Make it a rule, never, if possible, to lie down at night without being able to say:"I have made one human being at least a little wiser, or a little happier, or at least a little better this day."

É de um filme, curto, que passamos nos Dias de Reflexão do terceiro ciclo. Inspirou-me um bom hábito que, quando tenho ainda a força, a coragem e a lucidez necessárias, tento fazer no final de cada dia. É um pouco como o processo que algumas mulheres têm justamente nessa altura. Também eu me tento desmaquilhar, paulatinamente, olhando-me ao espelho, com outros olhos, deixando que as minhas próprias camadas me vão confrontando à medida que as vou reconhecendo. Sem enfeites, sem efeitos, sem subterfúgios. Não é desmascarar, que isso pressupõe uma outra personalidade que pode ou não ter a ver com a nossa. É mesmo desmaquilhar. Desenfeitar, se é que a palavra existe. Retirar-me a forma como quero que os outros me vejam e permitir-me ver, a mim próprio, olhando-me ao espelho, com o meu próprio olhar, porventura mais cruel, porventura mais atento, mais perspicaz, menos amigo. Por isso, apenas fico satisfeito quando constato que o que vejo nessa altura coincide com o que fui percepcionando ao longo do dia.

No outro dia, quando o vi, já eu me tinha desmaquilhado. Estava no meio de tantos outros, mas foi o único que me chamou a atenção. Sorri ao vê-lo porque sabia que dali apenas vêm coisas boas. Estive muito tempo à sua espera, pacientemente, com uma paciência que até me desconhecia mas que aprendi quando aprendi a confiar. A não correr. A saber esperar. A confiar - confiar é a palavra certa! - sobretudo, que Deus coloca no nosso caminho aqueles que nos são mais importantes em cada momento. Pouco antes tinha passado por mim sem qualquer sinal de sequer me ter reconhecido, o que é sempre estranho para mim. Mas agora ali estava, sorridente, diante dos meus olhos. Abri-o, igualmente sorridente, expectante. E li-o.

Sempre que escrevo as palavras saem-me em catadupa. Já nos exames da faculdade era assim: pegava na caneta e escrevia sem parar, quase sem respirar, quase sem pensar, descobrindo o raciocínio à medida que o ia explanando, raramente rasurando, raramente recuando, como se as coisas apenas fizessem sentido à medida em que as ia colocando no papel. Todo o trabalho que dizia respeito ao conhecimento da disciplina havia sido feito antes e o que ia escrevendo era resultado já de um processo de interiorização. Quando, no final de cada exame, pousava a caneta, estava exausto, esgotado, e nada mais me conseguia sair. Por isso nunca reli uma resposta, nunca a corrigi posteriormente, nunca senti que poderia ter escrito outra coisa ou de outra maneira. Chegava ao fim, colocava o ponto final na última fase, e entregava-o, invariavelmente satisfeito com o que tinha aprendido com aquela prova. O que sempre dissera aos meus filhos, que eles estudavam para saber e que as notas viriam como consequência, era real em mim. Sempre me preocupei muito mais em adquirir sabedoria que boas notas e elas sempre vieram por acréscimo.

Já dizia o fabuloso Hannibal Lecter que desejamos sempre o que não temos. Quando leio algo bem escrito, com o devido peso dado a cada palavra, quando cada palavra tem o seu sentido próprio, a ponto de apenas poder ser aquela e não outra, quando consigo ler a profundidade aliada à simplicidade e à beleza, quando não consigo distinguir umas das outras num texto que exprime uma partilha profunda, sinto-me pequenino, pequenino, como gosto de me sentir. Como se um imenso tsunami me arrastasse para outras paragens, para outras paisagens, até então desconhecidas. Aquele texto, que me apanhou já desmaquilhado, vai andar comigo durante algum tempo. Para poder voltar a ser lido e relido e saboreado e degustado, lentamente, saborosamente, como um bom Porto, como um bom jazz, como tudo aquilo com que vale a pena ganhar o tempo porque me torna mais sábio e imensamente mais rico.

Naquela noite, com o envio daquele email, houve alguém que se deitou com a certeza que me fez mais sábio, mais feliz e, quem sabe, um pouco melhor.

De forma simples, profunda e clara. Como a água.

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