Olhos nos olhos, com toda a calma possível, fui dizendo: amigo não tem duas coisas: idade e sexo. Poderia ter acrescentado que também não tem proveniência, se me tivesse ocorrido.

Um dos meus amigos que recordo com mais saudade é o Sr. Vicente. Separava-nos mais de quarenta anos de idade, toda uma vida, e um mundo imenso de imensa sabedoria. Conversávamos bastante e foi dele que fui aprendendo a beber alguma da sabedoria que me esforço ainda hoje, por conservar: saber estar, saber escutar, saber calar. Não era tanto o que ensinava, ou o que dizia, era a sua postura perante os outros, mesmo quando a maioria desses outros o desprezava de forma ostensiva. Foi dele que aprendi, depois de uma violenta discussão em que uma colega nossa foi manifestamente desrespeitosa para com ele: "pode ficar chateada comigo, mas quero que saiba que sempre que precisar de mim, estou disponível." E, passado pouco tempo, foi mesmo preciso, e esteve disponível, sem nunca receber um pedido de desculpas, sem nunca lhe ouvir um ai. A nossa vida foi correndo, cada qual para seu lado, e um dia, num daqueles funerais a que temos que ir, soube que morrera semanas antes. Chorei como um desalmado! Penso nele muitas vezes, recordo as nossas conversas e a sua imensa sabedoria. Gostava imenso dele e gostei muito de saber - a sua filha disse-mo pouco depois de ele morrer - que ele também me tinha em boa conta.

Uma das coisas que ele me ensinou é que a amizade profunda é uma das mais nobres artes de amar, e por isso não escolhe idades. Nem sexo. Nem proveniência. Lembro-me que foi justamente naquele escritório que ouvi pela primeira vez comentários e bocas acerca da escolhas das amizades que eu fazia. Ao longo da minha vida ouvira-os no bairro em relação aos da capela ou na capela em relação aos do bairro mas nunca fizera grande caso disso. Ali, naquele lugar, era diferente. Era o nosso local de trabalho, estava no meio de pessoas adultas - eu era o mais novo, na altura! - e achava muito estranho que adultos comentassem as amizades alheias. No entanto, calejado com as bocas que ouvira desde sempre, nunca prestei grande atenção e prossegui caminho.

Com muita pena minha, ao longo do percurso errático que foi o meu, houve alturas em que deixei que interferissem com as minhas amizades. Ou porque ficavam mal, ou porque eram mal interpretadas por terceiros, ou porque despertavam comentários cheio de más intenções, ou porque... À custa dessas minhas opções, tenho pessoas a quem, por vergonha, não consigo ainda olhar nos olhos quando nos cruzamos, tenho vários pedidos de desculpa que não foram ainda ditos as vezes suficientes para afagar a culpa que ainda sinto, tenho contas irreversivelmente mal acertadas. Apesar de não me orgulhar de tudo o que fiz na vida, não sou nada de desejar voltar atrás para fazer diferente. No entanto, se tal me fosse possível, certamente começaria por aqui.

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