20150331


Recordei-me imediatamente do que lhe tinha dito - e a outros que estavam connosco - naquela sereníssima capela de Santiago, aberta apenas para nós: "quando ouvirem alguém dizer que a juventude está perdida, olhem-lhe para os pés, e verificarão que não tem calçadas as botas de caminhar mas sapatos lustrosos ou pantufas. Se tivessem as botas calçadas, e gastas, e sujas, como nós temos, teriam caminhado convosco e admirar-vos-iam. Como nós vos admiramos."

A recordação veio com um desabafo seu enquanto entrávamos na Basílica de São Pedro, no Vaticano: "É esquisito, Zé, mas para mim sinto muito mais Igreja em Taizé que aqui. Isto é turismo." Sorrimos ambos porque nos caminhamos há tempo suficiente para percebermos que estávamos em plena sintonia.

Este rol de alunos já me deixa saudade e o ano ainda não terminou. Foi com eles que consolidamos muitas das caminhadas que iniciáramos no ano anterior ao da sua participação em bloco. Foram eles que deram um impulso decisivo ao ComTigo com a sua presença, a sua alegria, a sua determinação; foram eles que deram um outro cariz aos caminhos de Santiago, com a sua disponibilidade para mesclar caminho e oração: foi com eles que fui a Taizé, que fui ao Rumos, que passei fins de semana, que cantei nas intermináveis viagens de camioneta que fizemos juntos, foi até com eles que passei as noites do 24 horas e da Via Sacra, que fui à viagem de finalistas. Muitos deles tratam-me por Zé, apenas por Zé, e não por professor - que eu detesto, aliás, "eu não sou professor"- sem que daí algumas vez tenha vindo a mínima falta de respeito, mas antes  o reconhecimento de uma caminhada que foi sendo feita num clima de permanente construção, de mútua entrega e constante descoberta.

É um privilégio enorme poder viver uma vida assim, com pessoas assim, numa troca constante de experiências de vida, permitindo-nos aprender uns com os outros. Depois de tantos anos à procura, depois de tanto tempo, não diria que perdido porque tudo o que fiz e fui sendo contribuiu para quem sou hoje, mas à toa, sem saber muito bem ao que vim, poder ter uma vida assim, cheia, em caminho permanente, em construção permanente, é um verdadeiro luxo. Que, espero, se prolongue por muito tempo!


20150330



Mexeu comigo e apontei: "Nos céus de França, a descida para a morte durou oito minutos. 480 segundos. Em que é que se pensa neste tempo? Quem abraçamos? Por quem gritamos? Gritamos?" Foi escrito por Bernardo Ferrão, no Expresso Curto do dia 25 e, inevitavelmente, levou-me a fazer-me as mesmas perguntas. Em que pensaria eu nos meus últimos 480 segundos de vida? Em quem pensaria? Quem abraçaria, física ou espiritualmente? Gritaria? Confiaria? Rezaria?

Em alguns dos Dias de Reflexão do secundário perguntamos o que sentiríamos se, juntamente com a data de nascimento do cartão de cidadão estivesse também a data de óbito. Tal como as perguntas colocadas pelo jornalista, também esta é pura retórica. Não é para responder. É para fazer pensar. No que temos de mais importante, no que somos de mais importante, quem temos de mais importante, para quem somos mais importantes. Serve apenas para nos questionarmos porque corremos tanto, em nome de quê corremos tanto, onde queremos nós chegar com tanta correria. E se essa tanta correria vale a pena. Tem apenas a utilidade de colocarmos a nossa própria vida em perspectiva. As conclusões, na medida em que nos é possível tirarmos conclusões, são apenas nossas. E hipotéticas. Meramente hipotéticas. Porque nos é inimaginável viver uma situação dessas.

Creio que para quem é pai, ou mãe, ou avó ou avô, ou tio ou tia, ou irmão ou irmã, ou filho ou filha, o primeiro pensamento irá para aqueles que dependem de nós. Qualquer que seja a sua idade. Qualquer que seja a nossa idade. Qualquer que seja a nossa relação circunstancial com a nossa família mais chegada, mais próxima, mais forte, creio que seriam esses os destinatários primeiros dos nossos pensamentos. E preocupações. Creio que naquela altura, mesmo naquela altura, pensaríamos como irão sobreviver aqueles que dependem de nós. Que marcas lhes deixaremos. Como sobreviverão à perda de nós. Que memórias permanecerão. E pediria a Deus a Sua protecção para eles. Depois, se houvesse tempo, pensaríamos nos que amamos de borla, nos que nos amam de borla, sem qualquer outra dependência que não seja a do puro gozo da companhia, a do puro amor: os nossos amigos. Talvez não pensássemos já como sobreviverão sem nós, mas com sorte recordaríamos alguns dos sorrisos, algumas das caminhadas, algumas das conversas, algumas das imensas partilhas que vivemos juntos. E louvaria a Deus por eles. Finalmente, gostaria que o último pensamento, o meu último desejo, aquele que aconteceria mesmo antes do derradeiro embate, fosse o de Jesus: Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito.

Hoje, aqui e agora, é em todos eles que eu penso.
Porque tenho tempo.
Mas também porque sei bem quem me é importante.


Há coisas que consigo fazer e coisas que não consigo fazer. Como todos nós, aliás. A esta verdade lapaliciana não cheguei por puro acaso, não é algo que tenha sido claro e evidente para mim desde sempre, mas vem vindo com o tempo, vem chegando, vem-se instalando, e, sobretudo, vem contribuindo para que eu possa ir sendo progressivamente mais consciente de mim e, por isso, progressivamente mais sereno. E feliz.

Eu não sei não cuidar de quem amo. Não sei fazer de conta, não sei ficar indiferente, sou péssimo no jogo das aparências, provavelmente porque as acho completamente inúteis. Quando amo, quando gosto muito - sim, eu sei que são coisas completamente diferentes, mas para o caso isso não é importante - deixo, com facilidade, que transpareça o meu olhar, na forma como falo, na forma como ajo, indiferente ao que possam pensar ou até ao que daí possa advir. Para mim, a questão é muito simples: se não entendem, que entendam. Não, não acho que a mulher de César precise de parecer séria. Para mim, basta que o seja. O resto são interpretações alheias que não posso nem quero controlar.

Pois. Mas isso sou eu. E eu não sou a medida de coisa nenhuma. Às vezes sinto-me como que entalado entre a minha forma de gostar, de amar, e o respeito para com a forma como os outros amam e gostam. E, após alguma luta interior, que sempre acontece e nem sempre é fácil, apercebo-me que amar implica também respeitar a individualidade de cada um, implica também dar espaço para que os outros possam ser e amar e gostar na inteira liberdade de ser amar e gostar à sua maneira. Por mim, agarrava, abraçava, beijava, estava sempre. Mas não é apenas de mim que se trata.

Normalmente lido bem com a ausência física. Normalmente não lido bem com a ausência interior. Que, em boa verdade, não existe. Nunca consegui impor-me a ausência de alguém, no que constitui, ao que me parece, um paradoxo: quanto mais tento forçar a sua ausência mais presente se torna, como os ateus que se esforçam tanto por afirmar a inexistência de Deus que acabam por O tornar mais presente nas suas vidas que muitos que se dizem crentes. E eu, apesar de gostar muito de paradoxos, porque me desafiam a perceber melhor, tenho dificuldade em fingir presenças, em fingir ausências, particularmente quando já fizeram tanto caminho cá por dentro que têm já o seu espaço reservado. E único. E indelével.

Mas não me posso esquecer que amar, gostar muito, implica estar atento, implica cuidar, cuidar muito. E que por vezes as coisas não são tão simples nem tão claras como as vejo, ou como gostaria que fossem vistas. Lá está: tenho muitas vezes que me recordar que eu não sou a medida de coisa nenhuma e que há circunstâncias próprias, há limites próprios, há espaços que são próprios e únicos e que importa preservar, por respeito, por amor. E que respeitar esses espaços, essa reserva de individualidade, é fundamental para amar, para gostar, como se deve amar, como se deve gostar. Apesar da dificuldade. Que faz parte.

20150329



Ao longo da semana que passou aprendi muitas coisas. Estive em lugares onde nunca tinha estado, cidades lindíssimas onde, a cada dobrar de esquina surge algo de novo, nunca antes por mim visto. Adorei Malta, para a qual não levava expectativas nenhumas - ai, a vantagem de não se ter expectativas! - e, como sempre, adorei rever Roma, em relação à qual tinha toda a espécie de expectativas - ai, a alegria da confirmação das expectativas! Viajar é uma daquelas coisas que quero fazer ainda em tempo útil, ou seja, antes de ter o andarilho como companhia. Calcorrear caminhos novos ou velhos, no campo ou nas cidades, observando sozinho ou contactando com pessoas de outras culturas e aprender com elas, poder descobrir novos sabores - o que me causa sempre profunda estranheza no princípio - é, mais que um sonho, um projecto adiado há algum tempo, mas espero que não por muito mais tempo.

O curioso é que foi uma viagem que se seguiu a uma outra. E ainda mais curioso é que as duas não tiveram nada em comum. Em Taizé, apesar de ser num outro país, a viagem foi muito mais interior, muito mais minha, muito mais com os outros e, nesse sentido, muito mais marcante. Esta foi muito mais exterior, muito mais à superfície. Apesar do deslumbramento com o que ia vendo, apesar das (algumas) conversas com os alunos, apesar da diversão quase constante, tudo me era superficial. quase exterior, mexe com os sentidos mas mexe menos com os sentimentos. Também sabe bem, de vez em quando, mas não é bem a minha praia.

Tal como diz o mestre Peter: eu é mais bifes.

20150319


Esta noite mal preguei olho. Pelas quatro da manhã já me tinha sentado para escrever e tentar colocar as ideias em ordem. Como sempre me acontece nestas alturas, o silêncio de casa torna ainda mais contrastante e insuportável a imensidão do que se passa na minha cabeça. As memórias surgem em catadupa, os pensamentos atropelam-se na tentativa de as reinterpretar, de as reler, de as reorientar, de lhes arranjar uma qualquer ordem por forma a tentar descortinar algum sentido, alguma direcção, algum novo rumo a seguir. Já devia saber que esses minutos/horas resultam em coisa nenhuma. Já devia saber, por esta altura, que tenho sempre que me levantar, pegar num papel, numa caneta, e reordenar as ideias. Aí sim, com as ideias no papel, com as memórias devidamente sistematizadas e reorientadas, posso então dar lugar ao desafio de escutar o que me querem dizer.

É sempre esquisito quando me apercebo que a forma como penso a vida contrasta com a forma como vivo a vida. Na vida vivida sou muito descomplicado: recebo o que a vida me vai dando, normalmente com alegria, algumas vezes com apreensão, mas sempre como ponto de partida. Ok, eu tenho isto diante das mãos. O que faço eu com isto? Pergunto-me o que Deus quer de mim, o que me quer dizer, choro quando é de chorar, rio quando é de rir, e passado muito pouco tempo já todo eu sou planos e conjecturas e projectos para tentar encaixar o que me aconteceu, ou disseram, ou fizeram. Nada de especial para qualquer puto do bairro: acção - reacção. Rapidamente, assertivamente se possível ou necessário, sem olhar para trás. Na vida pensada gostaria que fosse assim. Mas na vida pensada a profundidade é outra, o tempo é outro, as alternativas outras, as hipóteses muitas mais, há lugar para o arrependimento, para a promessa do pedido de desculpas, para o refazer-me por dentro para tentar ser por fora.

Apesar de me pensar muitas vezes, nem sempre considero isso pensar verdadeiramente na vida. Tem que haver uma interrogação, um despertar, um desafio, que provoque cá por dentro o toca a reunir para analisar, aí sim, na profundidade, no tempo que a profundidade exige, no silêncio que a profundidade exige, o que Deus me quer dizer. Invariavelmente por intermédio daqueles que sei que me amam, porque quase nunca é de um acontecimento que se trata. Mas de pessoas. Que me amam. Que me são muito importantes. E pode ser uma palavra sua, um gesto seu, uma expressão quase imperceptível, que provoca sempre um forte abalo na minha parca estrutura, que tem que ser revista. De cima a baixo, as Peter says.

Ninguém exige tanto de mim quanto aqueles que me amam. Ninguém me questiona, ninguém me interpela, ninguém me corrige, incansavelmente, inapelavelmente, como aqueles que me amam. Porque me amam. Por isso é que, quando uma coisa dessas acontece, sei que essa vai ser uma noite de São João.
Mas também sei que, com sorte e a sua sabedoria, amanhecerei um pouco melhor.

20150318


Este blogue vai entrar de ferias. Curtas, espero. Não que eu vá de férias, ainda, mas vou em trabalho para lugares onde não poderei escrever no blogue. E isso é bom! Ultimamente tenho escrito a um ritmo quase diário, o que não é comum em mim. Acontece-me apenas depois de uma experiência forte de partilhas, de intimidades, de descobertas, que necessitam ser processadas cá por dentro, o que apenas consigo em condições quando essas partilhas, intimidades e descobertas são traduzidas em palavras. Acontece-me muitas vezes estar na cama às voltas com dezenas de coisas na cabeça e levantar-me, escrevê-las e sossegar apenas depois disso. Muitas vezes! As minhas reflexões não são uma maneira bonita de enunciar acontecimentos ou sentimentos, são uma necessidade. Minha. De me desconstruir, de me construir, de saber que chão piso, que horizontes ainda tenho, de me ir mantendo atento e afinando estratégias, redefinindo rumos, reprogramando sonhos e objectivos. São uma forma de não me perder, em suma.
Nestes últimos tempos apercebi-me que muitas pessoas me lêem. Muitas mais que aquelas que alguma vez pensei ser possível. Francamente, não sei se isso é bom ou não. Diria que é bom se eu não me puser a armar aos cágados. Ainda ontem, numa deliciosa conversa com o Fredo - de quem todos os dias aprendo algo! - a propósito da Academia Ubuntu, disse-lhe que não tenho grande dificuldade em partilhar a minha história de vida. Não é uma questão de orgulho ou de falta dele. É uma questão de escolher viver sem nada na manga, sem segundas intenções, assumindo olhos nos olhos as minhas limitações, tentando descortinar as minhas capacidades e como posso atenuar umas e desenvolver outras. É uma questão de ajustar expectativas e, fundamentalmente, de tentar viver sem medos, porque aprendi que a verdadeira liberdade acontece quando me permito ser o que realmente sou. Sem histórias, sem joguinhos, sem optimismos exagerados, de pés assentes na terra e olhos postos no céu.
Claro que há uma reserva pessoal, necessária, fundamental, até porque não me envolve apenas a mim. Mas aprendi há muito tempo que não consigo falar de Deus, ou da fé, ou da vida, ou do que quer que seja, sem falar de mim e dos meus, dessa imensidão de meus que são os meus filhos os meus pais os meus irmãos os meus amigos os meus conhecidos os meus desconhecidos. A minha fé não é auto-referencial, nem a minha vida, nem as minhas preocupações, mas tudo isto é muito feito a partir da desconstrução do que vou sentindo e observando e reflectindo e caminhando. Eu não sou a medida de coisa nenhuma mas são as minhas reflexões feitas a partir das minhas dúvidas, das minhas experiências, boas ou más, das minhas quedas e recuperações, que vão impulsionando a descoberta de um Deus, que sendo de todos, é também muito pessoal porque me tem, a mim também, no centro das suas preocupações. E essa certeza é muito reconfortante!
Volta e meia apetece-me parar de escrever no blogue. Já aconteceu antes, algumas vezes, com outros blogues. Acontece normalmente quando leio algo que de gosto muito - como me aconteceu muito recentemente! - e tenho a certeza que nunca o conseguirei fazer daquela forma. Mas depois recordo-me que é para mim, apenas para mim, que escrevo. Desde sempre. Desde muito miúdo que tive diários e cadernos e folhas soltas que pudessem registar as minhas preocupações e dúvidas e angústias e ajudar-me a encontrar o caminho. É para mim, que escrevo. O que vem a seguir é apenas consequência.
De não querer procurar sozinho.
De não saber caminhar sozinho.

20150317


Olhos nos olhos, com toda a calma possível, fui dizendo: amigo não tem duas coisas: idade e sexo. Poderia ter acrescentado que também não tem proveniência, se me tivesse ocorrido.

Um dos meus amigos que recordo com mais saudade é o Sr. Vicente. Separava-nos mais de quarenta anos de idade, toda uma vida, e um mundo imenso de imensa sabedoria. Conversávamos bastante e foi dele que fui aprendendo a beber alguma da sabedoria que me esforço ainda hoje, por conservar: saber estar, saber escutar, saber calar. Não era tanto o que ensinava, ou o que dizia, era a sua postura perante os outros, mesmo quando a maioria desses outros o desprezava de forma ostensiva. Foi dele que aprendi, depois de uma violenta discussão em que uma colega nossa foi manifestamente desrespeitosa para com ele: "pode ficar chateada comigo, mas quero que saiba que sempre que precisar de mim, estou disponível." E, passado pouco tempo, foi mesmo preciso, e esteve disponível, sem nunca receber um pedido de desculpas, sem nunca lhe ouvir um ai. A nossa vida foi correndo, cada qual para seu lado, e um dia, num daqueles funerais a que temos que ir, soube que morrera semanas antes. Chorei como um desalmado! Penso nele muitas vezes, recordo as nossas conversas e a sua imensa sabedoria. Gostava imenso dele e gostei muito de saber - a sua filha disse-mo pouco depois de ele morrer - que ele também me tinha em boa conta.

Uma das coisas que ele me ensinou é que a amizade profunda é uma das mais nobres artes de amar, e por isso não escolhe idades. Nem sexo. Nem proveniência. Lembro-me que foi justamente naquele escritório que ouvi pela primeira vez comentários e bocas acerca da escolhas das amizades que eu fazia. Ao longo da minha vida ouvira-os no bairro em relação aos da capela ou na capela em relação aos do bairro mas nunca fizera grande caso disso. Ali, naquele lugar, era diferente. Era o nosso local de trabalho, estava no meio de pessoas adultas - eu era o mais novo, na altura! - e achava muito estranho que adultos comentassem as amizades alheias. No entanto, calejado com as bocas que ouvira desde sempre, nunca prestei grande atenção e prossegui caminho.

Com muita pena minha, ao longo do percurso errático que foi o meu, houve alturas em que deixei que interferissem com as minhas amizades. Ou porque ficavam mal, ou porque eram mal interpretadas por terceiros, ou porque despertavam comentários cheio de más intenções, ou porque... À custa dessas minhas opções, tenho pessoas a quem, por vergonha, não consigo ainda olhar nos olhos quando nos cruzamos, tenho vários pedidos de desculpa que não foram ainda ditos as vezes suficientes para afagar a culpa que ainda sinto, tenho contas irreversivelmente mal acertadas. Apesar de não me orgulhar de tudo o que fiz na vida, não sou nada de desejar voltar atrás para fazer diferente. No entanto, se tal me fosse possível, certamente começaria por aqui.

Não posso dizer que é um hábito, porque não o é, efectivamente. É mais um registo, que me é tão querido e interior que não tenho grande controlo sobre ele.

Quando tenho uma experiência profunda de partilha, acabo por associar esse acontecimento a uma pessoa específica, a um nome específico, como se essa experiência fosse única e irrepetível. E é-o, na realidade! Uma descoberta mútua, com o tempo e a profundidade necessários, a caminho de Taizé; uma conversa, longa e profunda, num terraço moçambicano tendo a lua como testemunha; uma recuperação mútua durante uma noite inteira e fria de Afife; uma abertura plena de coração acompanhada apenas pelo ecoar dos nossos passos no caminho que percorremos; uma partilha de comunhão e de encontro de rara sintonia na oração da luz... são momentos que têm um nome, específico, que têm um rosto, específico, que têm um discurso e uma forma de sentir e uma cadência própria, porque deixaram em mim a marca específica do que foi partilhado, do que foi vivido e sentido, do privilégio máximo que é, para mim, confiarem-me uma parte importante de si. De comum, apenas isso: a vontade de partilhar e a confiança, imensa, sem reservas, com a certeza que o facto de nos colocarmos em mãos que não são nossas não nos coloca em risco mas em segurança.

Um padre amigo - que saudades! - dizia que mais vale uma vida gasta que uma vida enferrujada. Não podia estar mais de acordo. Prefiro, de longe, correr o risco de sair amassado ao risco de não sair coisa nenhuma, de viver um constante e seguro cinzento, amorfo, sem qualquer lampejo de profundidade, sem qualquer centelha de risco, apenas para me sentir seguro. Coloco-me muitas vezes em mãos alheias e nunca fiquei a perder grande coisa por isso. Pelo menos, nada que não passasse com um sacudir do pó e erguer de cabeça.

Nada me faz sentir tão privilegiado que sentir que alguém se coloca nas minhas mãos. E tão assustado! A responsabilidade da partilha, a responsabilidade da confiança, a responsabilidade da comunhão e a sintonia que daí brota tornam cada um especialíssimo, cada um único, cada um meu, que me habita e me faz companhia e me preenche a alma. Aparecem sempre nas minhas orações, sem precisar de convite, particularmente nas que não escolhem dia nem hora e me assaltam o pensamento e me provocam inquietude. E permanecem, indelevelmente, imunes ao tempo, resistentes à vida vivida. ocupando o lugar a que pertencem. Que é apenas seu!

20150316


Aqui há uns tempos, a minha-mais-velha andava tristíssima. Apesar de daqui a meia dúzia de meses ser médica depois de seis logos anos de um esforço e uma aplicação tremendas, cá em casa nunca era levada a sério no que diz respeito à cura das maleitas do corpo. Confiava-se muito mais em mezinhas e cházinhos e na opinião da prima ou da vizinha e no "ouvi isto no autocarro", que no resultado do seu esforço e capacidade de trabalho. Devia saber já que desde sempre é assim, Já o foi com Jesus "não és tu o filho do carpinteiro?" já o foi com cada um de nós, em nossas casas, e se-lo-à sempre. Ninguém é profeta na sua terra.

Nos meus primeiros tempos da faculdade - há cerca de 9 anos atrás! - chegava a casa empolgadíssimo! A fome de aprender era tanta, o deslumbramento com o que ouvira era tanto, e para mim tão importante, que acreditava ingenuamente que assim que chegasse a casa contagiaria tudo e todos com tamanhas descobertas. Cedo aprendi que isso nunca aconteceria. Que ninguém estava interessado no estudante fora de horas e que mal eu começava a abordar o assunto, era um bocejo só. Aprendi a calar. A custo. Particularmente quando, numa formação para catequistas, os meus vieram todos entusiasmados com uma palestra de um padre da moda que lhes tinha dado uma perspectiva completamente nova de uma determinada passagem do evangelho. Exactamente aquela que, uns tempos antes, por vir de mim, lhes despertara o bocejo!

Os meus amigos sempre adoraram o meu pai. Pela sua jovialidade, pela sua alegria, pela sua disponibilidade, pelo seu sábio conselho na ponta da língua, pela sua identificação fácil com o sentir e o querer dos jovens, que sempre lhe permitiu ser visto como uma reserva para aquela malta nova para quem os outros adultos era ilustres desconhecidos. Para mim, era apenas o meu pai. Enquanto os outros viam a sabedoria e a disponibilidade, eu não conseguia sair da minha infância, da sua ausência, da excessiva liberdade que me concedeu, do desinteresse profundo a que sempre me senti votado. Ainda recentemente, quando os meus filhos diziam que adoram o avô, era com alguma dificuldade que conseguia calar o meu ressentimento de filho que me impedia de ver o seu deslumbramento. Ainda ontem, curiosamente, quando estávamos juntos e olhava para o meu pai e dizia-me que vai sendo tempo de o redescobrir. Tenho mesmo que o fazer.

O passado é algo que temos sempre agarrado às pernas. Dificilmente conseguimos ajuizar cada pessoa, cada gesto seu, cada intervenção sua, apenas por si só. Estamos sempre a compará-la com outras situações, com outras atitudes, com outros gestos e intervenções, suas ou não. Dir-se-ia que é um instinto de defesa. Sermos magoados dói como o caraças e não queremos voltar a ser apanhados desprevenidos. Mas não deixa de ser uma lógica de medo. Viver na reserva, com o passado agarrado às pernas tolhe-nos os movimentos e limita-nos a liberdade de voltarmos a ser felizes. Como se não houvesse senão amanhã.

20150313



Make it a rule, never, if possible, to lie down at night without being able to say:"I have made one human being at least a little wiser, or a little happier, or at least a little better this day."

É de um filme, curto, que passamos nos Dias de Reflexão do terceiro ciclo. Inspirou-me um bom hábito que, quando tenho ainda a força, a coragem e a lucidez necessárias, tento fazer no final de cada dia. É um pouco como o processo que algumas mulheres têm justamente nessa altura. Também eu me tento desmaquilhar, paulatinamente, olhando-me ao espelho, com outros olhos, deixando que as minhas próprias camadas me vão confrontando à medida que as vou reconhecendo. Sem enfeites, sem efeitos, sem subterfúgios. Não é desmascarar, que isso pressupõe uma outra personalidade que pode ou não ter a ver com a nossa. É mesmo desmaquilhar. Desenfeitar, se é que a palavra existe. Retirar-me a forma como quero que os outros me vejam e permitir-me ver, a mim próprio, olhando-me ao espelho, com o meu próprio olhar, porventura mais cruel, porventura mais atento, mais perspicaz, menos amigo. Por isso, apenas fico satisfeito quando constato que o que vejo nessa altura coincide com o que fui percepcionando ao longo do dia.

No outro dia, quando o vi, já eu me tinha desmaquilhado. Estava no meio de tantos outros, mas foi o único que me chamou a atenção. Sorri ao vê-lo porque sabia que dali apenas vêm coisas boas. Estive muito tempo à sua espera, pacientemente, com uma paciência que até me desconhecia mas que aprendi quando aprendi a confiar. A não correr. A saber esperar. A confiar - confiar é a palavra certa! - sobretudo, que Deus coloca no nosso caminho aqueles que nos são mais importantes em cada momento. Pouco antes tinha passado por mim sem qualquer sinal de sequer me ter reconhecido, o que é sempre estranho para mim. Mas agora ali estava, sorridente, diante dos meus olhos. Abri-o, igualmente sorridente, expectante. E li-o.

Sempre que escrevo as palavras saem-me em catadupa. Já nos exames da faculdade era assim: pegava na caneta e escrevia sem parar, quase sem respirar, quase sem pensar, descobrindo o raciocínio à medida que o ia explanando, raramente rasurando, raramente recuando, como se as coisas apenas fizessem sentido à medida em que as ia colocando no papel. Todo o trabalho que dizia respeito ao conhecimento da disciplina havia sido feito antes e o que ia escrevendo era resultado já de um processo de interiorização. Quando, no final de cada exame, pousava a caneta, estava exausto, esgotado, e nada mais me conseguia sair. Por isso nunca reli uma resposta, nunca a corrigi posteriormente, nunca senti que poderia ter escrito outra coisa ou de outra maneira. Chegava ao fim, colocava o ponto final na última fase, e entregava-o, invariavelmente satisfeito com o que tinha aprendido com aquela prova. O que sempre dissera aos meus filhos, que eles estudavam para saber e que as notas viriam como consequência, era real em mim. Sempre me preocupei muito mais em adquirir sabedoria que boas notas e elas sempre vieram por acréscimo.

Já dizia o fabuloso Hannibal Lecter que desejamos sempre o que não temos. Quando leio algo bem escrito, com o devido peso dado a cada palavra, quando cada palavra tem o seu sentido próprio, a ponto de apenas poder ser aquela e não outra, quando consigo ler a profundidade aliada à simplicidade e à beleza, quando não consigo distinguir umas das outras num texto que exprime uma partilha profunda, sinto-me pequenino, pequenino, como gosto de me sentir. Como se um imenso tsunami me arrastasse para outras paragens, para outras paisagens, até então desconhecidas. Aquele texto, que me apanhou já desmaquilhado, vai andar comigo durante algum tempo. Para poder voltar a ser lido e relido e saboreado e degustado, lentamente, saborosamente, como um bom Porto, como um bom jazz, como tudo aquilo com que vale a pena ganhar o tempo porque me torna mais sábio e imensamente mais rico.

Naquela noite, com o envio daquele email, houve alguém que se deitou com a certeza que me fez mais sábio, mais feliz e, quem sabe, um pouco melhor.

De forma simples, profunda e clara. Como a água.

20150311



Na Balada de Hill Street, depois do plenário inicial onde o sargento dava a ordem do dia, ele acabava dizendo sempre algo deste tipo: "agora esqueçam o que eu disse e tenham cuidado lá fora." Não sei bem porquê, mas isso ficou-me. Achava curioso que, depois do trabalho que ele tinha tido a preparar a reunião, acabava sempre por desvalorizar o que tinha feito. Quando finalmente percebi porquê, passei a utilizá-lo nas minhas catequeses: "agora esqueçam o que aqui foi dito e vivam, porque a vida acontece lá fora."

Aquilo que é verdadeiramente importante na vida não tem que ser permanentemente recordado. Eu não digo aos meus filhos todos os dias que os amo e que são o mais importante para mim. Nem o conseguiria fazer, porque mal esboço algo nesse sentido eles olham-me de soslaio e preparam-se imediatamente para me dar um grande tanga. Eles também não mo dizem, mesmo quando o sentem à flor da pele justamente por isso, porque o transbordam de uma forma tão evidente que não precisam de o dizer. Nós sabemos que somos uns dos outros, que nos incarnamos uns nos outros, que nos incorporamos uns nos outros, para os bens e para os males desta vida, por isso estar permanentemente a dizê-lo seria uma redundância. E quando, apesar de tudo, o dizemos, corresponde mais a uma necessidade de quem o diz que de quem o ouve.

É como dizer "obrigado" a um amigo depois de uma experiência profunda de partilha, depois de se ter estado connosco e para nós no tempo e na forma que precisávamos que estivesse. Nunca é uma necessidade de quem escuta, mas é-o para quem diz, não como forma de agradecimento ou de declaração de dívida, mas como um transbordar da alma, como se, depois dessa conversa, dessa partilha, desse tempo que foi apenas nosso, nada mais nos coubesse no peito. A gratidão profunda, como o amor profundo, tem imensa dificuldade em ser traduzida por palavras, quem ficam sempre, sempre, aquém do imenso que acontece dentro de nós. Por isso, porque transborda, quem o vai ouvir sabe-o sempre antes. E protesta sempre!

Em condições difíceis para quem o dizia, ouvi ontem falar do Samaritano. Dizia-me acreditar que os samaritanos desta vida não são particularmente escolhidos por Deus mas são particularmente atentos ao que Deus pede por intermédio das pessoas e das situações que Ele vai colocando no caminho. Quando me apanhei sozinho, vindo do hospital, isso ecoava ainda na minha cabeça. E comparava-o com as atitudes típicas da época de Jesus, em que cada passo dado era comparado com as escrituras. E que com isso a vida ficava cheia de regras mas vazia de vida. E percebia, mais uma vez, que mais importante que estar sempre a olhar para a Bíblia é estar atento ao que se passa dentro e fora de nós, ao que passa, ao que permanece, ao que nos pede, ainda que sem o dizer, que permaneçamos com ele. E depois, só depois, talvez no final do dia, talvez no recanto mais profundo de nós mesmos, perguntarmo-nos se o que sentimos, fizemos e dissemos esteve de acordo com o que nos é pedido. E, perante a inevitável conclusão que estamos ainda muito aquém, esqueçamos tudo, excepto o compromisso e a esperança que amanhã poderemos ser melhores.

Porque a vida, efectivamente, acontece lá fora.

20150310


Quem me habita? Quem permito eu que habite em mim? Quem, mesmo não o permitindo, persiste nos meus pensamentos, nos meus desejos, nas minhas ânsias e preocupações? Nunca fico incólume depois de me deixar habitar. Não sou um hostel, ou uma estalagem, em que as pessoas chegam, assinam o livro de ponto, e ficam apenas por alguns momentos - alguns dias, se gostarem da paisagem e do clima - e depois partem para outras paragens, para outras vidas, deixando apenas trás de si a roupa suja da cama e, com sorte, algumas memórias que rapidamente serão substituídas. Next!

Tenho idade e vida vivida suficiente para perceber já que deixar que me habitem é reservar um espaço, único, exclusivo, que sei que vai permanecer ocupado muito depois da partida, muito depois de escapar ao alcance do meu olhar, muito depois de os dias e as semanas e os meses se intrometerem. Por vezes tenho a ilusão - quase um ressentimento! - que esse espaço quase fica vago, quase é ocupado por outro alguém, como se eu precisasse de espaço livre para albergar quem quer que seja, mas basta uma sms, basta um post no facebook, basta um cruzamento acidental numa rua qualquer, num corredor qualquer, para que as boas memórias reocupem o seu lugar e o espaço fique imediatamente livre das teias de aranha, convenientemente aspirado, rapidamente arejado, com cama com lençóis lavados, pois irá permanecer.

Tenho muitas vezes a tentação de, num dia assim, procurar por aqueles de quem tenho saudades. Seja porque vi alguma coisa que nos recordou, seja porque, algures no meu percurso interior, recordei uma conversa, um sofrimento partilhado, seja porque a manhã está fria ou o sol brilha ou a chuva é melancólica ou a lua brilha, lá em cima, quase tão brilhante quanto teima e fazê-lo cá por dentro, qualquer pretexto é bom para me reencontrar com aqueles que me habitam. Por vezes, raras, cedo à tentação e arranjo forma de me fazer recordado. A esmagadora maioria das vezes deixo para lá, imaginando que as vidas das pessoas são suficientemente preenchidas e não precisam de novos inquilinos. Como em qualquer casa, como em qualquer lugar onde habitam várias pessoas, tem que existir um acordo, um limite, um equilíbrio, muitas vezes tacitamente estabelecido, que permita que o querer encontre sempre o seu espaço. E essa é uma linha muito ténue, muito volátil, muito própria de cada pessoa que me habita. E que tenho sempre muito medo de ultrapassar.

20150309


Fernando Alves é, desde há muitos anos, a voz que mais gosto de ouvir na rádio. Os sinais que todos os dias invoca, que todos os dias envia, são despertadores que me ajudam a ficar mais atento  e, sobretudo, a descobrir o que sem ele dificilmente descobriria. Hoje falava de Clemenceau e de uma frase sua que veio ao meu encontro: " O que me interessa é a vida dos homens que falharam, pois tentaram ir além das suas possibilidades."

O meu apóstolo predilecto não é João, é Pedro. Pela sua humanidade. Coração demasiado perto da boca, excesso de voluntarismo, pouca percepção da realidade, a loucura destemida de quem acha que tudo é possível e o tardio enfrentar da realidade, sempre com uma grande dose de arrependimento, sempre com uma grande necessidade de conversão, sempre com a promessa que desta vez é que vai ser, deixando que a parca percepção, o voluntarismo e a loucura dêem início a um novo processo que, inevitavelmente terá o mesmo fim. É um homem cheio de coração, de peito cheio, como costumo dizer, cuja racionalidade é imposta pela vida e pelos tantos que o acompanham e o aconselham, não raras vezes sem discussão acesa. Não tem a beatitude de João, não tem a sageza de Paulo, aparentemente tudo lhe falta e no entanto, é a Pedro que Jesus escolhe para dirigir a Sua Igreja. Mais uma vez, a inversão da lógica do poder, mais uma vez, a opção pelo menos evidente, mais uma vez a escolha da vida vivida em vez do calculismo. Uma Igreja que se quer viva e vivida não se pode escudar no calculismo, no seguro, no conforto, no cómodo. Muitas vezes tem que ser toda coração, tem que agitar águas e incomodar, atrapalhar o status quo e catapultar para além das fronteiras do medo e da insegurança. Tem que confiar. Ter fé. Caminhar sobre as águas, sabendo que os limites dos homens são apenas limites, aparências, de limites, que podem ser ultrapassados por pessoas que se deixam mexer por dentro.

Soube ontem que uma amiga, freira, deixou o convento. Vai ser mãe. Solteira, porque o pai da criança preferiu seguir a sua vida. Quando o disse à família, houve divisão. De um lado, choro e ranger de dentes. Para eles, ela era a freira, motivo de orgulho da família até há pouco tempo, que alardeavam nos locais católicos bem pensantes. É agora motivo de vergonha, que tentam varrer para debaixo do tapete. Do outro lado, a alegria. Para eles sempre foi a S. a irmã, a prima, a amiga batalhadora e particularmente sensível alegre e feliz, que agora tem a coragem de assumir um novo rumo com a mesma felicidade, a mesma alegria e uma ainda maior sensibilidade. E com a fé de sempre: "eis a Serva do Senhor..."

As maiores lições de vida vêm quase sempre do aparente fracasso.
Ou não andasse eu de cruz ao peito.

20150308



A determinada altura, depois de me falar do tanto que a magoava e do medo, perceptível ainda que silenciado, que sentia por isso, disse-lhe que um dos motivos porque sou cristão é porque Jesus me permite recomeçar sempre, qualquer que seja a minha situação passada e presente. Acredito que, para Jesus, o meu sonho de futuro é sempre mais importante para me catapultar do presente que a minha recordação do passado. À Samaritana, à pecadora, ao filho pródigo, a Zaqueu, a tantos outros - acredito que mesmo àqueles que tudo fizeram para O crucificar - Jesus nunca pergunta de onde veio nem atira à cara pelo que andaram a fazer. A sua palavra sempre foi no sentido do "para onde vais" e não do "de onde vens". O por nós tão utilizado "eu bem te avisei" é isso mesmo: por nós utilizado. Apenas por nós.

Emocionam-me sempre mais aqueles que, apesar da pancada, encontram sempre forma de se levantarem. Quando converso com eles, quando os leio, quando conheço algo da sua história de vida, pergunto-me sempre como é possível que alguém que levou tanta bofetada da vida consegue ainda sorrir, consegue ainda acreditar, consegue ainda ser para os outros. Ainda ontem, numa deliciosa conversa com uma  - para mim, sempre - miúda a quem dei catequese há bastantes anos, ela contava-me como sofreram lá em casa com uma situação de cancro e como todos se uniram para a conseguir ultrapassar. "Ainda ando à procura de me reatar com Deus.", disse-me.

A lógica do medo tolhe-nos a vida. Ainda que não tenhamos disso consciência. O medo de sofrer, o medo de perder, o medo de se perder por entre um qualquer processo de dor, leva-nos a viver com reservas. Como se, de alguma forma, não nos pudéssemos dar ao luxo de nos entregarmos à vida de corpo e alma porque tem que ficar alguma coisa na eventualidade de as coisas correrem mal. É esse o exacto ponto em que deixamos de viver plenamente. Quando a lógica do medo se sobrepõe à lógica do amor, mesmo nos momentos aparentemente menos relevantes, começamos a soçobrar, muitas vezes sem que nos apercebamos disso, e a viver com sinal menos.

Claro que eu falo do alto da burra. Recomecei muitas vezes, precisei muitas vezes de recomeçar, tive muitas vezes necessidade de fazer um reset, com tudo e com todos, desejei muitas vezes viver num daqueles lugares onde podemos ser verdadeiramente anónimos, onde ninguém nos conhece, onde ninguém nos pode apontar dedo algum. Mas, de todas essas vezes, a perda era de mim para mim, era de mim que me perdera, era a mim quem precisava reencontrar e sempre tive quem me substituísse nesse processo, quem me estendesse a mão e me lavasse as feridas.

Marcou-me muito um domingo de Páscoa em que andei no compasso no Hospital de São João. Ali, por entre os mais frágeis, a cruz passava junto à maior das fragilidades: um pai acabara de perder o seu filho, que lhe morrera nos braços.

Como se sobrevive a isso?

20150305



De onde vem o que me dói? De onde vem a insatisfação com o que sou, qualquer que seja a forma de agir, qualquer que seja o desejo profundo de ser algo mais que mero ocupador de espaço, e de recursos, e de tempo? De onde vem esta consciência que me separa, que aparta o que sou daquilo que quero sempre ser, e que não consigo ser por mais que breves momentos? De onde vem este espelho, permanente, constante, que me força a deparar-me comigo próprio, que me obriga a olhar-me nos olhos, que me leva a descortinar, sem sacrifício algum, sem dificuldade alguma, a minha realidade, a aprisionar-me na minha realidade, o que quer que a minha realidade seja?
E que faço eu com isso? Que faço eu com essa consciência, permanente e constante? Baixo os braços, digo para mim mesmo que não vale a pena, recolho sonhos e vontades e mastros e estandartes e bandeiras, remeto-os para o fundo do baú, de onde vieram, e limito-me a ser mero ocupador de espaço, e de recursos, e de tempo? Concluo que tudo é em vão e que por isso não tenho direito senão a centelhas de felicidade, escassas, breves, ilusórias talvez, e que cedo ou tarde sou inevitavelmente recambiado para a minha própria finitude, aprisionando-me na minha realidade, o que quer que a minha realidade seja? Sou apenas pó e é em apenas pó que me vou tornar? Já?
Mas então o que faço com a partilha, o que faço com a alegria, o que faço com a Palavra que me diz que sou mais, que sou chamado a ser mais? O que faço com aqueles que me conhecem e me estendem a mão e me pedem para os levantar e me levantam com eles, com aqueles a quem estendo a mão e peço para me levantarem e levantamo-nos juntos? Que faço eu com os olhares e com os sorrisos e com as lágrimas e com as conversas que me enchem o peito e a memória e transparecem nos meus próprios olhares e nos meus próprios sorrisos e nas minhas próprias lágrimas? Que faço eu com a Palavra, com aquela Palavra que me surpreende  porque vem de onde menos espero, quando menos espero, de quem menos espero, mas que me encaixa como uma luva, porque precisava mais dela que de pão para a boca, ainda que não o soubesse e vivesse na correria constante, tola, de garantir que mais, muito mais, que o pão, me chegasse à boca? Que faço eu com aqueles que me saciam a alma, que me apresentam, ainda que escassos, ainda que breves, mas muito reais momentos de felicidade, que me fazem sentir que tudo o resto é, isso sim, ilusório, e que a vida valeria a pena, ainda que fosse apenas por aquela centelha de felicidade?
E que faço eu com o meu Deus, que nos outros e pelos outros todos os dias me estende a mão e me interpela e me desvia o olhar do espelho e me conduz o olhar para o olhar dos outros para que O possa encontrar?
Quem deixo que tome conta de mim?
O meu olhar?
Ou o Seu olhar?

20150304


Há uma canção que é mais ou menos assim: "eu gosto de ser uma vaca, uma vaca..." Hoje, enquanto caminhava, pensava que sou ruminante. Como uma vaca.

É já um clássico. Chego a casa e perguntam-me como é que foi e pedem-me para contar pormenores e ficam desiludidos. Nunca consigo senão balbuciar meia dúzia de lugares comuns e ficam todos com a sensação que nada de importante se terá passado. Ou então que não quero contar. Por mais que eu tente explicar que comigo as coisas não funcionam assim, que preciso de tempo para digerir, nunca acreditam.

Eclesiastes 3, 1. Comecei desta forma muitos Dias de Reflexão: "Neste mundo, tudo tem a sua hora; cada coisa tem o seu tempo próprio."

Eu preciso do meu tempo para digerir o que de importante me vai acontecendo. E quanto mais importante, quanto mais intenso, quanto mais profundo, de mais tempo eu preciso. Também porque na altura dos acontecimentos deixo-me simplesmente ir. Vou sentindo, vou fruindo, vou permitindo que o coração tome conta das operações sem me preocupar muito em filtrar o que deve ser ou o que não deve ser, o que fica bem ou fica mal, nem as consequências que daí possam advir. Claro que muitas vezes, quando olho para trás, gostaria de não ter dito, ou não ter feito, percebo tarde que fui mal interpretado, com tudo aquilo que ser mal interpretado acarreta e com toda as figuras ridículas que fazem parte do meu historial. Mas são muitas mais as vezes em que me descubro melhor justamente quando me deixo ir, quando confio que quem está comigo tem a mesma abertura de coração que eu. E na esmagadora maioria das vezes tem.

Como passo pelas coisas sentindo-as intensamente e racionalizado-as escassamente, esse processo é feito depois, muito lentamente, durante muito tempo, normalmente enquanto caminho, de manhãzinha, sozinho. Revejo pessoas, relembro conversas, revalorizo sentimentos e partilhas e descobertas e, de alguma forma, volto a estar lá, voltamos a estar lá, ainda que por breves momentos. E esta é uma excelente forma de começar os meus dias. Caminhando, com aqueles de quem gosto, com aqueles que me são queridos e importantes, com aqueles que, de alguma forma, habitam cá por dentro, e me ajudam, todas as manhãs, de todos os dias, na minha oração de louvor a um Deus que me proporciona encontros com pessoas que me dão tanto! Dar Graças pelos amigos é uma excelente forma de começar o dia!

Desde que me lembro, ando à procura de referências externas para a formação da minha personalidade. Durante muito tempo não entendia porque assim era, mas o meu trabalho em Ramalde com miúdos com infâncias muito parecidas com a minha, ajudou-me bastante a perceber porquê. Quando crescemos sem referências sólidas temos duas hipóteses: ou nos agarramos ao que nos rodeia - e nem sempre o que nos rodeia nos faz bem - ou vamos buscar fora, muitas vezes recorrendo à fantasia, a estrutura que nos falta dentro.

Estrutura é uma palavra que tenho ouvido com alguma frequência, ultimamente. Provavelmente, o fator mais decisivo da minha vida seja mesmo esta minha natural predileção por pessoas com estrutura. Pessoas que sabem bem o que querem, que têm um horizonte tão definido e uma tenacidade tão intensa que conseguem ver com clareza qual o seu rumo e mante-lo custe o que custar. Pessoas que, mesmo no maior dos sofrimentos, mesmo quando caem e se magoam e choram, não se permitem mais que um sacudir do pó e estão logo prontas para retomar o seu caminho, sem alguma vez o porem seriamente em causa. Pessoas que são a antítese de tudo o que eu sou, naturalmente. Esta minha predileção por pessoas assim levou a que, instintivamente, as escolhesse como referências para mim, e isso permitiu-me acompanhá-las e aprender delas, e, mais importante, apreender delas algumas das facetas com que me fui laboriosamente construindo. Acredito que instintivamente procuramos sempre o que nos falta e como o que me falta é muito, sempre o encontrei nos outros.

Lentamente, à medida que vou envelhecendo, apercebo-me que vou deixando de ser um barco à deriva, que tudo aquilo que procurei e encontrei nos outros começa a ganhar sedimento, a dar-me algum lastro, e vou vendo já, com maior clareza, o meu próprio rumo, aquele que eu sinto como verdadeiramente meu. E isso permite-me uma outra entrega aos que me procuram. Com maior serenidade, com menor sofreguidão, com uma muita maior aceitação dos meus limites e das minhas incapacidades. "what you see is what you get".

Em todo este processo, a descoberta daquele breve trecho de Isaías vai adquirindo um importância especial. Todos os dias, antes de me deitar, revisito-o e comparo-o com o que foi o meu dia. E descubro-me a conter-me nas palavras e nas atitudes, e a forçar-me um olhar mais atento e uma ação mais firme, tal como me é pedido. Tenho a íntima esperança Isaías possa ir sendo, para mim, mais uma referência suficientemente clara e incisiva para que vá consolidando a minha estrutura. Quem sabe se daqui a meia dúzia de anos, lá para os sessenta, poderei saciar esta fome que não se cala. A esperança é a última coisa a morrer. Os meus netos que se cuidem ;-)

20150302




Cruzamo-nos nas escadas "Então? Como estás?"
Um sorriso largo e um quase sussurro, enquanto nos abraçamos: "Estou bem. Está-se a compor."
E o seu sorriso passa para mim, e seguimos caminho, cada um para o seu lado.
Nos diálogos, como em quase tudo na vida, o tamanho não importa.
Este, curtíssimo, ganhou o meu dia.

Tivemos um fim de semana quase sem filhos. Quando chegamos a casa, na sexta feira, já eles tinham saído para um retiro e só os tivemos de volta ontem, depois do jantar. Quase sem filhos é uma forma de dizer, porque foram três mas ficaram ainda dois. Mas no almoço de domingo éramos apenas nove à mesa, o que suscitou queixas de uma das tias: "somos tão pouquinhos, hoje!"

A única coisa boa de termos filhos fora de casa é que temos menos louça para lavar. Fora isso, não há vantagem nenhuma. Mesmo o sossego, tão desejado por nós em tantas alturas, chega a uma altura em que é demais, e ao fim de algum tempo olhamos um para o outro com a sensação que não passamos de dois gatos pingados órfãos de filhos. Confesso que a mim não me assusta nada o síndrome do ninho vazio. Apesar de gostar muito de estar com os meus filhos, de adorar a azáfama e a confusão das refeições, de me deliciar completamente quando pegam numa guitarra e começam a cantar, sei, sempre soube, que não são meus. São as minhas sementes no mundo, mas não são meus. E vejo sempre com bons olhos os seus desejos de partida, de conquista, de diversão, de utonomia. Fico orgulhoso com coisas simples como quando planearam a sua ida a Londres por alguns dias, ou a peregrinação a Taizé no verão passado, sem precisarem das muletas dos pais, sabendo, no entanto, que estávamos, como estamos sempre, para o que quisessem.

Há pouco tempo, tentava explicar que o maior orgulho de um educador - pai, catequista, professor... - é que o seu educando conquiste a sua autonomia. Que deixe de precisar de si, dos seus conselhos, da sua pretensa sabedoria, e seja capaz de fazer as suas próprias escolhas e trilhar o seu próprio caminho. Acredito que educar no e por amor é isso mesmo: semear para que possam ser outros a colher. No entanto, esta questão da posse dos "nossos meninos" - sejam eles filhos, alunos ou amigos - é sempre complicada. Nunca os deixo ir sem algum sofrimento, sem alguma sensação de perda profunda, sem alguma luta interior onde acabo por me impor deixá-los ir, sem qualquer manifestação exterior. Por vezes isso confunde-os e pensam que eu desliguei facilmente mas, invariavelmente, quando regressam para me visitar, vêm a alegria que sinto e finalmente percebem.

20150301



Creio que esta terá sido a minha sétima presença nos últimos dez anos em Taizé. Recordo com especial carinho todas as descobertas da primeira vez, desde que saímos do Colégio: a descoberta de uma nova forma de ver as pessoas que julgava já conhecer, a conversa partilhada ao longo da viagem, a batida do Delicate de um ainda desconhecidíssimo Damien Rice a bater-me nos ouvidos com ligação direta ao mais fundo dos fundos, a chuva miudinha enquanto saíamos de Lourdes rumo a Taizé. Chegamos lá era noite escura de domingo, perdêramos a oração da noite, mas fui atrás de uns alunos que, mal chegáramos, correram para a capela. E não percebi porque tinham corrido tanto. A capela era feia, estava despida, e não tinha nada a ver com aquilo que esperava. O que aconteceu depois é conhecido: caí de queixos, chorei baba e ranho, e senti-me remexido por Deus e completamente renovado. Nunca, como nessa altura, me tinha sentido verdadeiramente abençoado por Deus.

É sabido que a primeira vez não se esquece. O que não significa que as seguintes percam sabor. Pelo contrário. Tirando os momentos iniciais da segunda vez - em estava demasiado à espera de um remake - rapidamente aprendi a deixar-me ir e a saborear o que me ia sendo dado a descobrir. Uns anos foram mais pessoais, outros mais partilhados, noutros os alunos exigiam mais vigilância e inquietação, e noutros ainda os meus estados interiores não conseguiam encontrar eco no que se passava fora de mim. Em todos esses anos adorei Taizé, aprendi imenso com as partilhas, conheci pessoas fabulosas que alimentaram e reforçaram ainda a minha gratidão e necessidade de louvar a Deus por trabalhar onde trabalho e com quem trabalho. Recentemente tive que engolir um "dizes isso todos os anos" porque, na realidade, sinto isso todos os anos. Deixo-me embriagar pelo melhor dos outros com extraordinária facilidade e esta sensação de pequenez diante de quem é muito mais do que eu faz-me sempre sentir um privilegiado. Sou-o, evidentemente.

Mas há alturas na vida em que parece que os astros se alinham e tudo conflui. Será, provavelmente, quando necessitamos todos de um olhar mais atento, de uma palavra certa, de uma fragilidade partilhada que precisa de respostas, ou de um ombro, ou de um sorriso, ou de lágrimas. A sensação que tenho é que todos estávamos em sintonia este ano. Todos precisávamos uns dos outros, de nos ouvirmos, de nos escutarmos, de nos redescobrirmos, de nos aprendermos. Uns nos outros. Que todos tínhamos a palavra certa para dar e a pessoa certa para a receber. E que todos a fomos dando, e todos a fomos recebendo, cada um no seu tempo, cada um na sua sabedoria, cada um na sua fragilidade, e que nos fomos colocando, todos, na nossa sabedoria e na nossa fragilidade, em cima da mesa para que cada um se servisse dela, consoante a sua necessidade. E todos, absolutamente todos, fomos, simultaneamente, servos e senhores, uns dos outros, uns nos outros.

Há memórias que o tempo não se atreve a me apagar. Que uso como referência quando tento explicar como é o Reino de Deus, como é viver na alegria partilha, como é importante encontrarmos refúgio fora de nós, como é importante partilharmos o que verdadeiramente somos, sem medos ou subterfúgios, sem porcarias que nos roubem de nós próprios e dos outros.

Agora tenho mais uma. E estou imensamente grato, a todos, por isso.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...