Na Balada de Hill Street, depois do plenário inicial onde o sargento dava a ordem do dia, ele acabava dizendo sempre algo deste tipo: "agora esqueçam o que eu disse e tenham cuidado lá fora." Não sei bem porquê, mas isso ficou-me. Achava curioso que, depois do trabalho que ele tinha tido a preparar a reunião, acabava sempre por desvalorizar o que tinha feito. Quando finalmente percebi porquê, passei a utilizá-lo nas minhas catequeses: "agora esqueçam o que aqui foi dito e vivam, porque a vida acontece lá fora."

Aquilo que é verdadeiramente importante na vida não tem que ser permanentemente recordado. Eu não digo aos meus filhos todos os dias que os amo e que são o mais importante para mim. Nem o conseguiria fazer, porque mal esboço algo nesse sentido eles olham-me de soslaio e preparam-se imediatamente para me dar um grande tanga. Eles também não mo dizem, mesmo quando o sentem à flor da pele justamente por isso, porque o transbordam de uma forma tão evidente que não precisam de o dizer. Nós sabemos que somos uns dos outros, que nos incarnamos uns nos outros, que nos incorporamos uns nos outros, para os bens e para os males desta vida, por isso estar permanentemente a dizê-lo seria uma redundância. E quando, apesar de tudo, o dizemos, corresponde mais a uma necessidade de quem o diz que de quem o ouve.

É como dizer "obrigado" a um amigo depois de uma experiência profunda de partilha, depois de se ter estado connosco e para nós no tempo e na forma que precisávamos que estivesse. Nunca é uma necessidade de quem escuta, mas é-o para quem diz, não como forma de agradecimento ou de declaração de dívida, mas como um transbordar da alma, como se, depois dessa conversa, dessa partilha, desse tempo que foi apenas nosso, nada mais nos coubesse no peito. A gratidão profunda, como o amor profundo, tem imensa dificuldade em ser traduzida por palavras, quem ficam sempre, sempre, aquém do imenso que acontece dentro de nós. Por isso, porque transborda, quem o vai ouvir sabe-o sempre antes. E protesta sempre!

Em condições difíceis para quem o dizia, ouvi ontem falar do Samaritano. Dizia-me acreditar que os samaritanos desta vida não são particularmente escolhidos por Deus mas são particularmente atentos ao que Deus pede por intermédio das pessoas e das situações que Ele vai colocando no caminho. Quando me apanhei sozinho, vindo do hospital, isso ecoava ainda na minha cabeça. E comparava-o com as atitudes típicas da época de Jesus, em que cada passo dado era comparado com as escrituras. E que com isso a vida ficava cheia de regras mas vazia de vida. E percebia, mais uma vez, que mais importante que estar sempre a olhar para a Bíblia é estar atento ao que se passa dentro e fora de nós, ao que passa, ao que permanece, ao que nos pede, ainda que sem o dizer, que permaneçamos com ele. E depois, só depois, talvez no final do dia, talvez no recanto mais profundo de nós mesmos, perguntarmo-nos se o que sentimos, fizemos e dissemos esteve de acordo com o que nos é pedido. E, perante a inevitável conclusão que estamos ainda muito aquém, esqueçamos tudo, excepto o compromisso e a esperança que amanhã poderemos ser melhores.

Porque a vida, efectivamente, acontece lá fora.

Comentários

Mensagens populares deste blogue