A determinada altura, depois de me falar do tanto que a magoava e do medo, perceptível ainda que silenciado, que sentia por isso, disse-lhe que um dos motivos porque sou cristão é porque Jesus me permite recomeçar sempre, qualquer que seja a minha situação passada e presente. Acredito que, para Jesus, o meu sonho de futuro é sempre mais importante para me catapultar do presente que a minha recordação do passado. À Samaritana, à pecadora, ao filho pródigo, a Zaqueu, a tantos outros - acredito que mesmo àqueles que tudo fizeram para O crucificar - Jesus nunca pergunta de onde veio nem atira à cara pelo que andaram a fazer. A sua palavra sempre foi no sentido do "para onde vais" e não do "de onde vens". O por nós tão utilizado "eu bem te avisei" é isso mesmo: por nós utilizado. Apenas por nós.

Emocionam-me sempre mais aqueles que, apesar da pancada, encontram sempre forma de se levantarem. Quando converso com eles, quando os leio, quando conheço algo da sua história de vida, pergunto-me sempre como é possível que alguém que levou tanta bofetada da vida consegue ainda sorrir, consegue ainda acreditar, consegue ainda ser para os outros. Ainda ontem, numa deliciosa conversa com uma  - para mim, sempre - miúda a quem dei catequese há bastantes anos, ela contava-me como sofreram lá em casa com uma situação de cancro e como todos se uniram para a conseguir ultrapassar. "Ainda ando à procura de me reatar com Deus.", disse-me.

A lógica do medo tolhe-nos a vida. Ainda que não tenhamos disso consciência. O medo de sofrer, o medo de perder, o medo de se perder por entre um qualquer processo de dor, leva-nos a viver com reservas. Como se, de alguma forma, não nos pudéssemos dar ao luxo de nos entregarmos à vida de corpo e alma porque tem que ficar alguma coisa na eventualidade de as coisas correrem mal. É esse o exacto ponto em que deixamos de viver plenamente. Quando a lógica do medo se sobrepõe à lógica do amor, mesmo nos momentos aparentemente menos relevantes, começamos a soçobrar, muitas vezes sem que nos apercebamos disso, e a viver com sinal menos.

Claro que eu falo do alto da burra. Recomecei muitas vezes, precisei muitas vezes de recomeçar, tive muitas vezes necessidade de fazer um reset, com tudo e com todos, desejei muitas vezes viver num daqueles lugares onde podemos ser verdadeiramente anónimos, onde ninguém nos conhece, onde ninguém nos pode apontar dedo algum. Mas, de todas essas vezes, a perda era de mim para mim, era de mim que me perdera, era a mim quem precisava reencontrar e sempre tive quem me substituísse nesse processo, quem me estendesse a mão e me lavasse as feridas.

Marcou-me muito um domingo de Páscoa em que andei no compasso no Hospital de São João. Ali, por entre os mais frágeis, a cruz passava junto à maior das fragilidades: um pai acabara de perder o seu filho, que lhe morrera nos braços.

Como se sobrevive a isso?

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