verdade. Não sou muito dado a convicções cósmicas. Mas acredito que a vida se encarrega de, em determinadas alturas, nos chamar a atenção para aquilo que é importante. Seja por séries de televisão, seja por notícias ou entrevistas, seja, fundamentalmente, por todos aqueles que nos amam. Basta estarmos atentos. E abertos. E receberemos coisas boas.

20150409


Imagino mil conversas. Todos os dias! Basta estar a caminhar, ou a conduzir, ou a dirigir-me para algum lugar, e lá estou eu a conversar. Mentalmente. Imagino-nos com facilidade, um em frente ao outro, nas mais variadas situações. Imagino o que me perguntas, o que me questionas, o tanto que me questionas, e imagino a minha resposta, formulo-a e reformulo-a, escolho as palavras, risco aqui e sarrabisco acolá, até encontrar a forma mais satisfatória e mais verdadeira de te responder.
Por vezes é com comTigo que dialogo, directamente, sem intermediários, o que torna as coisas infinitamente mais simples porque sei que entre nós não há equívocos. Pelo menos de Ti para mim, porque em sentido oposto nada há mais que uma confiança, por vezes cega, outras mais (es)forçada, mais desejada que efectiva. Mas como Tu me conheces bem, sei que não adianta de nada por-me a adoçar a realidade, ou a forma como vejo a realidade, ou a forma como sinto a realidade, e limito-me a despejar-Te os meus anseios, os meus receios e as minhas dúvidas e esperar que Tu me resgates de mim.
Mas não é apenas comTigo que eu tenho as minhas conversas imaginárias. é também com aqueles que me acompanham, ou deixaram de acompanhar. É também com aqueles cujas conversas foram interrompidas pela vida, com quem tive gestos mal interpretados, atitudes menos correctas, e por isso me aparecem a pedir-me justificação. E imagino-nos sentados, a conversar, calmamente, a trocar motivos, a trocar desculpas, e a ficarmos bem um com o outro. Imagino mesmo os nossos diálogos, ponto por ponto, escuto as suas argumentações e apresento as minhas, reformulo as suas argumentações com outras hipóteses, outros caminhos, e reajusto as minhas, concluo muitas vezes que fui amargo de mais, ou tolerante de menos, e corrijo a minha postura, e prometo-me que, agora que tudo está esclarecido, não voltarei a cometer o mesmo erro.
Fui aprendendo que esta é uma boa forma, muitas vezes inconsciente, de me medir com o outro. De me corrigir, de tentar perceber, de tentar incorporar de alguma forma todos os mal entendidos, que apesar de frequentemente serem fruto de minudências, quando acumuladas correm o risco de deixar lastro e inquinar amizades. São também uma boa forma de antecipar razões e motivos e preparar discursos que possam ser coerentes com essas razões e motivos. Antecipando o choque do confronto, preparo-me melhor para os golpes e, quando surge a necessidade de pedir desculpa, faço-o com muito maior naturalidade porque essa necessidade já encontrou lugar em mim, já partiu de mim, não é tanto uma imposição alheia.
Também por isso, muitas vezes ofereço esses diálogos interiores como confissão. Não poderia ser de outra maneira. A minha culpa advém do confronto entre o que sou e o que sou chamado a ser, entre o que penso que sou e efectivamente sou, entre o que gostaria de ser e de fazer e de dizer e sentir e a minha repercussão efectiva nos que me rodeiam. Se alguma destas coisas falha - e falha muitas vezes! - e se eu tenho consciência dessa falha - e tenho-a muitas vezes! - nada mias me resta senão pedir desculpa e avançar. Interiormente, vou fazendo-o. Olhos nos olhos, vou tentando encontrar a melhor oportunidade para o fazer. E nem sempre o consigo.

20150408



Esta semana tive uma daquelas conversas deliciosas com um dos meus filhos, desta vez acerca da fé, da superstição e da importância de cada um fazer o seu próprio caminho de busca e discernimento. Por vezes ainda deixo que o medo me atrapalhe o amor. Por vezes, ainda caio na tentação de lhes definir o caminho, na perfeição, sem qualquer falha, limitando a sua possibilidade de errar, de cair e de se magoar. Por outro lado, utilizo algumas vezes a expressão "apanhar cacos" quando me quero referir ao nosso papel na vida daqueles que amamos. Pretendo com essa expressão referir-me à necessidade de os deixar ir, de os deixar escolher, dedicando-lhes sempre um olhar atento para evitar males maiores, deixando-os lidar com os males menores, fazendo-lhes sentir que estamos sempre disponíveis para apanhar os cacos e juntá-los quando as coisas não correm bem.

Recordo, com muita ternura, alguém que me retorquia, com alguma raiva, por entre lágrimas, que o que não quer é ter que apanhar cacos, que quer que aqueles que ama tanto permaneçam inteiros, intactos, felizes. Pois... nada nos dói mais que a dor daqueles que amamos. Na maioria das vezes nós até podemos bem com os nossos próprios cacos. Recolhemo-nos dos olhares - mesmo dos que nos amam! - lambemos feridas, sacudimos o pó da roupa, e seguimos em frente, sabendo nós e Deus como, e em que condições! Agora, lidar com uma dor que, não sendo nossa, se torna nossa por amor, se torna amplificada por amor, se torna insuportável por amor, é exigir o impossível! É exigir o milagre!

Por vezes penso que no amor só devia valer fechar os olhos e deixar fluir. Permitir que cada momento valesse apenas por cada momento, esquecendo histórias de vida, esquecendo percursos, esquecendo ontens e amanhãs, entregando-nos num permanente agora. Mas onde ficaríamos nós no meio de tanto amor? Numa permanente exaltação dos sentidos, num sucessivo momento zen, sem qualquer ligação com a realidade, sem qualquer ligação com o o mundo à nossa volta, sem qualquer ligação com a vida, sem qualquer vida, sem viver. Penso sempre em Pedro que, face à visão de Moisés, Elias e Jesus, se apressa a desejar construir uma cabana para os quatro e leva uma sarabanda de Jesus por causa disso.

Nessa conversa que tive esta semana, às tantas questionaram-me como é que sabia se Jesus era verdadeiramente Deus, como é que sabia que não era mais um profeta que eles seguiriam com gosto, com admiração, mas apenas mais um profeta, como Gandhi, ou Madre Teresa de Calcutá, ou Mandela. Poderia ter-lhes dado a minha resposta, mas teria sido sempre a minha resposta, fruto do meu percurso pessoal, da minha reflexão pessoal, do meu discernimento pessoal. E o que eu desejo é que cada um faça o seu próprio processo de discernimento e encontre as suas próprias respostas. Claro que uma tarefa dessas não é para agora, nem sequer é para amanhã. Claro que isso não os libertará das quedas, nãos os impedirá de dar as cabeçadas que irão dar, não limitará em nada a sua dor que se multiplicará em minha dor. Claro que isso em nada limitará a tarefa de ter que apanhar e juntar os cacos daqueles a quem tanto amamos! Mas a alternativa é impedi-los de viver, é tirar-lhes vida.
E tirar vida, qualquer que seja a boa intenção, não é um ato de amor.

20150406


Lembrei-me logo dela. Com um sorriso. Lembrei-me de muitos, ontem, ao longo de toda a manhã, enquanto carregava a cruz, literalmente, de casa em casa, literalmente, testemunhando a alegria espelhada nos olhares dos que acolhem o ressuscitado em suas casas, pelo menos neste dia, no dia do ressuscitado.

Lembrei-me do seu choque quando viu, finalmente, as marcas da idade representadas naquela fotografia. Passada a ilusória certeza que estava a brincar, percebi que não fingia, percebi que provavelmente não enfrentaria o espelho, todos os dias, sem antes, todos os dias, aplicar na sua cara toda a camada de cremes e retardadores e embelezadores - digo de cor porque não faço a mínima ideia do que as mulheres usam - percebi que acredita, vãmente, ilusoriamente, irrisoriamente, que é possível adiar a idade.

Lembrei-me do que me dissera quando lhe sugeri a cruz: "eu e a cruz temos uma má relação. Já tive a minha dose de cruz, não quero outra." Sugeri-lhe que, algures ao longo do tempo que nos restava, se sentasse junto àquela cruz - bela, por sinal! - e deixasse que ela lhe falasse. Pensava que lhe tivesse caído em saco roto até que, dias mais tarde, disse-me, quase sussurando "fiz o que me disseste".

Lembrei-me do que dissera à minha mais-que-tudo quando a conheceu "espero que faças dele um homem", assim como quem se confessa, como quem admite a sua impotência, como quem passa um fardo que era seu enquanto lava as mãos. Aquele "espero que faças dele um homem" nunca deixou de ecoar, nunca deixou de tentar encontrar o seu caminho, nunca deixou de perseverar, de ficar à espera, de espreitar um dos tantos momentos de fragilidade, de impotência, para fazer o seu caminho. Provavelmente, ontem, quando estivemos juntos, se lho tentasse recordar, diria que aquelas não são, nunca foram, palavras suas. Espero que por não as reconhecer, agora, como suas. Espero que por não me reconhecer, agora, como destinatário delas.

Lembrei-me do ano passado. Que quando chegáramos à sua casa, provavelmente a mais pobre desta paupérrima zona de São Pedro que nos acolhe, encontrámos tudo menos a alegria. Ela veio ao nosso encontro, a correr, não fora esquecermo-nos de si, e pediu-nos para entrar. Ele, sem se poder levantar, babava-se a cada aleluia por nós proclamado, chorava a cada aleluia por nós proclamado, gemia em surdina a cada aleluia por nós proclamado, provocando, em nós, os que proclamávamos a Ressurreição, os que levávamos a notícia da Ressurreição, o incómodo de nos depararmos com a alegria oculta, a alegria invisível, a alegria que tem que ser muito interior, muito anterior ao conhecimento da dor, à permanência do sofrimento. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que aquele casal, naquela pequeníssima casa, acolha Jesus. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que, aquele casal, naquela pequeníssima casa, reconheça Aquele que com eles habita todos os dias. Talvez, em todo o ano, aquele seja o único momento em que, naquele casal, naquela pequeníssima casa, tenhamos a oportunidade de O ver, efectivamente, feito vida, feito encontro, feito ressurreição.

Lembrei-me de muita vida vivida enquanto andava, ontem, ao longo de toda a manhã, enquanto carregava a cruz, literalmente, de casa em casa, literalmente, testemunhando a alegria e o sofrimento espelhados nos olhares dos que acolhem o ressuscitado em suas casas, pelo menos neste dia, no dia do ressuscitado. E fui dando graças. Pela minha idade, que, entre outras coisas, me permite carregar a cruz com a consciência de quem carrego, de casa em casa; pela cruz, que carrego nas minhas mãos e que entrego, a um e a outro, calmamente, solenemente, de casa em casa; pelo meu pai, que, não tendo muito, me confiou a quem fez de mim um homem; por aquelas casas que nos abriam as portas apesar da miséria evidente, pelos que nelas nos acolhiam, e me recordam, todos os anos, que é para eles que Jesus Ressuscitou.
E por Jesus, que faz de cada momento da minha vida uma oportunidade para O encontrar, para me dar testemunho da Sua presença.

20150404


Amanhã estaremos de serviço. Todos. Eu e os meus filhos no compasso, a minha-mais-que-tudo e a Rita a preparar a paparoca para os que vão ao compasso, que nem só de pão vive o homem, mas também. Ainda ontem, na adoração da cruz, estávamos lá todos, e logo, na Missa de Aleluia, estaremos todos. Sem ser necessário dizer-lhes para ir. Eles sabem que devem ir. Eles sabem que é importante ir. Eles sentem que o lugar deles é também lá, no meio da comunidade, em oração.

Não escondo que é motivo de orgulho. Todos os meus filhos são cidadãos comprometidos com o outro, todos eles estão envolvidos em actividades de serviço, todos eles sabem o que é abdicar de si em favor de alguém. Esse modo de vida nunca lhes foi exigido, nem sequer imposto. Claro que, em determinadas fases das suas vidas, tivemos que nos sentar e conversar e alertar que somos mais que apenas nós. Nada que eles não soubessem, nada que eles não tivessem vivido desde miúdos com as Colónias, com o Livramento, com Ramalde. No entanto, todos conhecemos famílias cujos pais são empenhados, que valorizam tanto quanto nós o serviço ao outro, e no entanto os filhos escolhem outra via. Por muito que nós, pais, nos esforcemos, a partir de determinada altura não depende de nós os caminhos que os nossos filhos escolhem percorrer. E os meus filhos em nada são diferentes dos outros filhos.

O nosso pároco teve e tem na sua educação um papel fundamental. Chegou a uma paróquia que tinha sido destroçada durante anos a fio por um mau pároco. Sobre escombros conseguiu, à custa de muito trabalho, à custa de muito caminho percorrido, à custa de muita entrega, erguer uma nova comunidade, que hoje se encontra tão unida quanto uma comunidade eclesial consegue estar unida, com as tricas típicas de uma comunidade deste tipo. E os meus filhos encontraram nesta comunidade o lugar para serem eles próprios, para serem motores, para serem testemunho. Todos estão envolvidos na paróquia, seja no grupo de jovens, seja no Fé e Luz, nos escuteiros, na catequese, no coro... Estou plenamente convencido que o meu pároco teve - tem - um papel fundamental na educação cristã dos meus filhos. Não tivessem eles encontrado alguém - que não nós - que confiasse neles, em quem eles confiassem, que os guiasse na vivência da fé em comunidade, e todos os nossos esforços teriam sido pouco menos que inglórios.

Há uns anos, uma das minhas discussões - que depois larguei - era a da minha responsabilidade enquanto cristão. Sempre defendi que, em matéria de evangelização, a minha responsabilidade é tão grande quanto a do Papa. E isso sempre chocou as pessoas. E eu explicava: para os meus filhos, para aqueles com quem fazia catequese, para os meus jovens, o que eu dizia tinha muito mais peso que aquilo que o Papa dizia, e o meu testemunho de cristão tinha neles uma repercussão muito maior. Nunca entenderam o que eu defendia - pensavam que eu me punha em bicos de pés - e acabei por largar esta discussão. No entanto, hoje tenho cada vez mais certeza que é por aí. O papel do meu pároco na educação cristã dos meus filhos é muito maior que o do Papa. Um bom pároco é fundamental na Igreja. Tanto quanto um bom bispo. Tanto quanto um bom Papa. Tanto quanto cada um de nós. A Igreja é feita de pessoas. Que se deixam contagiar, que se deixam envolver, que se sentem cativados por um Deus que nos mexe por dentro, que nos molda, que nos trabalha, que nos faz desejar sermos melhores. E tudo isto é muito olhos nos olhos, é muito terra firme, é muito pés no chão, muito sentimento de comunidade, que não estamos sós, que não vivemos sós mas que, em Cristo, somos parte de algo muito maior que cada um de nós. E por isso cada um de nós tem um papel muito importante a desempenhar.

Não somos contagiados por títulos. Somos contagiados por vidas. Vividas. Por testemunhos de vidas. Vividas. Por isso todos somos responsáveis. Em igual medida. A das nossas vidas. Vividas.

20150403


Dizer que tenho saudades de Taizé é uma parvoíce. Basta-me parar, durante algum tempo, para sentir as saudades daquele silêncio, daquele encontro. Aliás, é provável que a minha saudade seja outra. Talvez eu tenha saudade do que sou em Taizé. Do que somos em Taizé. Talvez eu tenha saudade da simplicidade do olhar, da simplicidade dos sentimentos, da simplicidade dos relacionamentos. Talvez eu tenha saudade da forma como nos apresentamos, uns perante os outros, da forma como nos fomos despojando, lentamente, ao longo de vários dias, do que nos separa, do que nos limita, e nos fomos entregando, lentamente, ao longo de vários dias, quase sem reservas. Talvez eu tenha saudade dos olhares, do percurso dos olhares, do respeito dos olhares, do encontro dos olhares, francos, abertos, leais, por vezes pejados de lágrimas, por vezes animados pelos sorrisos, e pelas gargalhadas, mas sempre, sempre. carregados de vida. Talvez eu tenha saudade da forma como conseguimos articular o eu com o nós, do tempo que tivemos para o nosso próprio e íntimo encontro, do tempo que tivemos para o nosso mútuo e íntimo encontro, do tempo que tivemos para as conversas, para as partilhas, para as palavras, para a ausência de palavras, porque desnecessárias. Talvez eu tenha saudades de conhecer como conheci, de aprender como aprendi, de crescer como cresci, na melhor forma de conhecer, aprender e crescer que é ouvindo os outros, escutando os outros, bebendo dos outros a sua sabedoria, a sua forma de vida, a sua experiência tornada sabedoria, e partilhando a minha vida, e descobrindo que também ela pode albergar alguma centelha de sabedoria para os outros. Talvez eu tenha saudades do nós, da simplicidade do nós, da descomplexidade do nós, cuja existência se sobrepõe com naturalidade à mera soma dos eus e é terra de cultivo, que aramos juntos, que semeamos juntos, que regamos juntos, que vimos crescer juntos e juntos colhemos. E colheremos ainda!

Sei - sabemos todos - que a vida é aqui que acontece. Todos os dias. A todas as horas. A todo o momento.

Mas tenho saudades de nós em Taizé.

O lugar comum é inevitável!

Estávamos em mais uma acção de formação do ER. São sempre muito úteis, até porque no dia a dia a exigência é tanta e tão absorvente que é raro podermos sentar, olhar-nos e conversarmos, com calma. Ainda para mais, naquele dia e pela primeira vez, estavam alguns dos voluntários que todos os dias nos ajudam a construir sonhos.  A determinada altura lá vem o tema das dificuldades que sentimos, todos os dias, que são mais ou menos as de todos os que trabalham com crianças: resistência ao estudo, alguma falta de respeito pelos educadores, dificuldades na postura em sala de aula, a sensação que elas pensam que somos criados delas. E eis que lá vem o lugar comum: pois, são crianças dos bairros, sem regras, sem ninguém que lhes diga como devem ser e fazer e se comportar... são uns pobres coitados que importa salvar (claro que não se diz isto com as palavras todas, mas é isto o que se quer dizer).

Tenho a graça de trabalhar todos os dias com miúdos das franjas opostas da sociedade. E posso afiançar que, no que diz respeito a necessidade de "salvação", não diferem assim tanto entre si. Muito menos no que diz respeito à necessidade de os salvar dos pais. Aliás, não temos, no ER, assim tantos casos de crianças invisíveis, o que já não posso garantir que não aconteça no pólo oposto.

Nos bairros, para o bem e para o mal, os filhos sentem que têm pais, ou tios, ou avós, ou primos, ou vizinhos que tomam o seu lugar - mesmo quando, como acontece bastante, alguns destes estão na cadeia. São pais que ralham muito, que por vezes batem muito, a quem, mal desperta a adolescência, os filhos não respeitam muito, mas são pais presentes, constantemente presentes, até porque a maioria deles não tem outra ocupação que não seja ir levar o filho a escola e ir buscar o filho à escola e ir chatear o professor do filho na escola. Não é raro naquele meio encontrarmos pais para quem os filhos são tudo e estragam-nos de mimos - chocolates, batatas fritas, refrigerantes, gomas, e tudo o que faz mal são uma constante nos miúdos. Mimam da pior maneira, mas mimam como sabem.

Ao longo destes anos tenho-me deparado com filhos invisíveis, mas raramente deste lado da sociedade. Conheço filhos para quem a ama ou a criada ou a avó é muito mais mãe e pai que a mãe ou o pai. Conheço filhos que nunca fazem as refeições com os pais, que nunca passam férias com os pais - ainda que estejam na mesma casa - para quem os pais são os que lhes dão o dinheiro para irem para a noite e de férias para outros países e quem lhes garantirá o emprego no futuro, mas que não são pais. E conheço pais, e não são poucos, para quem o que importa verdadeiramente é a nota na pauta que, uma vez conquistada, serve de carta de alforria para o(a) filho(a) fazer o que lhe dá na real gana, "tens o 20, fazes o que queres" o que, convenhamos, para quem tem pouco mais de 15 anos e os bolsos cheios, é pouco menos que criminoso. Quais dos filhos precisam de maior acompanhamento? Quais dos pais precisam de maior acompanhamento? E quais dos pais e dos filhos estão mais abertos a receber acompanhamento?

Quando fui a Moçambique apercebi-me que. na essência, todos somos iguaizinhos. E quanto mais perto da infância, mais iguais somos. As necessidades de carinho, de afecto, de atenção, são, na essência, as mesmas, qualquer que seja o horizonte que têm diante dos olhos. O que muda, isso sim, são as necessidades que garantam a subsistência. Porque enquanto uns têm o futuro mais ou menos garantido, outros têm a incógnita permanente como realidade. E, isso sim, faz toda a diferença.

20150401


Acabo de ver o quarto episódio da terceira série do House of Cards. Durante todo o episódio a questão de Deus, do sacrifício de Jacob, da entrega de Abraão do seu próprio filho para que ele seja sacrificado e o paralelismo com o próprio Deus que entrega o Seu próprio Filho para que, por amor, seja sacrificado, está latente. E termina com uma cena forte, como é típico desta série. Não é isso que me traz aqui.

A determinada altura, Francis diz que percebe bem o Deus do Antigo Testamento, com o seu poder absoluto, mas não percebe Jesus, que abdica do seu poder absoluto. Não é o único. Custa-nos sempre muito perceber como é que Jesus, que tudo pode, tudo entrega. Por amor.

A questão é que percebemos sempre melhor a linguagem do confronto que a linguagem do amor. A linguagem do confronto dá-nos mais garantias, mais segurança, é mais óbvia, corresponde de forma mais imediata aos nossos instintos de protecção. No instinto do confronto continuamos a ser bichos por excelência, marcamos posições, marcamos territórios, e privilegiamos a pose ameaçadora como garantia de sucesso. Somos instintivamente implacáveis e esperamos que quem nos confronta o seja para connosco. A linguagem do amor desconcerta-nos, desarma-nos, conduz a que contrariemos todos os nossos instintos de protecção e torna-nos mais inseguros, mais dependentes, muito mais imprevisíveis.

Quando era miúdo andava muitas vezes à pancada. Era normal num meio onde tudo é conquistado, onde nada é dado. Marca-se território, ameaça-se, parte-se para o confronto, apanha-se e dá-se, e no final ganha quem fica de pé. Da última vez que tive uma coisa destas - teria cerca de 17 anos - o meu contendor - por acaso visivelmente com mais cabedal que eu - não fez nada, não disse nada, limitou-se a olhar para mim enquanto eu o sacudia, violentamente, provocando a sua reacção. Ao fim de pouco tempo desisti. Não valia a pena. Na altura estava ainda naquela zona de fronteira entre o bairro e a capela e já sabia quem era Jesus e a forma como tinha reagido à condenação. E lembrei-me d'Ele. E desisti. Dei meia volta. Não fazer nada, não dizer nada e, sobretudo, olhar para mim enquanto eu estava de cabeça perdida, tinha-me batido mais forte do que eu alguma vez lhe poderia bater.

É muito isto, o que não percebemos. Percebemos quem se cala porque não pode, percebemos quem se acobarda, percebemos quem é suficientemente realista para saber quando se deve recolher, quando se sente impotente, percebemos quem não tem alternativa. Percebemos a lógica do poder. Não percebemos quem, podendo, escolhe não poder. Não percebemos a lógica da humildade.
Que não tem nada a ver com não poder.
Que não tem nada a ver com realismo.
Que não tem nada a ver com impotência.
Que não tem nada a ver com ser pequeno.
Tem a ver com escolha.
Com escolher ser pequeno.
Para que outros possam, simplesmente, ser.
 

Quem me conhece bem sabe que eu sou um barco com o motor fora de bordo. Que se for deixado à deriva o mais provável é que fique como que encalhado no primeiro sofá que encontrar, a ver o tempo passar, sonhando, como o cavaleiro da triste figura tão bem fazia, com duras batalhas contra moinhos de vento tentando encontrar a sua Dulcineia, que até pode estar a dois passos de si mas permanece inacessível. Em boa verdade, por vezes, nos dias melhores, já duvido que permaneça no sofá, na esperança que a vida já me tenha dado o suficiente para que eu consiga olhar para mim com renovados olhares.

E em matéria de olhar para mim com renovados olhares, no meu registo dos pontos altos deste ano há de estar com certeza o tempo que estive, completamente eu, completamente com o meu Deus, por um período de tempo que não sei ainda definir, na capela do silêncio de Taizé. Nunca tinha estado assim, sem ninguém, completamente sem ninguém, completamente sem tempo, completamente sem espelhos, e com a vantagem de ter sido no final da semana e por isso no final do percurso interior e por isso já sem questões já sem problemas já sem preocupações já sem nada mais que um profundo sentimento de louvor e gratidão por poder estar tão despido, tão eu, diante do meu Deus.

Mas nunca me fio muito em mim, e delicio-me sempre quando, por amor, me tentam baralhar e abanar os alicerces e provocar a confusão, e com isso me desinstalam e me inquietam e me interrogam e me levam a interrogar-me e a perguntar-me pelos meus caminhos, pelos meus projectos, pela minha ânsia de futuro que por vezes está em clara contradição com o meu presente. Se houve uma linha de alguma constância ao longo da minha vida foi esta opção, umas vezes consciente outras nem tanto, por quem, por amor, me desafia. Desafios sempre tive, que se traduziram em escolhas que se foram transformando em percursos que foram definindo o que tem sido a minha vida. Apercebo-me muitas vezes que foi justamente esta minha tendência natural em aceitar os desafios, em escolher as pessoas desafiantes, em ter preferido sempre esses desafios ao ficar comodamente sentado no tão desejado sofá que me fez sair daquele mundo onde os horizontes são tão claramente definidos e definitivos à partida, e sonhar com outros horizontes, e ver outros horizontes, e dar outros horizontes a sonhar e a ver.

Passado o espanto, passado por vezes até um certo resmungar pelo incómodo, passada uma vontade absolutamente natural em mim de permanecer, a minha atitude é sempre de louvor. Por quem se incomoda a incomodar-me, por quem quer e espera algo mais de mim, por quem persiste, por quem me ama e continua a acreditar, ao ponto de me desafiar a ser melhor.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...