20201211

202012111230

Eu sei o que é viver imerso no medo. Eu sei o que é acordar com ataques de pânico. Eu sei o que é ter pesadelos e acordar e desejar com todas as forças regressar ao pesadelo. Eu sei o que é viver de cabeça baixa, com vergonha de olhar ao espelho, com medo que descubram quem sou (era). Eu sei o que é o medo, como nos tolhe, como nos limita, como toma conta de tudo em nós, dos nossos pensamentos, gestos atitudes, olhares, fantasias. Eu sei como se insidia, como se instala, como nos trabalha por dentro, como nos leva a ver o que não existe alterando completamente a perceção da realidade, escurecendo-a, enegrumando-a. Eu detesto o medo. Visceralmente.

Esta semana disseram-me que o confinamento me tinha feito bem. Que estou mais calmo, mais ponderado, atribuindo a cada coisa o seu devido peso, sem dramatismos bacocos que não ajudam ninguém a crescer. "Estás mais sábio". Sorri, querendo muito acreditar que sim, sabendo certamente que não. Ainda não, pelo menos. Porventura, poderei ter mais momentos de serenidade que de sobressalto, mais sobriedade e menos perturbação. Provavelmente seleciono melhor, e também oculto melhor, não procurando fora o que já vou encontrando dentro de mim. E sobretudo vou tendo menos medo, mais confiança, naquilo que a confiança tem de fundamento, de ponto de partida, de olhar em diante. Terei, com sorte, as costas mais direitas, já não me vergo tanto ao sabor do vento das palavras abonatórias que me são dirigidas, já não as procuro tanto, pelo menos não em tantas pessoas, não em todos, apenas em alguns, em quem reconheço sabedoria, em quem busco norte, em quem encontro rumo. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Não é tudo a mesma coisa. Nesta lapaliçada encontro por vezes essa distância que me permite observar e extrair o que de mais importa. A serenidade, o encontro, o Pai, eu.

Hoje acordei com a sensação que 2021 vai ser um ano bom. Todos aqueles a quem disse isto olharam-me com menos estranheza que se estivesse vestido de Pai Natal. Uns encolheram ombros, outros riram, outros juntaram esta àquelas declarações completamente desligadas da realidade que volta e meia me saem prodigamente da boca para fora. Talvez seja vontade que este clima de medo acabe, talvez seja a irresistível vontade de voltar a sentir o calor do abraço, a força do aperto de mão, o leve toque que é simultâneamente elo de ligação, transmissor de quentura, energia, carinho... talvez seja isso tudo e mais alguma coisa. Não é importante. Importante mesmo é que é que o que sinto. E isso rouba o medo de mim e coloca no seu lugar a esperança. E a vida, assim, é bem melhor.
 

20201207

Fratelli Tutti - Artigo para O Poço

 

 

Rerum Novarum, 1891. Poderia apostar que quase ninguém sabe o que é. No entanto, é um documento importantíssimo na História da Igreja. O mundo ocidental de então estava no início da industrialização e, com ela, a procura da riqueza exacerbada, a qualquer custo, sob qualquer sacrifício. O Papa Leão XIII, constatando a progressiva exploração e consequente desumanização dos operários que, considerados meras ferramentas produtivas, trabalhavam horas e dias a fio, publica no dia 15 de maio de 1891 a encíclica Rerum Novarum (Das Coisas Novas), Sobre a Condição dos Operários. Nesta encíclica, que é tida como a fundadora da Doutrina Social da Igreja, é lançado um olhar sobre os vários aspetos que orientam a sociedade: o primado do trabalho, a noção de bem comum, o salário justo, os direitos e deveres dos trabalhadores e dos detentores do capital. Para espanto de muitos, incentivava os trabalhadores a organizarem-se em sindicatos, avisando, no entanto, do perigo encantatório dos “ismos” – socialismo, comunismo, capitalismo, liberalismo – que mais não pretendiam que instrumentalizar o homem, sonegando-lhe a humanidade.

Depois da Rerum Novarum foram várias as encíclicas sociais escritas pelos Papas que sucederam a Leão XIII. À medida que o mundo se transformava - e com ele as relações sociais, económicas e políticas - o olhar da Igreja era atualizado, oferecendo novas propostas, apontando novos equilíbrios, mas tendo sempre como prioridades a pessoa humana e o bem comum, essenciais para transformar a sociedade com a força do evangelho, contribuindo na construção do Reino de Deus.

Recentemente, a 3 de outubro último, o Papa Francisco fez publicar, em Assis, a encíclica Fratelli Tutti, Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, na qual propõe “uma forma de vida com sabor a Evangelho”, numa “humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.”

Logo no primeiro capítulo, o Papa Francisco faz uma leitura desencantada da atualidade, pois constituem “tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal”. Refere o sonho de uma Europa unida que não se concretizou, dos sinais de regressão da história, com novas formas de egoísmo e de perda do sentido social. Importante para o Papa Francisco – que veio do fim do mundo, como disse em tom de brincadeira logo depois da sua eleição – é a tentação para a imposição de “um modelo cultural único, que unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”, que “nos torna vizinhos, mas não nos faz irmãos.” Já na Christus vivit, a Exortação Apostólica aos Jovens, o Papa Francisco alertava para os perigos do desenraizamento como forma de as ideologias reinarem sem oposições. Neste capítulo, duro, como acontece sempre que precisamos de ver e não apenas olhar para a realidade, são-nos recordadas a cultura do descarte, a escassez dos Direitos Humanos, que não são ainda para todos, os conflitos e medos atuais, passando pela pandemia, globalização e progresso. É um retrato desencantado, de um mundo doente, cujos sintomas importa analisar para que se possam tratar adequadamente.

E o tratamento, no entendimento do Papa Francisco, é-nos tão familiar quanto difícil de concretizar. Na realidade, é-nos recordada uma daquelas parábolas que lemos vezes sem conta, que conhecemos de trás para a frente, mas remetemos para outros tempos e, se possível, outras personalidades. Efetivamente, o Papa Francisco escolhe a parábola do Bom Samaritano como fundamento teológico da cura, como forma de ser e de fazer, recordando-nos que “é o amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa.”

Saboreando esta parábola, conseguimos apreciar a sua atualidade, até porque o Samaritano deu ao homem que tinha sido assaltado e ferido, “algo que, neste mundo apressado, regateamos tanto: deu-lhe o seu tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar aquele dia a bem das suas necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo.” Soa-nos familiar? Certamente! De facto, “estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios. São sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento.” E continua o Papa Francisco: “Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada.” Assim, a única solução para uma sociedade enferma é cuidarmos “da fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano.”

Os capítulos que se seguem fornecem-nos as pistas para a ação. Detetada a maleita, consciencializadas as suas origens, conhecido o seu remédio, importa agora estendê-lo a todas as vertentes da sociedade. O Papa Francisco, ao longo dos restantes capítulos desta belíssima e encantadoramente simples e acessível encíclica, vai desmistificando e desmontando argumentos que escutamos todos os dias, evidenciando a vacuidade de chavões como aquele que vem da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, sendo que a Fraternidade ficou esquecida, quando “tem algo de positivo a oferecer à Liberdade e à Igualdade. Que sucede quando não há a fraternidade conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade, traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores? Sucede que a liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar.”

Naturalmente, a encíclica Fratelli Tutti é demasiado rica para que possa ser devidamente escalpelizada nestas páginas. Nem é isso que se pretende, mas apenas suscitar a leitura de um documento tão importante e basilar para todos os cristãos e homens de boa vontade.

Na nossa paróquia esta não é uma linguagem estranha para nós. Graças a Deus, e ao nosso pároco, somos uma paróquia atenta aos mais desfavorecidos, aos que habitam as margens. Iniciativas como a Mesa de São Pedro, os Vicentinos, a forma como acolhemos a família Síria, são pequenos exemplos de como podemos e devemos imitar o Bom Samaritano e cuidar de quem está física ou moralmente ferido. No entanto, continuamos a virar a cara para o lado, continuamos a escolher não ver, continuamos a seguir caminho, por vezes enchendo-nos de boas mas artificiais justificações para que continuemos a conseguir viver com a nossa má consciência. Todos temos ainda muito que caminhar. Gostaria, por isso, de terminar com parte de uma das orações com que o Papa Francisco termina esta encíclica:

“Concedei-nos, a nós cristãos, que vivamos o Evangelho e reconheçamos Cristo em cada ser humano, para O vermos crucificado nas angústias dos abandonados e dos esquecidos deste mundo e ressuscitado em cada irmão que se levanta.”

Tão simples e, no entanto, tão exigente!

 

 

 

20201129

202011291951

Eu acredito que um dia estarei de frente para Deus. Acredito que ele me acolherá, com o Seu amor de Pai, e me confrontará com a minha vida. Acredito que nos sentaremos numa conversa onde o tempo é sem tempo, que é o que acontece com quem se ama. Hoje estava na eucaristia e pensava nisto. O meu pároco dissera na homilia que ninguém se salva sozinho e nessas alturas eu sorrio sempre, agradeço sempre. Eu sei, desde sempre, que sozinho não teria a mínima hipótese. Sei-o desde sempre porque desde sempre fui resgatado por quem me ama o suficiente para me salvar de mim próprio. Sempre tive quem me dissesse "basta", quem me acordasse e abanasse e me fizesse chegar onde eu jamais chegaria sozinho. Às vezes, naquelas vezes em que preciso de ver o outro lado da vida, gosto de pensar que se calhar isto é também um dom. Deixar-me levar, deixar-me conduzir para melhores lugares de mim. Ou então ser suficientemente amável pelos outros, ao ponto que eles se preocupem verdadeiramente comigo, ao ponto de me verem para além de mim. No entanto, mesmo nesses dias, o que sinto é gratidão. Porque alguém que é moldável pode sê-lo de muitas maneiras. E se acredito e confio que, um dia, estarei junto do Pai em amena conversa de quem se ama, é porque Ele entenderá que, apesar de mim, foi o Amor dos outros que me salvou.

20201119

202011191215

Acabo de receber a notícia da morte de mais um amigo, neste tradicionalmente nefasto mês, neste demasiado nefasto ano. Como sempre, há o toque a recolher das imensas memórias do imenso que fizemos juntos, particularmente quando éramos ambos novos e vivíamos a cumplicidade da idade da procura. Depois, como acontece com tantos de nós, acabamos por seguir rumos diferentes, sem nunca perdermos os pontos de contacto que nos mantinham debaixo da vista.  Na última vez que conversamos estávamos todos em recolhimento forçado. Ontem mesmo enviava um beijinho à sua mulher, nossa companheira no tempo das descobertas, sua desde sempre. E para o seu sempre. 

À medida que o tempo passa vamos conversando sobre a morte. De coisas tão simples como códigos e palavras passe e contas e procedimentos que se devem adoptar para que ninguém fique de repente com as calças na mão. Há três ou quatro anos estas eram conversas quase impossíveis de se ter. Eu andava obcecado com a forma como me apresentaria diante de Deus e com a mania de morrer como os elefantes - sozinho, afastado de todos - e isso era insuportável para os meus. Entretanto, resolvi-me, pacifiquei-me e reencontrei-me. E aos meus. E isso é bom. No sábado, quando vínhamos de cuidar da campa dos nossos, disse que gostaria que fossemos enterrados juntos, o que é uma grande e significativa mudança, depois de toda a vida ter insistido que queria ser cremado. Depois rimo-nos, constatando a nossa caminhada para a velhice, apreciando-a e sonhando com o imenso que virá. 

Creio que seria mais ou menos esta a tranquilidade que a minha avó sentia quando vestia a roupa que escolhera para o seu funeral, se deitava na cama em posição de morta (como ela dizia) e dizia a Deus que estava pronta. "Depois, filho, ao fim de meia hora, percebia que não era hoje e troquei de roupa e fiz a minha vida", dizia-me ela entre risos. Recordo-nos e Às nossas conversas muitas vezes! Mas isso era uma coisa: a minha avó estava nos noventas de uma vida cheia de peripécias mais más que boas mas tinha-se reconciliado consigo, com Deus e com a Vida.

Outra coisa diferente, muito diferente, é esta malfadada notícia.

20201029

202010291518

Hoje estou de baixa. Pela primeira vez desde que comecei a trabalhar, já lá vão 39 anos! E foi quase uma imposição da minha médica de família, que quis assegurar a possibilidade de eu ter, efetivamente, contraído o COVD-19. Estou confinado ao quarto das minhas filhas, a comida é-me colocada à porta e isso tudo é muito esquisito. A Isabel dorme no quarto ao lado mas para todos os efeitos é quase como se estivesse do outro lado da vida. Tenho a certeza quase absoluta que isto é apenas a gripe que costumo apanhar por volta desta altura e que se os tempos fossem outros hoje eu já teria ido trabalhar, apesar da febre. Mas muita coisa mudou ao longo deste ano e o medo instalou-se e a pulsão que todos sentimos é a de que mais vale prevenir. As notícias são muito más dia após dia e o que eu não queria mesmo era engrossar o número dos hospitalizados. Nem sequer é por mim, mas por aqueles que estão há tanto tempo a lidar com tudo isto e que a última coisa que necessitam é de uma marmanjão com quase 100 kgs a dar-lhes trabalho. E também por aqueles que ficam sobrecarregados com a minha ausência, como ficamos nós na semana passada com a ausência de um dos nossos, particularmente numa altura em que apenas podemos contar connosco, sem voluntários ou monitores. Esta pandemia prova mesmo, à saciedade, que estamos todos interligados e interdependentes. As coisas fazem-se e continuam a acontecer mas falta aquilo que nos é mais importante, o que nos subtrai a sensação que somos meras peças de uma máquina: o abraço, o sorriso, o calor da nossa humanidade. Há por isso uma sensação de culpa por ter que ficar em casa, apesar de não ter sido uma escolha mas uma imposição do próprio sistema de saúde, mas confesso que tenho que apelar à minha parca racionalidade para entender e não agir por moto próprio. Afinal, nesta altura do campeonato, é isso que me é pedido: que penso nos outros antes de pensar em mim.

20201023

202010231508

Vagueio muitas vezes pelas redes sociais. Sobretudo por motivos profissionais porque, trabalhando sobretudo com malta nova tenho que ir onde eles estão se quiser perceber melhor como lhes transmitir o que quero transmitir. Mas não só. Das inúmeras idiotices que se podem ver por lá asseguro que as mais graves e mais escabrosas até nem vêm de gente nova mas de pessoas que já teriam idade para ter algum juízo. Com incrível facilidade se lêem insultos e se depara com intolerâncias que carregam uma violência tal que apenas acontecem porque quem as escreve está salvaguardado pela distância física pois de outra maneira não teria certamente coragem para o fazer. E se o tema é futebol, então, espanto-me com a extraordinária facilidade com que personalidades públicas se permitem revelar daquela forma e se esquecem que não há limite para quem irá ler aquelas coisas. Por isso tento sempre desmistificar quando dizem que os jovens dizem e fazem o que não deviam nas redes sociais. Não que seja mentira. Mas não detêm a exclusividade da estupidez revelada.

20201020

202010201045

 Às vezes há mesmo teocidências, como diz a Daniela. Andava já há algumas semanas com uma questão cá por dentro: que tipo apóstolo serei eu? Instintivamente, sempre fui Pedro, não porque o admire mais - admiro mais a serenidade de João e a tenacidade de Paulo - mas porque me reconheço sobretudo na localização dos eu coração, bem pertinho da boca, o que  leva a dizer e a fazer disparates apenas contrabalançados pela sua extraordinária humanidade. Eu intuía isto até ontem, quando li  um extraordinário artigo de opinião do Bruno Vieira Amaral que coloquei ontem no outro blogue e que pode ser lido aqui. https://paraalemdomeuhorizonte.blogspot.com/2020/10/a-paixao-de-pedro.html. À medida que o lia parecia-me que encaixava tudo o que vinha a pensar, como se o autor o tivesse perscrutado na minha cabeça e depois tivesse a arte e engenho de o colocar no papel. Claro que associado a tudo isso vem sempre aquela sensação que nem que eu escrevesse cem anos seguidos conseguiria fazê-lo daquela maneira e, agarrada a esta, a questão que eu me coloco inúmeras vezes: então para que escrevo? E recordo a mim próprio que na verdade não escrevo para ser lido mas para ser escutado por mim próprio. Escrever é, para mim, um processo muito mais de organização mental e sentimental, até de alguma catarse, que de revelação do que quer que seja. Por isso é que escrevo sempre muito mais - e melhor - em situações de conflito interior, em situações de procura, em situações de quase desespero em que o que mais quero é silenciar as vozes que se digladiam aos berros cá por dentro e às quais apenas consigo imprimir alguma serenidade depois de as arrumar devidamente nas prateleiras mentais a que pertencem. Às vezes perguntam-me porque não escrevo um livro. É fácil, não sou nem jamais serei um escritor. Quando muito, serei um vomitador de palavras porque o processo é idêntico, vem do mesmo sítio, das entranhas revoltas que precisam de uma escapatória, nem que seja um qualquer pedaço de papel onde possa rabiscar qualquer coisa. Não um escritor, que pressupõe disciplina e trabalho e vontade e arte e engenho e preocupação com quem vai ler. A minha escrita não tem nem pretende ter nada disso. Apenas proporcionar alguma paz. Interior.


20201013

202010130932

Fosse eu ao que publiquei sempre por volta desta altura e tenho a certeza que o momento se repetiria. Passado o primeiro embate, superadas as primeiras dificuldades, entro no ritmo como se lá permanecesse desde sempre e para sempre. A rotina instala-se, as soluções procuram-se encontram-se, e os dias sucedem às noites a uma velocidade vertiginosa. E por volta desta altura, focado que estou no eficaz, como que acordo da letargia e sinto uma terrível falta do belo. As coisas da cabeça, apesar de fundamentais, sabem a pouco, a muito pouco, e estão longe de esgotar o sentido do que procuro. Mesmo agora, que faço aquilo para que acredito que nasci, o que faço não é, de todo, o que eu sou. Porque gosto de escutar - e isso deve transparecer - oiço frequentemente, daqueles com quem trabalho, que se sentem meras peças de engrenagem, ferramentas cuja única função é permitir que a máquina funcione. Quando lhes pergunto o que fazem, o que pensam, a que se dedicam para além do trabalho, a resposta não surge facilmente, e vem invariavelmente acompanhada do factor tempo... e culpa. O belo faz imensa falta. Sobretudo em tempos de pandemia, quando nos sentimos coartados na expressão dos nossos sentimentos, nos abraços, nos sorrisos adivinhados por detrás das máscaras - vá lá, recordamos que os olhos também sorriem - e tudo é e deve ser contido.

20200923

202009231053

Corro muitas vezes atrás de coisas que não interessam para coisa nenhuma. Discussões, ideiais, espumas, que ao fim de quinze dias já nem na memória ocupam lugar ou espaço. Puras perdas de tempo. Uma das minhas filhas é assim e eu espanto-me sempre que constato nela essa ânsia de correr atrás de moinhos de vento. Assume todas as discussões como se fossem fundamentais e, como eu instintivamente faço o mesmo, acabamos quase sempre em alta voz a debatermo-nos sobre coisa nenhuma, sem sequer nos apercebermos que estamos em concordância. A idade, no entanto, volta e meia vai-me permitindo algum juízo e já consigo ir distinguindo o essencial do acessório. 

Lembrei-me disto ao ler um artigo acerca da descoberta do sexo por puro prazer, sem amor, depois dos quarenta. Aquele que pretendia ser um artigo liberalizador da mulher eu li como uma rendição. O artigo terminava com a constatação que a mulher em causa não era tão feliz (como era quando o sexo não era apenas prazer mas também afetividade) mas era livre, e isso era imenso. Pensei que esteé um tema de conversa recorrente com os meus filhos e como, para facilitar, lhes recomendo uma escala de valores em forma de pirâmide. Nessa escala, a felicidade está mais perto da base que a liberdade, o que significa que a liberdade é caminho (para mim, fundamental)  para a felicidade e não o contrário. Na maior parte das vezes, inverter as coisas é uma armadilha que conduz à perda de ambas, a um solitário enredamento que vagueia entre auto-aprisionamento e estados de espírito fugazmente satisfatórios mas longe, muito longe, da felicidade.

Estou mesmo a ver a quantidade de ses e mas com que vou ter que lidar, mas parece-me uma boa conversa a ter com os meus filhos :-)


20200909

202009091034

Uma das formas de avaliar o impactante na minha vida é o distanciamento. Eu, que tenho a propensão para o inebriamento do momento, normalmente preciso desse hiato de tempo para discernir os acontecimentos verdadeiramente importantes. 

Diz-se que longe da vista é equivalente a longe do coração, e assim seria se não fosse essa coisa que, segundo alguns, é apenas nossa, que é a saudade, essa coisa boa que aquece o coração, torna presentes os ausentes, menosprezando o tempo.

Nas eucaristias começa-me a faltar o tempo para recordar aqueles que partiram. Antes, nesse momento, recordava uma ou duas pessoas e agora são já tantas que quase sempre a eucaristia continua sem mim. Parece que de repente a morte passa a fazer parte da vida, não permitindo remetê-la para as calendas, para o ainda falta muito, para o terei muito tempo para pensar nisso. Todas as semanas morre alguém que carrega consigo uma parte das minhas memórias, e já sei que a cada notícia de morte são as memórias conjuntas que fazem a sua aparição, não como estertor mas como gratidão.

E há mortes e mortes. Há aquelas que se prevêem e dão tempo para nos despedirmos nem que seja interiormente, e há aquelas que nos desabam em cima e nos fazem desabar com elas. A notícia da morte de um miúdo com quem tenho boas memórias é daquelas que, se fosse eu a mandar, nunca teria lugar. Não sou. Resta-me a inevitabilidade da memória, que às vezes é também dor. Resta-me a humildade da dor, que às vezes é também memória.

20200904

Acolher, Discernir, Transformar, Retribuir, Agradecer

Os meus começos são sempre sonho. Depois poderão passar a projetos, mas em primeiríssimo lugar são sonhos. E gosto que o sejam. Porventura não demasiado ligados à realidade, porventura prenhes de impossibilidade, porventura irrealizáveis. Pouco importa. A vida vivida encarregar-se-à de me recolocar no lugar, de ajustar as expectativas, de me confrontar com os meus limites. 

Os meus começos têm sempre um percurso idealizado, com etapas mentais onde, no começo - e quase sempre apenas no começo - tudo encaixo para que tudo faça sentido, para que eu possa crescer, para que eu possa manter a ilusão que o tempo traz consigo mais sabedoria. Este ano, este começo, tem também o seu percurso, uma espécie de mantra que procurarei recordar em cada dia: Acolher, Discernir, Transformar, Retribuir, Agradecer.

Ontem, enquanto arrumava a cozinha, olhava para a esponja que tinha na mão. A forma como o líquido da loiça desaparece em si e se mistura com a água que cai da torneira, como a mistura que daí resulta serve para desengordurar e limpar a loiça, por mais suja que ela esteja e, finalmente, o seu retorno à essência, depois de se voltar a passar por água. Posso aprender com a esponja este deixar-me impregnar, este tornar-me prenhe do que me é dado; esta permissão para a permeabilidade sem perder a essência, esta capacidade de transformar e de devolver, retribuir, para tornar as coisas melhores, mais limpas, mais ricas, prontas para nova vida.

Acredito que a capacidade de acolher, sejam pessoas, sejam acontecimentos, é mais que meio caminho andado para a felicidade, Tornar meu, incorporar, interiorizar, ao invés de batalhar contra o que vem ao meu encontro, permite-me a serenidade imprescindível para o discernimento. Deste acontecimento, desta pessoa, desta palavra, o que é para guardar, o que é para deitar fora, o que é para transformar e enriquecer? E como o posso fazer, como o posso transmitir, com que gestos, com que palavras, com que atitudes posso envolver os outros nessa aprendizagem? E, no final, Agradecer, a outra mais de metade do caminho para a felicidade. Quem agradece, quem sente, vive e transmite a gratidão que emana das entranhas sabe-se mútuo, sabe-se companheiro e acompanhado, sabe-se mestre e aprendiz, sabe-se caminhante e caminho, sabe-se legado e herdeiro, parte imprescindível de uma realidade que vai infinitamente para além do próprio umbigo. 

Acolher, Discernir, Transformar, Retribuir, Agradecer. Eu avisei: os meus começos são sempre sonho! Qualquer coincidência com a realidade é pura teocidência.

20200827

202008271453

Recordo uma deliciosa conversa de muitos anos: eu, um padre e um amigo então ligado à comunicação social. Eu, na altura como sempre à procura de segurança, perguntei se não seria melhor termos orgãos de comunicação social confessadamente católicos. Dessa forma, argumentava eu, saberíamos exactamente em que acreditar. O padre encolheu os ombros e o meu amigo, então ligado à comunicação social, disse logo que não, que o melhor era que os católicos que trabalham na comunicação social fossem verdadeiros e dessa forma tudo seria melhor. Serviu-me de exemplo e desde então tomo essa maneira de fazer como boa para tudo: é-se testemunho no que fazemos qualquer que seja o lugar, altura ou disposição.

Ontem lembrei-me desta conversa quando vi que um partido que eu desconhecia mas se intitula democrata cristão se vai aliar ao Chega. Incomodou-me, claro. Não tem tanto a ver com o Chega - mas tem um bocado, confesso - mas com a audácia de um partido se auto-intitular democrata cristão. Eu entendo que um cristão pode e deve ser político, no sentido de procurar e contribuir para uma sociedade onde cada um possa encontrar, em total liberdade, o seu lugar. Pode fazê-lo dentro ou fora de um partido, nas maiores e mais pequenas realizações da sua vida. Este olhar atento sobre o mundo que nos rodeia faz parte do ser cristão, é-nos intrínseco, sem possibilidade de menorização. Como o Papa Francisco não se cansa de referir, é importante ver e agir. Em todos os momentos da nossa vida. Por isso, desde que, há largos anos, iniciei os meus estudos nesta área, me parece que a a bitola de um cristão não é um partido político mas a Doutrina Social da Igreja, o seu olhar atento e as pistas que, sucessivamente, vai dando para que possamos contribuir para viver num mundo melhor. E quando eu olho para os partidos - e olho com alguma atenção para todos - consigo encontrar em quase todos pequenos pedaços da DSI, ainda que não explicitamente referenciada. E um daqueles que me parece estar mais longe é justamente o Chega com o seu incentivo ao medo, a sua aposta na exclusão, a sua necessidade de construir muros. Daí que não entenda como um partido que se diz democrata cristão possa querer fazer parte de uma estrutura assim. E isso incomoda-me.

 


20200824

202008241056

Penso em demasia. Sempre. Desde sempre. Tempos houve em que isso era uma bênção. Noutros, uma maldição. Agora, como outras realidades em mim, tento aceitar tal como são para as poder trabalhar. Vem isto a propósito da oração da manhã de hoje, que a dado momento pergunta se obedeço à minha consciência, não a traindo para agradar aos amigos. Comecei logo a divagar: o que forma a minha consciência? É algo que vem comigo, que nasce de dentro, ou que vem de fora, do que vejo e escuto? E o que vem de dentro é sempre mais importante que o que vem de fora? E sou melhor quando escuto o que vem de fora ou o que vem de dentro? A qual das duas vozes - entre tantas outra que me habitam - devo obedecer? Sendo assim, não é demasiado simplista dizer-me que devo obedecer à minha consciência? 

Admiro muito os corações simples, os que pouco questionam, os que são suficientemente seguros de si para não sentirem esta necessidade de se questionarem. Muitas vezes quis eu próprio ser assim, com as certezas das coisas simples, com a sabedoria das pessoas simples. Mas esse não sou eu. E é comigo que tenho que me entender. E um bom princípio base para o fazer, todos os dias, é, perante a dúvida, ter a presença de espírito para me perguntar o que faria Jesus. Talvez dessa forma, descortinando a sua consciência, consiga estar mais perto da minha consciência. Mais perto da perfeição estarei com toda a certeza.

20200810

202008100939

Aprendo muitíssimo com a interioridade. Não é apenas em termos de reflexão, ou serenidade momentânea enquanto a pratico, mas na vida, nas escolhas que vou fazendo ou na forma como vou escolhendo. Talvez a coisa mais importante que aprendi foi a chamar a mim o que me rodeia. Antes de a conhecer e de a praticar, tinha a ideia que precisava de tirar o mundo de mim para que me pudesse encontrar. Cedo aprendi, no entanto, que o primeiro passo para um bom recolhimento é fazer o movimento oposto, é chamar a mim o que me rodeia para que me possa habitar. Um movimento simples, que acontece logo no início, é justamente escutar atentamente e assimilar, incorporar, o que se escuta. Apenas assim, tornando-o meu, o som que escuto pode ser reorganizado. Este gesto, este movimento, não me afasta do mundo mas coloca o mundo em mim. 

 

20200727

202007270922

A vida é o que é e vou percebendo que, apesar das minhas fantasias, saber ler as circunstâncias permite-me traçar rumos e calcorrear melhores caminhos. Ontem foi dia dos avós e não pensei nos meus mas nos dos meus filhos. Quanto aos meus, não há muito a dizer. A Teta tem o património exclusivo da ternura dos avós na minha vida, e mesmo nesse caso, foi porque, por minha iniciativa, nos aproximamos no final da sua vida. Fora isso, não haveria muito a dizer. Não tenho memória alguma do avô materno, tenho uma memória muitíssimo ténue do meu avô paterno e a que tenho da avó paterna é tudo menos agradável... apesar de ser minha madrinha. Houve alturas - muitas! - em que o meu maior desejo era ter avós e pais normais, como os dos meus amigos, como via nos filmes, como lia nos livros. Não era isso que acontecia, nunca foi, a não ser quando tivemos a nossa própria família, que pudemos construir e educar segundo aquilo que entendemos como o melhor. E foi, durante muito tempo, uma mágoa. Que se acentua invariavelmente nos dias especiais. Nestes dias - do pai, da mãe, dos avós - à medida que vou vendo as partilhas na redes sociais, que vou vendo e lendo as reportagens que proliferam na comunicação social, acabo sempre a concluir que o defeito é meu. Que devo ter uma hipersensibilidade qualquer que me impediu sempre de os ver como devem ser vistos, que, nisto como em muitas outras coisas, há uma certa baralhação entre o real e o imaginário que me habita. Á medida que o tempo passa por mim vou assentando os pés na terra e vou-me esforçando por valorizar o que tive - e terei não por muito tempo. Faço uma releitura dos acontecimentos mais marcantes e tento fazer incidir sobre eles uma outra luz, que me permita ver o que até então permaneceu escondido. Nem sempre o consigo. Nem sempre permito que a mágoa dê lugar a boas memórias. Provavelmente porque nem sempre as consigo descortinar por entre os acontecimentos, ou a memória que tenho deles. No entanto, é um exercício importante. Porque mesmo quando a mágoa permanece, incorporo-a, dou-lhe as boas vindas, torno-a parte de mim. Porque a mágoa, particularmente no que diz respeito à família que era antes da minha, faz parte de mim. E eu tenho que viver com ela. O melhor que sei.

20200723

202007230845

Ultimamente tenho tido exemplos e conversas acerca desses exemplos de pessoas que têm tido atitudes diversas quando chegam ao fim da linha profissional. Umas, pacificadas, preparam e aceitam esse momento com tremenda tranquilidade, transpirando paz de espírito. Outros ficam angustiados, arrastando-se pelos corredores lembrando-me os zombies, que apesar de caírem aos pedaços, ainda se mantém em pé contra tudo e contra todos.
Sempre tive o meu pai como um destes: trabalhou desde menino, primeiro nos campos de Mouriz e depois nas muitas atividades que foi desempenhando ao longo dos anos. Reformou-se aos 65 anos mas apenas no ano passos, com 7e anos, deixou de trabalhar. Para se dedicar a minha mãe. Nos primeiros meses correu espantosamente bem, mas recentemente tive ecos de que estaria com alguns sintomas de depressão.Que não me surpreendem. Cuidar da minha mãe, apesar de ser um trabalho de quase 24 horas, é pouco para quem toda a vida saía de manha e regressava à noite. Vamos ter que conversar acerca disto. Não sei como, ainda, porque as nossas conversas sérias implicam sempre alguma dor e bastante desconforto, mas terá que acontecer.
É curioso como à medida que o tempo passa vou ficando mais atento a essa altura da vida. Espero sinceramente ir-me preparando para que, chegado o momento, possa ser daqueles que transpiram serenidade. Um bom amigo, daqueles a quem dedico uma atenção especial para poder calcorrear os seus caminhos, dizia-me esta semana que, quando se está de bem com a vida e rodeado das pessoas certas, tudo é mais fácil. E isso enche-me de esperança: sempre tive a bênção de ter na minha vida as pessoas certas e, agora, vou-me sentindo cada vez mais de paz com a vida. Gosto de pensar que poderei estar no caminho certo.

20200722

202007221509

Tentar descobrir Jesus nos outros, a cada momento, é um exercício que tem tanto de belo como de difícil. É certo que logo que consciencializo a intenção de o fazer já percorri mais de meio caminho: altera-se a atenção, o cuidado, e o propósito fica mais perto do alcance. Mas continua longe de me ser natural. E fácil. Uma parte importante dos meus dias e do meu trabalho é servir as pessoas. Servir mesmo, porque nenhuma delas paga e a nenhuma delas é mais pedido que a presença e, uma vez presente, que saiba estar. Volta e meia, quando corre bem lá vem uma palavra de gratidão ou reconhecimento, o que, não sendo o nosso propósito, serve também de alento. Mas na outra meia volta lidamos também com pessoas que , sendo-lhes dado tudo, acham-se ainda no direito de cobrar, de exigir, de se queixarem. E é com estas e nestas que é mais difícil descortinar Jesus, que se deve entreter a brincar às escondidinhas algures dentro delas. A estas apetece logo responder curto e grosso - uma linguagem que é a sua e que entendem muito bem - mas contenho-me, procuro-O, e tento, ainda assim, enveredar pela docilidade e atenção. Não é fácil, nunca é, mas ainda assim parece-me ser o caminho a seguir. Ou a tentar, pelo menos.

20200717

202007171210



Levei muitos anos, travei muitas inglórias batalhas contra imaginários moínhos, para perceber a minha forma de ser inteiro. Pensava eu que para ser inteiro deveria ser granítico, monobloco, sem rachadelas ou quebras, um pedaço que, pelo menos à vista desarmada, se apresentasse perfeito, incólume, sem falhas. E cada falha era tida por mim como um atentado a essa pretensão, como um desastre, como algo que deveria ser removido, o que normalmente significava ter que ser escondido do olhar, meu e dos outros. Tarde, mais ainda muito a tempo, o Meus fizeram-me perceber a minha idiotice. Que todos viam as minhas falhas, sabiam delas, e que, embora não gostassem particularmente delas, disseram que me amavam com elas, apesar delas, já que essas falhas são também o que eu sou.
O curioso é que eu sempre gostei mais do antigo que do moderno. Sempre gostei das casas que apresentam marcas de uso, falhas e fendas, que interpreto sempre como marcas de vida. Gosto imenso das páginas amarelecidas dos livros antigos, dobradas, sarrabiscadas, patentes do espanto, da curiosidade e dos ensinamentos que proporcionaram a alguém antes de mim. Aprecio jarras e pratos daqueles do campo, que se põem na parede e onde a água é ainda mais fresca. O novo e o perfeito, portanto, para mim nunca ganharam aos efeitos do tempo, à história, ao uso que as coisas e a vida devem ter. Tal como diz o Padre Almiro, "mais vale uma vida gasta que uma vida enferrujada". E tudo isto sempre foi mais importante para mim. Exceto quando eu era o alvo da minha atenção.
Agora vou lidando um pouco melhor com as minhas falhas. Já não as escondo, já as assumo perante os outros, já percebo que nem todos gostam e têm direito a não gostar sem por em causa o seu e o meu direito a ser. É uma aprendizagem, claro. Até porque é um caminho. Que só agora comecei a percorrer.

20200711

202007111034

"Que possas caminhar devagar" Parece fraco conselho. Pelo menos foi isso que eu senti quando o li, algures ameio do "Meia-Noite ou O Princípio do Mundo", do Richard Zimler. Como muitas vezes me acontece nas minhas leituras - há livros onde me demoro meses a fio - fechei-o e dei tempo e espaço para que esse conselho ecoasse em mim. E lá fui percebendo.
Durante estas duas últimas semanas pensei nesse conselho várias vezes. Na verdade, nem sempre me posso dar a luxo de caminhar devagar. O tempo urge, os afazeres também, e há uma espécie de urgência que, estupidamente, nem sempre é efetiva mas imaginária, interior, mais auto-imposta que ditada pelos acontecimentos. São rabos de palha, coisas que ficam cá por dentro e impedem de fechar e arrumar outras coisas que deveriam fazer já parte do passado roubando-me o sossego e a tranquilidade. E eu até tenho uma vantagem relativamente à maior parte das pessoas: nessas alturas gaguejo mais e quando me interrogo porque gaguejo mais reparo que a respiração é mais esforçada, menos pausada, e esse é um sintoma da intranquilidade que até então me passava despercebida. E que preciso de parar para escutar.
Poder caminhar devagar é, mais que um privilégio, uma forma de vida. Poder saborear o tempo, poder saborear o percurso do pensamento, poder saborear a oração, a tranquilidade, o silêncio, pauta muito o que pode ser o meu dia. Caminhar devagar é, assim, de alguma forma, definir o ritmo da passada da vida, não como dono e senhor do tempo - os donos e senhores nunca têm tempo para o tempo - mas como discípulo que escuta e procura perguntas.

20200710

202007100927

Por vezes tenho alguma dificuldade em entender a dificuldade alheia em viver num clima de interiorização e espiritualidade. Eu, que caminho imenso e que rezo imenso enquanto caminho, tendo a desvalorizar quando oiço as bocas do tipo "pois, tu tens tempo", ou "tu tens sorte" ou então a costumeira "vidinha boa" com que sou frequentemente bombardeado. É que depois vejo-os na conversa, a quantidade de horas desperdiçadas, todos os dias, em ditos que não levam a lado nenhum onde valha a pena estar, e concluo que, na realidade, a maior parte das vezes, como em quase tudo na vida, são escolhas que se fazem, são passos que não se dão, são formas cómodas de se estar, e as bocas fazem parte do esquema.
Mas outras vezes não.
Hoje conversávamos de como as coisas mudam quando estamos focados na eficácia. O nosso paradigma é outro, é o da rentabilidade do tempo, da sua poupança e, sem que nos apercebamos, as nossas conversas, os nossos gestos e atitudes passam a obedecer a esse paradigma. Nessas alturas, mesmo que caminhemos, mesmo que não estejamos à secretária diante do computador, a nossa cabeça está lá, não se consegue libertar e tudo é trabalho e anda à volta dele. E isto é extraordinariamente fácil de acontecer, bastando a inércia para sermos arrastados pela corrente, e até sermos invadidos pela sensação de culpa quando não o conseguimos fazer completamente.
E depois acordo. De repente. Estremunhado. Quase sempre sem me conseguir recordar exatamente do que estava a pensar, como se tivesse estado envolvido num sonho. E regressa o sabor das manhãs, o som do mar, a serenidade da oração, a tranquilidade das caminhadas matinais. E, com tudo isso, eu.

20200626

202006260953

Provavelmente será da idade, que sabiamente atribui peso ao que antes era leve, mas um dos grandes privilégios do meu dia de aniversário é fazer a revisitação da imensidão das pessoas que me habitam. Os parabéns que me enviam pelas diversas redes sociais têm gente dentro, têm olhos e conversas e cantorias e caminhadas e partilhas. O meu aniversário tem sido, graças a isso, um rememorial, um revisionamento daquele que tem sido o meu percurso de vida, uma vida que, como dizia tantas vezes o Padre Almiro, mais vale que seja gasta que enferrujada. Viver com quem vivo, viver como vivo, é uma Graça imensa e gratidão tem sido o sentimento que mais tenho por companhia neste dia.
Isto é tanto mais curioso quando eu recordo com facilidade como eu detestava este dia. E, nisso como em tudo na minha vida, o mérito da Isabel e da filharada é decisivo. Empenha-se de uma forma ainda mais afincada para que eu me sinta verdadeiramente amado e para que sinta este dia como meu. E isso, confesso, para além de saber sempre a novo, é imensamente bom!
Uma das grandes questões da minha vida é a forma como irei ser recordado. A forma como permanecerei sempre foi, para mim, fulcral, o que é natural para o imaginário de um miúdo que tinha os grandes e épicos romances como companhia. O meus heróis souberam sempre que morrer na batalha valia a pena, sobretudo se aqueles por quem morreram recontarem a sua entrega nas conversas à volta da fogueira, aí onde os grandes feitos são perpetuados por entre noites frias e almas quentes. No meu imaginário - que permanece de certa forma infantil e sonhador indiferente ao passar do tempo - o meu dia de aniversário é, por isso, uma espécie de epitáfio antecipado que, paradoxalmente, me impulsiona para uma vida plenamente renovada.

20200619

202006191915

No início da pandemia, sobretudo no início do confinamento, haviam algumas expectativas no ar. Sabia que iriam ser tempos estranhos, muito estranhos, ainda para mais quando eu estou mais habituado à correria que à quietude. A primeira semana lembrou-me o primeiro dia de um retiro que eu fiz: apesar de meio perdido porque não sabia o que me esperava e sobretudo o que esperavam de mim, aproveitei para colocar o sono em dia, as coisas em dia, o trabalho em dia, e até o jardim ficou mais em condições. Rapidamente, no entanto, percebi que iriam ser tempos exigentes. Adaptações em cima de adaptações, novas formas de fazer, novas formas de contactar com tanta gente, e, sobretudo, procurar novas soluções para conseguirmos ajudar quem precisava ainda mais da nossa ajuda.
Como tudo isto cansa!
Hoje de manhã estava a olhar para a minha agenda para, apesar dos imponderáveis, tentar preparar o tanto que aí vem. Como sempre acontece - com incidência especial na fase final de cada ano lectivo - estava carregada de atividades e reuniões e preparações e encontros que, desta vez, não aconteceram. Eu próprio contava, por isso mesmo, estar menos cansado, menos preocupado, menos tenso. A verdade é que nada disso acontece. A incerteza do que se avizinha obriga a um esforço extra de atenção aos sinais, procura constante de respostas e foco na execução. Numa altura em que, normalmente, tudo corre em velocidade cruzeiro - até porque é o culminar de um ano devida e minuciosamente preparado - continuamos a realidade a lidar com a incerteza. E apesar de todo o compromisso, de todo o empenho, de todo o esforço, não raras vezes fica na boca um sabor a menos, a insuficiência, a impotência, face às necessidades dos nossos miúdos e das nossas famílias. E isso provoca um desgaste...
Se me perguntassem qual o ensinamento profundo que o COVID me proporcionou, eu responderia que tinha sido justamente este: a substituição da quantificação pelo valor intrínseco dos actos. Se alguém olhar para a quantidade de coisas marcadas na agenda que foram desmarcadas, não faz ideia do trabalho que foi feito. Porque esse, no essencial, não tem medida.

20200618

202006181013

Estou a poucos dias dos 54. Tem sido um longo e belo percurso. Aqui chegado, olho para trás e fico feliz, percebo que, sobretudo atendendo ao meu ponto de partida, é imenso o que alcancei. Muitíssimo mais do que alguma vez, em miúdo, sonhei ou desejei ou pensei ser possível alcançar. E isso é muito bom. E tranquilizador.
Há pouco tempo falava acerca da gratidão. De como eu gosto de me sentir grato. De como eu preciso de agradecer. De como eu tenho motivos para agradecer. A tanta gente! A alguns quotidianamente, de forma evidente e veemente, várias vezes ao longo de cada dia, não desperdiçando oportunidades para o fazer. A outros de forma menos regular mas não menos sentida ou importante. Tenho a imensa graça de conviver com pessoas sábias que se preocupam, que cuidam, que me ensinam, ajudam, corrigem e me apontam metas e estabelecem desafios. São os meus motores fora de bordo sem os quais a minha vida seria uma imensa, aborrecida e improfícua calmaria. São pessoas que transvestem Deus, são a Sua presença, a Sua imagem, o Seu amor e carinho, facilitando-me extraordinariamente a vida porque me ajudam a ser de Deus, dificultando-me extraordinariamente a vida porque me ajudam a ser de Deus. São pessoas com lugar cativo cá por dentro, que armaram tenda e por aqui acamparam e volta e meia aparecem para conversar comigo durante as minhas solitárias caminhadas e reflexões. São pessoas sem ontem ou amanhã, por quem o Tempo não passa, e por isso, quando os nossos olhares se encontram conversamos com a naturalidade de sempre.
É-me muito importante a gratidão. Por um lado coloca-me os pés no chão e recorda-me o quando sou devedor; por outro lado recorda-me o quanto sou amado. E essa é daquelas coisas de que eu preciso ser recordado constantemente!

20200609

202006091130

Trabalhar onde trabalho e com quem trabalho assenta-me os pés no chão. Todos os dias lido com gente boa e menos boa que habita as margens da sociedade: rica e pobre, brancos e ciganos, negros e mestiços. Já fiz voluntariado em Quelimane e por este país dentro, sempre junto de miúdos e menos miúdos, para quem "família", "carinho" e "futuro" são meras palavras com conteúdo pouco menos que duvidoso... e sofredor. Já fiz catequese numa Instituição em que, quando disse que "Deus é Pai" obtive como resposta "se for como o meu, dispenso bem". Sou um privilegiado, portanto, por ter a oportunidade de viver os meus dias com pessoas assim, que me trazem a realidade e ma metem pelos olhos dentro sem me dar sequer hipótese de olhar para o outro lado. Há já imenso tempo que me desenganei, há já muito tempo que percebi que as dores são partilhadas pelos miúdos e pelas pessoas que habitam ambas as margens e que se umas têm vícios caros para se esquecerem da vida e se sentirem apreciadas, outras têm vícios caros para se esquecerem da vida e se sentirem apreciadas. Separadas pela vida, unidas pelo vício, seria um bom mote publicitário. Aprendi também que a cor da pele tem o seu peso mas o meio tem um peso incomensuravelmente maior. Aprendi que os sonhos e os projetos de futuro de um negro com dinheiro são em tudo iguais aos sonhos e aos projetos de futuro de um branco com dinheiro. E que no bairro os sonhos e os projetos de futuro não têm cor da pele, mas são muito diferentes dos que têm dinheiro.
E não é de dinheiro propriamente dito, aquilo a que me refiro. É de ruas limpas, de jardins cuidados, de escolas cuidadas, com profissionais que queiram estar lá e não sejam a isso obrigados. É de casas que conciliem o tamanho das famílias que as habitam com o número de divisões. É de ensino efetivo, exigente, cuidado, real, com reais e personalizadas soluções, que se interessem mais pelas pessoas que pelas estatísticas.
Isso não tem nada a ver com a cor da pele. Tem a ver com remetermos as pessoas para um canto longe da vista, desenraizando-as, retirando-lhes dignidade, tratando-as mal. Qualquer que seja a cor da sua pele.

20200608

202006081008

Sempre que, num programa de televisão, oiço a pergunta se alguém deve um pedido de desculpas ao entrevistador, raramente oiço a resposta. Porque penso na quantidade de pessoas a quem devo um pedido de desculpas.
Eu não gosto da palavra culpa e muito menos do que ela significa. Apesar da culpa que por vezes sinto. Ou se calhar por causa disso mesmo. Fiz e disse coisas profundamente infelizes, normalmente a pessoas que me eram e continuam a ser importantes. Quando olho para trás, não são poucos os momentos em que não me reconheço nas palavras, nos atos ou nos gestos, e isso causa-me vergonha. Houve um tempo, até, em que me era dificilmente olhar ao espelho por não me reconhecer na pessoas que via do outro lado. O sentimento de culpa é, por isso, em mim, algo com o que tenho que conviver no meu quotidiano. Por isso, quando oiço aquela pergunta, penso numa série de pessoas com quem gostaria de voltar a conversar, olhos nos olhos, para tentar resolver algumas coisas.
Não consigo alterar o passado nem o efeito que provoquei na vida das pessoas, mas para mim é importante, volta e meia, deitar-lhe um olhar atento e perceber o que foi fruto das circunstâncias e o que constitui falhas de carácter. Ás primeiras apenas posso ficar atento para que a sua repetição não provoque a minha repetição na asneira. As falhas de carácter, as coisas que fiz e disse que vinham mais de mim e dos meus medos e das minhas entranhas que das circunstâncias, essas sim, precisam ser profundamente analisadas e escrutinadas para que as possa atenuar. O que não pode acontecer - e acontece cada vez menos mas ainda com uma frequência que me desagrada e incomoda - é eu permitir que a minha cara não coincida com a careta.
E hoje, como ontem, como amanhã, é um bom dia para que isso não aconteça.

20200604

202006041653

Ainda andam cá por dentro os oito minutos e quarenta e seis segundos. Os últimos do George Floyd. Hoje na rádio perguntava-se porquê esses e não outros, os milhares de outros que morrem de maneira igualmente infame. Para mim a questão é simples: eu vi estes. Sim. Não será politicamente correto afirmar, mas é isso que acontece comigo.
Já referi aqui várias vezes a mobilização que me encheu de orgulho na altura em que todos nós nos levantamos por Timor. Sabíamos há muito o que lá acontecia, sabíamos das mortes e do desespero e do desrespeito pela vida. Mas nós nos comovemos quando ao som das balas se juntou o som da oração do terço em bom e percetível português. E fomos a correr ver as imagens e acordamos. foi preciso ver e ouvir para que o que se passava do outro lado do mundo tivesse a ver connosco.
Não andamos muito longe disto, neste caso. Vemos, comovemos, achamos inconcebível, como se lidássemos com o desconhecido. Daqui a alguns dias avançaremos para outra. Por vezes concordo com o Papa Francisco e acho que andamos adormecidos pela globalização e pelas redes sociais. No entanto, quando páro para pensar, pergunto-me quantos portugueses saberiam, na altura, da batalha de Luther King, ou de Gandhi, ou o que se passava nos campos de concentração das ditaduras europeias. Ou quem saberá, hoje, o que se passa no coração da China ou da Coreia do Norte. É certo que o excesso de informação nos poderá adormecer num mundo em que os atos de violência parecem galos a cantar ao desafio. Mas, ainda assim, prefiro saber a ignorar. O excesso de informação não é o ideal mas é incomensuravelmente mais desejável que a falta dela.

202006041047

Ontem à noite, depois de mais uma derrota do meu FCP, coloquei uma brincadeira no Facebook. E obtive logo uma resposta de um bom amigo, a levar demasiado a sério a minha brincadeira. Respondi-lhe que era apenas uma brincadeira e que não levo o futebol demasiado a sério. Hoje vinha a conduzir e a pensar nisso. Em como, para mim, há coisas que não são mesmo para levar a sério.
Os meus filhos tiveram todos atividades extra escola. Ligados ao desporto ou à música. Eu sempre as vi como excelentes oportunidades para aprenderem a desenrascarem-se sozinhos. As matérias do ensino eram para serem levadas a sério e eu e a Isabel encarregavamo-nos disso; as matérias extra-curriculares dependiam deles. Eles é que falavam com os professores e treinadores, eles é que tinham que conjugar horários, fazer sacos, planear treinos e estudos. Eu limitava-me a levá-los, esperá-los, apreciá-los e trazê-los. Jamais falei com um treinador ou professor de música - a não ser quando eles me solicitavam. Estas eram alturas para conversar com os meus filhos acerca de coisas como o compromisso, a gestão do tempo, o saber estar em equipa... e oportunidades para eles assumirem a responsabilidade de falar com treinadores e professores e darem a cara quando decidiam interromper ou terminar essas atividades: eram eles que lhes tinham que dizer. Mas foram sempre vistas como algo que não era essencial, que estava concentrado nos estudos.
Ontem fiquei chateado com a derrota. Fico sempre. Mas passa rápido. Passada a emoção do momento, o futebol reencontra o seu lugar na minha vida: é bom mas não é para ser levado a sério. Como muitas coisas na minha vida!

20200602

202006021643

Liguei ao meu pai. Não é muito hábito em mim, ligar aos meus pais. Vivemos a curta distância mas passam-se meses sem nos visitarmos mutuamente. Agora, a propósito do covid, falamos mais, contactamos mais. E isso é bom. Ha uma ressintonização, uma reidentificação, um reconhecimento mútuo que a vida agora se vai encarregando de pôr no devido lugar. E isso deixa-me mais tranquilo, mais sereno, mais resolvido em todas as minhas diatribes interiores que por vezes dão horas às minhas noites.
Há coisas que não me definem no quotidiano mas acabam por me definir na vida. Essa convulsão interior não me impede - a maior parte das vezes - de ser feliz nem de fazer as coisas, mas a serenidade muda a forma como as faço e sinto. É como a harmonia de uma paisagem: quando não existe eu até posso gostar do que vejo, mas quando não há caos, quando tudo se conjuga nas cores e nos espaços, desperta em mim um sentimento de gratidão pela beleza, com aquela saborosa sensação que tudo está onde devia estar.
Foi isso que senti quando a minha avó morreu: que estava tudo no seu lugar. Tínhamo-nos aproximado nos seus últimos anos de vida, ainda a tempo de termos deliciosas conversas, que me deixaram melhores memórias. Quando morreu, morreu em paz e deixou-me em paz. De certa forma, é uma pouco essa a aproximação que está a acontecer relativamente aos meus pais. Á nossa maneira, ao nosso ritmo, retomamos conversas e construímos novas memórias, pacificando-nos no caminho.
E isso é bom.
E faz-me feliz!

20200531

202005311530

Acabei de ler, referindo-se a alguém, que era um bom cristão. Eu não sei o que é ser um bom cristão. Ou melhor, eu sei o que é querer ser bom cristão, agora, ser bom cristão... Pegando no exemplo de alguém que me interroga muitas vezes, judas, eu tenho uma série de questões que ainda não se silenciaram porque ainda não se viram resolvidas. Eu acho que judas era efetivamente um homem de bem. Seguia Jesus, admirava Jesus, e provavelmente quando O entregou julgou estar a fazer o melhor. Ao ponto de se ter suicidado por não conseguir lidar com a vergonha que os seus atos originaram. Era uma pessoa má porque tomou uma decisão má? Não sei! Não sei mesmo. Assim como não sei o que levou os dois ladrões a serem crucificados com Jesus. Sei que para Ele isso não foi importante, apenas a vontade de um deles em acreditar e, esgotado o tempo de o poder fazer cá por baixo, de O seguir no que se seguiria. Para Jesus apenas isso contou.
Na verdade, isto complica bastante o esquema. É-nos instintivamente mais natural e confortável a etiquetagem. Saber de antemão se alguém é bom ou mau permite-nos uma maior (ilusória) segurança, um mais apropriado posicionamento de barreiras para não sermos "tomados por lorpas", como a minha sogra diz. Mas isso é muito limitativo, conduz a erros, leva a não conseguir apreciar as coisas como elas são mas a fazê-lo de acordo com as nossas pre-conceitos. É um sistema mais preguiçoso, e mais perigoso, porque nos afasta mais rapidamente daquilo que é a verdade. E a justiça.

20200521

202005210847

Lentamente, os dias vão voltando a ser dias. Na normalidade possível, na nova normalidade, como agora se diz, o ritmo vai regressando às manhãs, tomando conta do acordar. Hoje a VCI tinha já o movimento parecido ao do tempo de férias escolares: em fila mas sem paragens. Há mais gente nas ruas, mais gente nos transportes e, não fora o uso generalizado de máscaras, dir-se-ia que estávamos num qualquer dia de julho ou agosto. Não estamos. É maio, mesmo. Mas creio que, ao fim de quase três meses de vida esquisita, ansiamos todos pela normalidade. 

Ainda ontem, quando, pela primeira vez nos últimos três meses, passeávamos no Parque da Cidade, víamos alguns dos nossos alunos a fazer parte da imensa multidão que mandava o confinamento às malvas e se agrupava para conviver. E a Isabel dizia que haverá muita gente que preferirá viver neste regime, onde há mais tempo e menor tensão. Há uma notória dicotomia em todos nós. Por um lado, parecemos drogados viciados, adictos em trabalho, em rotinas, em pressas, em agendas sobrecarregadas. Por outro lado, aproveitamos o confinamento obrigatório para nos ressituarmos enquanto pessoas, enquanto famílias, enquanto relações. Não me parece que o virtual possa alguma vez substituir o presencial. Por muito cómodo que seja viver sem pressa e sem trânsito, não me parece que possa ser por aí. O virtual não tem sentimento, não permite o contágio das emoções, senão de uma maneira muito artificial e fugaz. E nós podemos conviver algum tempo sem a profundidade do sentir, mas, a determinada altura, isso torna-se inevitavelmente tão imprescindível como respirar.

20200519

202005191015

Recordo-me que já vi este filme. Há uns anos, numa das conversas com o meu sogro, ele punha-me perante a sua perspetiva do tempo: "já viste que se eu viver até aos 85 viverei apenas mais 15 anos?" Até porque ele veio a falecer repentinamente pouco tempo depois, nunca me esqueci dessa conversa. Desta vez foi a minha sogra: "já viste como há tanta gente que esteve no vosso casamento que já não está cá?". Começamos a contar, por alto, e 3 mãos não chegavam. Entre eles, alguns amigos, mais novos que eu ou da minha idade.

A finitude e a morte têm vindo a fazer parte da minha vida. Durante anos fugi dela mas, inevitavelmente, as chapadas na boca forçaram-me a enfrentá-la. Nalguns casos com imensa surpresa, dor e consternação, noutros mais naturalmente, assumindo e aceitando a morte como algo fundamental da vida.

Recentemente, um amigo disse-me que estava a ser tratado no IPO. Cancro. Chapada na boca, novamente. Fico sempre abananado quando isto acontece. A vida adquire um novo olhar, uma nova perspetiva, e a morte volta a entrar, de forma consciente, no horizonte da vida.

Na última vez que isto aconteceu, com um amigo, e um cunhado, ambos sensivelmente da minha idade, fui-me abaixo das canetas. Foi um tempo de reprocessamento, de reavaliação, de olhar para ontem e para os hoje da minha vida. Foi um processo longo, moroso, extremamente penoso, sobretudo para a minha mais-que-tudo e para os meus filhos que, por mais que me estendessem a mão, a viam por mim recusada. Foi também, inevitavelmente, um tempo transformador, durante o qual, finalmente, me olhei com olhos de amor e me consegui sentir digno de ser acolhido pelo meu Deus. E como isso me era importante! Naquela altura, a pergunta que me foi despoletada pelos acontecimentos era "e se fosse eu, como me apresentaria diante de Deus?". Andei meses obsessivamente à volta disso, sentindo-me profundamente indigno e envergonhado, até que me permiti amar pela Isabel e os meus filhos, e depois, durante um bendito retiro que estava marcado há muito - não há coincidências, há teocdências - me permiti ser amado pelo próprio Deus.

Não estranhei, por isso, que notícia e as minhas lágrimas trouxessem consigo o medo da Isabel. A memória tem esta coisa de tornar presente os nossos sentimentos mais entranhados, nunca definitivamente resolvidos. Sosseguei-a, claro. Desta vez, a dor era mesmo pelo nosso amigo, não minha. E a minha resposta à omnipresente questão "e se fosse eu?" seria, hoje, "vivê-lo-iamos  juntos".

20200515

202005150924

Começamos o dia como gostamos: pequeno almoço seguido de uma boa caminhada, desta vez por terras de são pedro da cova. Enquanto caminhamos fazemos o que nos é fundamental: falamos de tudo o que nos vem à cabeça, sem filtros, sem escolha de assuntos ou de palavras. Falamos de coisas importantes e de coisas nenhumas, que é a massa de que é feita a nossa vida. Desta forma, naturalmente, sem disso estarmos plena e permanentemente conscientes, juntamos a massa, misturamos a massa até que ela seja uma só para que possa ir levedando durante o dia.

Ao longo deste confinamento estive uma semana sem caminhar. O joelho inchou e fui despachado a gelo, anti-inflamatório e repouso. Foi a única semana em que discutimos, não faço ideia a que propósito, mas sei bem porquê: estávamos ambos em casa mas, porque não caminhávamos, porque não íamos de carro para o colégio, não estávamos juntos. Ao longo dessa semana estivemos ambos com as orelhas mergulhadas nos nossos computadores, cheios de trabalho à distância, mergulhados nos nossos próprios afazeres, nos nossos próprios problemas. Acordávamos juntos, comíamos juntos, dormíamos juntos, e pouco mais. E ressentimo-nos disso. Até que discutimos, vociferando das coisas nenhumas de que não tínhamos falado ao longo da semana. E ficou tudo bem. Em nós, a acumulação das coisas nenhumas não conversadas facilmente se transvestem de coisas importantes.

Fizemos esta semana 30 anos de casamento. Aos quais se adicionam 5 de namoro. São 35 anos de vida em comum, de afinações, de descobertas, de redescobertas, de baralhar e voltar a dar. Esses 30 anos não nos diluíram numa pessoa só: ambos temos, à nossa maneira, personalidades fortes, somos pessoas pensantes e convictas, ambos gostamos de batalhar pelas nossas convicções e nenhum de nós está disposto a abdicar da sua essência em nome de coisas nenhuma. Mas estes 30 anos permitiram que nos moldássemos mutuamente, que deitássemos fora o que era para deitar fora, que conservássemos e fizéssemos nosso, comummente nosso, o que era de manter. Somos hoje, ambos, muito melhores pessoas do que éramos quando nos conhecemos. Tornamo-nos, ao longo destes anos, muito melhores pessoas, do que seríamos um sem o outro. Permitimo-nos tornar melhores, deixando que a cumplicidade do amor nos moldasse, nos esculpisse, nos complementasse.

Este confinamento permitiu-me esse vislumbre. Do que poderá ser a nossa vida nos próximos 30 anos. Venham eles. Aguardo-os de peito aberto e alegria no coração.

20200513

202005132346

Tenho lido poesia. A que consigo. Como consigo, que é mal. Roubando o que à poesia não se pode roubar: o tempo. Na verdade, não sou ainda um leitor de poesia, mas um consumidor de poesia. Ainda pego num poema sem nele me deter o suficiente para que ele ecoe em mim. Como a música. Acumulo, não oiço. Guardo para um dia, sabendo que esse dia dificilmente chegará. Só se eu mudar muito. Só se eu for já outro. Só se eu der já tempo ao tempo e parte desse tempo à poesia. E à música. Será outro tempo. Será outro eu. Mas sendo o tempo outro tempo e sendo eu outro eu, eu continuarei sem saber ler poesia.

20200512

202005121039

Se me dissessem, há trinta anos, que ao fim de trinta anos estava como estou, eu não acreditaria. Trinta anos de casado vai muito para além daquilo que eu imaginaria possível em mim. Não porque não os quisesse, não porque não os sonhasse, mas porque os temia tanto que me pareciam impossíveis! Não me recordo de muitas coisas do dia do nosso casamento - o fotógrafo foi assaltado nessa noite e nem fotos temos! - e a sensação que tenho sempre que penso nisso é a de que vivia um sonho. Recordo sim que, no final do dia anterior, ao ir daquela que seria a nossa casa para a minha casa de solteiro, ia em pânico: casar era tão para além daquilo que eu merecia na minha vida que eu tinha a certeza que iria ser atropelado porque uma coisa boa dessas não me poderia acontecer. Talvez por causa disso andei nas nuvens no dia do casamento e tudo o que recordo seja muita cantoria, muita alegria, muita dança e festança como convém à dona constança. E a verdade é que não andava muito longe do que temia. A verdade é que eu jamais conseguiria manter uma casamento de trinta anos. A questão é que o casamento não era meu, nem era eu. Era nós. É nós. E isto muda tudo. Foram inúmeras as vezes em que nos estendemos a mão, em que nos permitimos, em que esquecemos, em que remetemos para as calendas, em que calamos, em que não calamos, em que corremos atrás, em que esperamos, em que estendemos a mão, em que nos estenderam a mão, a ambos, em que não fazíamos ideia do que fazer a seguir, em que arriscamos, em que ganhamos, e perdemos, em que choramos e rimos, em que conversamos até que a noite se fizesse dia, em que discutimos até que o dia se fizesse noite, em que dançamos, em que tivemos prazer, em que nos suportamos, em que dificilmente nos suportamos, em que nos desiludimos, em que nos orgulhamos, em que nos conformamos, em que nos moldamos e deixamos moldar, em que nos apaixonamos, em que dançamos, descalços, com os seus pés em cima dos meus pés e de olhos fechados ao som de uma música por si trauteada, só nossa - ainda esta manhã o fizemos! - em que passeamos, em que descobrimos mundos para além dos mundos que habitávamos, em que nos desafiamos, em que nos tememos, em que nos confiamos, em que... em que... em que... foram inúmeras as vezes porque são inúmeros os nossos dias partilhados, são inúmeras as nossas noites partilhadas, são inúmeros os acontecimentos e as lutas e as batalhas e as pequenas e grandes vitórias que se sucederam sempre, sempre, às pequenas e grandes perdas e derrotas. Nenhum de nós é a pessoa que casou em são pedro da cova às 15 de horas daquele sábado 12 de maio de 1990. Ainda bem! Nem sequer nos amamos como naquele dia. Ainda bem! Não são já ovos de páscoa, como a minha sogra dizia que eram os primeiros tempos de casados. É uma vida. A dois, a sete, a quinze, a cinquenta, a cem, a tanta e tanta gente que nos acompanhou e ensinou e aprendeu ao longo destes anos. É uma vida. Rica, partilhada, cheia, cúmplice e, sobretudo, recheada de amor, daquele amor que emana das entranhas e nos permite desejar recomeçar sempre. Juntos. E nos permite sonhar sempre. Juntos! E como é bom amar assim hoje, quando fazemos trinta anos de casados!

20200501

202005011838

Estava agora mesmo a atualizar os meus contactos. Dos alunos com quem trabalho, principalmente. Dos do 12º ano, em particular. À medida que ia passando por cada um deles ia revisitando os seus rostos e, sobretudo, os nossos momentos. Este 12º foi - ainda é, mas para mim, que não dou aulas, já foi - especial. A quantidade deles que estava envolvido nos Projetos, no ComTigo, nas orações formais e informais, nas conversas formais e informais, torna esta covid particularmente difícil. E injusta. Normalmente, por esta altura, estaríamos a pensar em mais um encontro, em mais um H'Ora Bem, a preparar a sua eucaristia de finalistas, tantas vezes falada ao longo do caminho para e de Taizé, e que agora vemos gorada. Tenho pena. Muita pena. Uma pena que, se medida, apenas perderia para a saudade.

20200429

202004291920

Não sei se sei viver senão sofregamente. Anseio a serenidade, no ser, no pensar, no fazer. Desejo dar tempo à sedimentação da leitura. Uma frase hoje, uma citação amanhã. Anseio repousar o olhar sobre uma imagem, sobre uma paisagem, sobre uma bela foto. Anseio escutar cada harmonia, cada nota, cada palavra que dança por entre as notas de uma canção. Anseio a demora, o permanecer, o bastar. Anseio tudo isso porque não consigo nada disso. A ânsia é uma ladra ciumenta. Leio a correr, vejo a correr, oiço sofregamente, sorvendo as palavras e as frases sem lhes chegar ao âmago, à essência, como se de uma laranja aproveitasse apenas a casca, desperdiçando o seu sumo por entre os dedos. Em mim, todo o pensamento é demorado, toda a ação é impulsiva. E nesta contradição interior estou sempre à espera que a idade acumulada me permita colher o que nunca semeei senão à superfície: a serenidade.

202004291011

Este é um tempo de humildade. Forçada, mas humildade.
Normalmente em grosso modo, sou em quem determina o que faço. Não nas pequenas coisas e nos pequenos momentos, mas o rumo que a minha vida leva nesta altura é o escolhido por mim e pelos que amo e me amam. É uma viagem, por isso, a várias mãos, a várias cabeças, a vários corações, mas é mais ou menos definido por nós. Quando isso acontece, existe uma certa sobranceria, porventura inconsciente mas subjacente, onde até as contrariedades são vistas como meros acidentes de percurso nesse rumo que se mantém.
Humildade?
Nos primeiros tempos da pandemia dava voltas à cabeça para tentar encontrar a melhor maneira de apoiar aqueles miúdos e famílias que nos estão confiados no RAIZ. E o sentimento de impotência era quase avassalador. Por muito que tentasse, não conseguia pensar em algo de significativo, de verdadeiramente revolucionário, que de alguma forma trouxesse algum alívio àquela gente. Reunimo-nos e decidimos começar pelo que podíamos fazer. Era pouco, mas era o que podíamos fazer, dadas as circunstâncias. E foi a solução. Ainda ontem, ao vir para casa, trazia a alma cheia de olhares de verdadeira gratidão.
Humildade.
Para aquelas pessoas, sentirem que alguém se preocupa com elas é absolutamente fundamental, é a luz que lhes permite ver alguma esperança na escuridão em que se encontram. Na verdade, continuamos a não poder fazer muito. Mas conseguimos alargar a rede de apoios mesmo a quem não estava inscrito no RAIZ, conseguimos aprofundar a rede com os professores, que nos enviam o material para imprimir, conseguimos chegar a mais miúdos, a mais famílias, a mais pessoas. Todas elas anseiam desabafar e dar-nos conta das dificuldades e agradecer por as escutarmos.
As mesmas pessoas que em determinadas alturas me desesperam são aquelas que nestas alturas contribuem para me encher a vida de significado.
Humildade!

20200423

202004230814

Adoro escrever. Faz parte daquelas poucas coisas que me são interiores e anteriores e independentes de mim, como se eu fosse apenas o senhorio de entidades que me habitam e que têm vida própria, para a qual a minha vontade conta pouco. Ou quase nada. Escrever é uma paixão e as minhas paixões são muito femininas, muito senhoras do seu nariz, muito autónomas, fazem-me pensar que  quem controla sou eu quando sabemos ambos que não é bem isso que se passa. E, como qualquer paixão, é autosuficiente, autoalimenta-se, autoelogia-se, autosatisfaz-se, autobasta-se, e ainda que se envaideça com eventuais comentários alheios, na verdade não precisa deles para nada. Por isso continuo a escrever, por isso continuo a dizer e a fazer asneiras, por isso continuo a parecer infantil e inconsciente e incongruente a quem paira fora da paixão, porque não a entende. E por isso é que preciso do seu velho companheiro de jornada, mais maduro, mais evoluído, menos primário, porventura até mais racional: o amor. A paixão e o amor são como alguns dos meus filhos: têm os mesmos pais, os mesmos valores, as mesmas memórias das mesmas brincadeiras da infância, mas, porque têm personalidades diferentes, fazem coisas diferentes com o que têm dentro. Porque se a paixão é voltada para si própria, o amor esquece-se de si próprio, está atento ao fora de si, alimenta-se fora de si, encontra-se fora de si. Não são duas faces da mesma moeda, são duas moedas, diferentes, para diferentes gastos, para diferentes alimentos da alma. Como se uma valesse para o mercado da sede e outra valesse para o mercado da fome. E eu, que sempre tive mais fome que sede, senti sempre a premência na sede e menor voracidade na fome.

20200412

202004121222

Domingo de Páscoa! Já cheira ao cabrito da avó, a mesa já está posta, Cristo já ressuscitou. Domingo de Páscoa! Não parece nada. Nem eu nem os meus filhos estamos no compasso nesta altura, não se ouvem as campaínhas na rua nem a azáfama habitual neste domingo tão especial. Assistimos à eucaristia na internet, ainda de pijama, e pouco depois o nosso pároco passou aqui na rua, de carro, altifalantes ligados, a dar a novidade sempre nova: Aleluia. A Ana está em Portimão, o Ica em Bragança, a Rita na casa dela e há coisas que a internet nunca estará em condições de substituir. Domingo de Páscoa. Aleluia.

20200409

202004091001

Caminhávamos ontem, depois do jantar, nas ruas desertas, quando, de uma churrasqueira perto de nós, me veio ao nariz um dos cheiros que mais me despertam os sentidos. Falámos disso, como falamos sempre de coisas nenhumas, naquele que é, para mim, o mais verdadeiro comprovativo da verdadeira intimidade. Como tínhamos acabado de jantar, a Isabel não percebeu como aquele aroma me despertava os sentidos. Na restante parte do caminho, matutei. Na realidade, não era comer o churrasco que me punha a sonhar, era a imagem do churrasco, era o imaginar a carne suculenta no prato, as batatas estaladiças, o arroz perfeito na soltura e no sabor, era sobretudo a algazarra à volta da mesa, para a qual o churrasco é mero pretexto lá em casa. É frequente ser enganado pelos sentidos. De facto, é provável que a carne afinal viesse algo queimada, as batatas embebidas em azeite e já amolecidas pelo calor, o arroz empapado, e, sem dúvida, não teríamos a algazarra do costume, agora que metade dos filhos andam lá por fora. Mas os sonhos, esses, nunca me enganaram. Sempre me permitiram que vivesse na perfeição, no melhor dos mundos, com o sol a aquecer-me a eira enquanto a chuva cai refrescante no nabal. Esta manhã, enquanto não me sabia se acordado se a dormir e sonho e realidade se confundem numa mistura por vezes explosiva, confirmei a importância do sonho na minha vida. Na infância, confinado à minha rua, viajava a partir dos inúmeros livros que devorava, sozinho no meu quarto. Hoje, sonho de olhos abertos, fruindo a minha realidade - que está além do que sempre me atrevi a sonhar - mantendo inapelavelmente, no entanto, o "e se..." sob a pele da alma.

20200406

202004062250

Estranha semana esta, meu Deus!

Não posso estar como quero.

Não posso estar com quem quero!

Não me posso aproximar, tocar, abraçar,

aqueles que me são próximos

a que agora estão remetidos

à distância profilática de um contágio!

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Penso na Tua Mãe, Senhor,

Nos Teus amigos

Nos Teus companheiros de jornada

Na vontade que eles tinham

De correr até Ti

De Te abraçar

De Te aliviar a dor

Que é sempre exponenciada pela distância.

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Em que apenas a intimidade da partilha das memórias

do caminho percorrido em mútua companhia,

me permite estar com quem me habita

e não está perto

mas se faz perto.

 

Estranha semana esta, meu Deus!

Escolho confinar-me em Ti

e ofereço-Te a minha companhia.

Ajuda-me, Senhor!

a caminhar contigo,

a caminhar com os que me habitam,

a vivermos juntos esta semana, contigo, Senhor

e a chegar, contigo,

e em Ti,

á alegria pascal da Ressurreição.

20200403

202004031621

Não estou muito habituado ao não fazer. Normalmente leio bastante, vejo bastante, escuto bastante, e por vezes dou até a sensação que apenas leio, vejo e escuto. No entanto, naquilo que eu entendo como sendo importante, há um formigueiro que não me deixa ficar parado. Esse formigueiro já me meteu em trabalhos inúmeras vezes na minha vida mas foi justamente esse formigueiro que me deu também algumas das maiores alegrias. Digo muitas vezes que, naquilo que é verdadeiramente importante, fecho os olhos e salto, sem questionar em demasia as consequências. Quando corre mal, tenho tido a bênção de ter os que me amam por perto e me recuperam da queda; quando corre bem, tenho tido a bênção de ter os que amo por perto para partilhar a felicidade e a alegria.
Hoje de manhã acordei com um sentimento de impotência que não me é familiar. Leio, vejo e escuto imensas coisas e o que eu posso fazer, o que eu consigo fazer, é imensamente ineficaz, imensamente pouco, imensamente vão, e isso provoca-me um desconforto que me tira do sério. Sinto o formigueiro que normalmente me impele para a frente, mas não consegui ainda a melhor forma de o satisfazer sem que isso ponha em risco alguém.
Faço esquemas e rabiscos e consulto aqueles com quem trabalho, nesta rede de apoio mútuo e de mútua sensação de quase impotência, já que pouco mais conseguimos fazer que telefonar às pessoas, mostrar a nossa disponibilidade para ajudar. Como nos conhecemos bem, como enfrentamos juntos os desafios quotidianos daqueles que verdadeiramente precisam, intuo neles o mesmo formigueiro, a mesma sensação de impotência, a mesma vontade de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa... e a mesma rendição à verdade destes dias, que é permanecer em casa, não para nos protegermos, mas para que todos possam ser protegidos.


20200402

202004021125

Adoro a presença dos meus. Dos filhos, dos amigos, dos companheiros de jornada, da família, de todos aqueles que me ajudam todos os dias nesta travessia que é a vida. Mas gosto muito, preciso muito, da distância. De estar sozinho, de caminhar sozinho, de pensar sozinho, da reserva, de sentir saudade.
A saudade é uma forma de amor, e sentir saudade é uma forma de sofrer por amor e, incurável romântico que sou, sofrer por amor não é uma má forma de sofrimento. Na verdade, apenas sinto saudade de quem me toca a alma, e esse é um poder que eu, por amor, concedo a alguns, e que permanece, imune ao tempo e à distância, Por isso eu gosto da saudade. Não raras vezes sorrio estúpida e aparentemente sozinho quando na verdade as memórias me enchem a alma de conversas, de caminhadas, de boas recordações. Claro que a saudade dói, e quando a distância nos é imposta e não voluntária, dói como o caraças. Claro que, se pudesse, meter-me-ia já no carro e iria ao encontro da minha gente, nem que fosse para rever o seu olhar por breves segundos. Porque a saudade, particularmente daqueles que acampam cá por dentro, tem destas paradoxalidades:não se obedece ao tempo e à distância nem na separação nem no reencontro: uns breves momentos com quem se ama fornece perene alimento ao amor.
Nestes tempos de confinamento, tenho saudade. Imensa saudade! Quero acreditar que possa ser sinal de uma vida cheia... de gente de quem vale a pena sentir saudade!

20200331

202003311040

Uma das boas novidades deste tempo de reclusão é o que posso fazer com o tempo. Tento dedicar os primeiros momentos da manhã à informação, depois algumas horas ao trabalho, que, inevitavelmente, não me ocupa todo o dia. Então leio, vejo filmes, e, retomando um velho hábito que tinha desde miúdo mas que entretanto larguei, vou apontando aquelas  frases e pensamentos - dessas leituras e desses filmes - que me inquietam e escrevo a partir delas. Nos momentos em que o faço o tempo comprime-se, como se vivesse dentro de um parêntesis: por um lado retorno à infância e adolescência; por outro lado é como se antecipasse a reforma. Há quem precise de jardinar, há quem necessite de passear, há quem sinta o nervoso miudinho de não ver o mar. Eu preciso  de pouco: que os meus estejam bem, de uma boa net que me permita ler e ver, de um papel e caneta que me permita escrever, de fazer as minhas caminhadas em regime de namoro ou em regime de podcast solitário. Tendo isso, podendo ter e fazer isso, dificilmente darei os meus dias por desperdiçados.

20200330

202003301637

Estivemos ontem, mais uma vez, a assistir à eucaristia da minha paróquia pela internet. E, mais uma vez, assistir foi o termo correcto. No final da eucaristia fomos conversando acerca dela. A minha sogra, que assistiu connosco porque ligo o computador à televisão e ela pode ver e ouvir melhor, é pró nesta coisa de telemissas e levanta-se e senta-se e responde exactamente como se estivesse lá presente. Dissemos até na brincadeira - que ela não gosta, porque "Graças a Deus muitas; graças com Deus poucas" - que se houvesse maneira de distribuir a comunhão pela televisão ela colocaria a língua de fora para comungar. Nós temos outro tipo de atitude: sentados no sofá, meios a assistir, meios a participar, particularmente atentos apenas à homilia do nosso pároco, que nos ensina sempre imenso.
Enquanto a missa decorria eu pensei imensas vezes em como a "Querida Amazónia", a Exortação Apostólica do Papa Francisco, ficou tão aquém do que se pretendia. Agora que experimentamos as missas sem sacerdote, e à distância, agora que experimentamos a ausência da comunidade, agora que experimentamos a frieza da ilusória proximidade das telemissas, talvez consigas perceber um bocadinho melhor como as coisas podiam ser diferentes. Tal como discutíamos em casa no final da eucaristia, se no início da Igreja o que "fazia" a Igreja, o que era presença activa de Deus, o que era Sacramento, era a comunidade reunida para celebrar a Palavra de Deus, há qualquer coisa de muito estranho quando a comunidade está reunida, presente, a querer celebrar, e depois assiste, sem poder participar, à comunhão quase exclusiva do sacerdote. Há algo de inversão no meio de tudo isto, numa sensação de estranheza que eu apenas sinto porque estamos a viver uma situação inimaginável há poucas semanas atrás. Imagino, só posso imaginar, o que sentirá uma comunidade de fé num qualquer lugar recôndito do mundo, que se reúne para viver e celebrar e partilhar a fé, que é orientada por alguém com uma fé reconhecidamente madura, mas a quem é vedada a comunhão do Corpo e Sangue de Cristo porque esse alguém é casado ou mulher.
Creio que estes tempos, diferentes, nos fazem experimentar o diferente, e que bom seria se nos levassem a um caminhar diferente. Mais próximos das origens. E de Deus!

20200328

202003281451


Nunca conheci um Papa que vivesse tão dentro do nosso tempo como o Papa Francisco. Ao longo dos anos os Papas fizeram milhares de orações, publicaram milhares de documentos, fizeram milhares de homilias... às quais ninguém ligou patavina. Nem mesmo nós, católicos, que andávamos legitimamente entretidos nas nossas vidas e remetíamos essa parte para o "quando tiver tempo". Desde o século passado que todos eles tiveram a revolução da comunicação social à sua mercê mas preferiram sempre demonizá-la, ou ostracizá-la, ou remetê-la para as coisas supérfluas da sociedade. Todos os Papas do "meu tempo", isto é, do Papa Paulo VI ao actual Papa Francisco - com a óbvia excepção do Papa João Paulo I - foram visionários e operaram verdadeiras revoluções para que eu e os meus filhos possamos viver numa Igreja que, sem retirar a Trindade do centro, recolocou a Humanidade no lugar que Deus tinha escolhido para cada um de nós: perto de Si, ao alcance da Sua intimidade. No entanto, de todos eles, o Papa Francisco é quem usa com maior mestria não apenas a globalização das redes sociais, mas também - eu diria especialmente - a força da imagem. Ao vê-lo, ontem, em oração, pensei que nunca um homem sozinho esteve tão acompanhado. Cada uma das fotos divulgadas une, sem ser necessária qualquer palavra, a figura sozinha mas não solitária do Papa à nossa sensação actual que estamos sozinhos, nas nossas casas, mas não solitários. Arrisco afirmar que, naquela granítica e cinzenta caminhada do Papa, cada um de nós caminhava com ele, imersos nesta Humanidade inteira e atarantada, que ele carregava na sua e nossa fragilidade! Não havia melhor imagem para dar vida as suas palavras: Estamos todos no mesmo barco.... ninguém se salva sozinho.

20200327

202003271010

Hoje vi na televisão um homem curdo a dizer que rezava para que todos ficassem bem. E eu? Como rezo tudo isto? Como tenho rezado tudo isto? Tenho rezado? Quando rezo faço-o mais no sentido dos homens, isto é, pedindo a Deus que ajude os médicos e os enfermeiros e todos os outros a aplicar todos os seus conhecimentos, toda a sua humanidade, no tratamento das pessoas. Peço a Deus que ajude todos os infectados a confiar, a serenar, a ver que há Vida para além desta vida. Peço a Deus para que ajude os seus familiares para estarem presentes na confiança do infinito de amor. Mas toda esta medida do que peço é da ordem da humanidade: acreditar, aplicar, esperar, confiar... a um Deus que move montanhas não consegui ainda pedir para acabar com este vírus. Porque será? Será porque acredito que Deus não quer interferir na nossa liberdade? Será porque acredito que as coisas do mundo são separadas das coisas de Deus? Será porque não acredito que, afinal, Deus move montanhas? Será que as circunstâncias alteram a minha ligação com Deus? Será que a minha fé está a ser confrontada com a realidade?

20200326

202003261104

Organizo-me de maneira muito diferente da habitual. Não é já a obrigatoriedade que dita as suas regras, mas a vontade. O "ter que fazer" dá o seu lugar ao "dever fazer" e até ao "querer fazer", o que seria impensável há apenas 15 dias. E isto, para mim, que sou um barco com motor fora de bordo, exige um outro tipo de regras pessoais, de exigência interior, inusitada e porventura inaudita. Em circunstâncias normais prefiro ser arrastado a arrastar. Mesmo quando tomo a dianteira faço-o sob um esquema mental que começou na negação e terminou no "tem que ser". Mas essa dianteira responde sempre a estímulos exteriores, sobretudo quando esses estímulos adquirem a forma de confiança em mim e encontram eco no meu omnipresente medo de desiludir. Nada me desafia e desinstala mais que essa expectativa!
Agora é diferente! É como quando fico em casa com gripe. Nas primeiras horas, a felicidade da justificação da doença para pôr o sono em dia supera largamente as dores do corpo e o incómodo da própria gripe. Mais tarde, satisfeito o sono, passada a dor do corpo, o tédio toma o seu lugar ao meu lado, na cama. Ainda por cima há uma verdade insofismável que se repete nestas alturas: a televisão só dá coisas de jeito quando não temos tempo para as ver. E com ele o não saber o que fazer com o tempo.
Cumpre-se amanhã a segunda semana de reclusão. Já arrumei o que tinha que arrumar, já substituí o que tinha que substituir, já limpei, arranjei, fiz, li o que tinha sido adiado para as férias. Agora já não tenho que fazer nada. Agora apenas quero fazer algo. Que ninguém espera, que ninguém pressiona, que o tempo não exige, que a hora não programa.
Vamos a isso!

20200325

202003251833

Uma das manifestações de solidariedade nacional mais marcantes para mim foi por altura da questão de Timor Leste. Num determinado dia, creio que ao meio dia, combinou-se um minuto de silêncio nacional. Recordo-me que nessa altura eu ia na VCI e parou tudo, absolutamente tudo. Desligamos os carros, alguns de nós saímos deles, os camiões pararam, alguns deles buzinaram durante todo aquele minuto, que me pareceu, na altura, longuíssimo e extremamente emocionante.
Hoje, às 11:00, fomos para a cozinha da Vó. E rezamos o Pai-Nosso. Na Renascença, rezava também o Papa Francisco e, connosco, acredito que alguns milhares de pessoas.
Durante esta quarentena o extremo tem encontrado o seu lugar. As mortes são tantas e tão quotidianas que quase me anestesiam, pelo menos enquanto os meus não forem atingidos. Todos os noticiários, de todas as horas, de todos os canais de informação, tratam o COVID-19 até à exaustão. É tudo muito esquisito, inacreditável, de tão mau. às vezes penso que estamos ainda entorpecidos à espera que o filme acabe. Ao mesmo tempo, todos os dias, a todas as horas, as melhores manifestações de solidariedade, de empenho, de viver em função dos outros. Hoje um padre italiano prescindiu do ventilador que a paróquia lhe tinha dado para lhe salvar a vida, em favor de um jovem que estava ao lado dele. Exemplos como este há imensos, e significativos.
Acredito que tudo isto mudará alguma coisa em nós e na forma como vivemos a vida. E, otimista como sou, acredito que será para melhor.

202003241832

A vida já me ensinou que uma das sensações mais desagradáveis que tenho é quando me vejo na compulsão que defender alguém de quem gosto muito enquanto detesto algo que tenha feito. Isso acontece-me apenas com aquilo ou alguém que me é mesmo muito importante, que amo apesar de tudo, que apesar da imensidão de disparates que comete é para mim uma centelha de Deus. Infelizmente acontece-me muitas vezes relativamente à Igreja. Numa altura como esta é-me completamente incompreensível que se sobrevoe dioceses com o Santíssimo numa mão e a Nossa Senhora de Fátima noutra para se prevenir a doença. Não consigo entender as manifestações de fé que me parecem mais próximas da bruxaria que da fé. Até não consigo entender a preocupação do Papa Francisco com a absolvição global dos cristãos numa altura em que me faria amis sentido falar de esperança que de pecado.
Amar alguém, amar a Igreja, também implica algo deste tipo: amar aquela parte que não compreendo e que preferia que não existisse. Aliás, não faz sentido amar apenas aquilo que corresponde exatamente aos meus desejos, à minha compreensão, ao que cabe dentro dos meus esquemas mentais e emocionais. Porque, por um lado, eu, com a minha percepção, com os meus sentidos e sentimentos, sou a medida de coisa nenhuma. Depois, por outro lado, se amar fosse permitir apenas aquilo que cabe em mim, como poderia ser mais?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...