Nunca fui muito de ter os pés na terra. Creio agora, olhando para trás, que em determinada altura era porque não podia. A minha terra era demasiado dura para que eu me permitisse manter-me em terra firme, que se não me agarrasse ao ilusório, ao sonho, ao que poderia ser, jamais teria saído do buraco onde me encontrava. Noutras alturas, porém, não quis ter os pés na terra. Não por causa do que me envolvia mas por causa do que sentia, da minha falta de orgulho em ser eu, e fugir da terra era a única maneira que encontrava de conseguir sobreviver a mim próprio. E por vezes ainda acho que nunca de lá saí.

Manter os pés na terra é um luxo. De quem sabe o terreno que pisa, de quem olha momentaneamente para o caminho percorrido e gosta do que vê, de quem consegue lidar, em paz, com o rasto deixado pelas suas pegadas. Não é o meu caso. Pelo menos não tem sido, ultimamente. E sempre que sinto que não é o meu caso eu questiono-me se alguma vez o foi. Se, nas vezes que eu pensei que era o meu caso, não estava justamente com os pés fora da terra, não estava a colorir a realidade, não estava num estado de euforia tal que me impedia de ver o que realmente era e projetava o que desejava que fosse.

Ainda penso, algumas vezes, talvez por defesa, que os pés na terra são demasiado sobrevalorizados. Outras vezes penso, por pura estupidez, que os pés na terra têm um problema de compatibilidade com a fé, como se a fé pudesse ser algo etéreo e desligada da vida e ter os pés na terra não fosse condição necessária para se poder ter uma vida de fé. A forma como vivo a fé chama-me forçosamente à terra. Chama-me a ser realista, a ver as pessoas com olhos de ver, mas a adotar uma visão larga, sem me render ao momento, procurando enquadrar toda a sua história, toda a nossa história comum, feita sempre de caminhos partilhados, conversas partilhadas, confissões mútuas de alegrias e tristezas. E ver as pessoas assim, ler as pessoas assim, é, na melhor das hipóteses, entendida como ter os pés meios fora da terra, para muita gente.

Creio que todos somos mais brandos com os fantasmas alheios que com os nossos próprios fantasmas. Que lhes damos mais largura, mais abertura, que os toleramos melhor, os conseguimos ler melhor, até pela maior distância, encarando-os com a naturalidade de quem sabe que as pessoas se amam apesar dos seus fantasmas. E creio que todos somos demasiado severos com os nossos próprios fantasmas, que nos são demasiado visíveis, demasiado presentes, por vezes até demasiado castradores. E todos conhecemos pessoas que conhecem os nossos fantasmas pelo nome, são mais íntimos deles que nós próprios, e até têm a autoridade de os colocar no seu lugar. E nos dizem, com a doçura proveniente de uma sabedoria profunda, que temos que por os pés na terra.

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