20151029


O mesmo dia, dois momentos, dois estados de espírito, duas formas de estar, duas formas de sentir, diferentes. Completamente diferentes.

Caminhamos como caminhamos sempre. Com palavras. Por vezes com pés, outras com olhares, rápidos, fugidios, muitas com a doce ilusão do que se vê de olhos fechados, mas sempre com palavras. Não foram elas que nos introduziram, foi outra coisa, que as dispensa, que as torna supérfluas, mas que elas vão consolidando. Com a particularidade de, desta vez, terem sido outras, as palavras que tivemos por companhia. Menos perguntas, menos repostas, menos necessidade de perguntas e de respostas, mais lugar ao puro prazer da companhia, à coisa nenhuma, ao tudo profundo, ao tudo e ao nada, provavelmente espelhando uma maior confiança no tempo que há de trazer consigo o tempo das perguntas e respostas significativas, acreditando que agora o tempo joga a nosso favor.

Caminhamos como caminhamos ultimamente. Olhos no chão, olhos no que nos rodeia, no que se passa à nossa volta, cuidadosamente evitando os olhares. Com palavras, sempre com palavras, que interrompam o silêncio que persiste fazer-nos companhia, apesar de não ter sido convidado, apesar de ter mudado de sentido, apesar de ter passado de partilhado a incómodo. Foram já outras as palavras com que caminhávamos, foram já outras as que utilizávamos, tantas e tantas vezes, plenas de sentido, plenas de vida, plenas de verdade. Mas hoje, algumas perguntas, algumas respostas, que já não querem saber mas constituem armas de arremesso que mais não visam que provocar danos, conquistar justificações, próprias ou alheias, que dêem conforto quando estamos a sós com a almofada.

E o Eugénio, sempre o Eugénio, a sussurrar "já gastamos as palavras pela rua, meu amor..."

20151027



Passo uma música, dez segundos depois escolho outra, tento concentrar-me, seja como for. Em vão! Hoje tudo é em vão! Enquanto ele estiver nos cuidados intensivos, enquanto não souber ao certo o que se passa, enquanto não conseguir lidar com esta inquietação que me habita as entranhas, tudo é em vão. A aparência da normalidade, que se impõe nestas alturas, deixa um intenso sabor a fel. A sensação que não é aqui que deveria estar, a certeza que deveria ser lá, mais perto dele, ainda que tão impotente quanto aqui, ainda que tão inútil como aqui, entorpece-me os sentidos e não consigo pensar nada, fazer nada, sentir outra coisa que não esta impotência que me tolhe os movimentos.

Esperávamo-lo ontem para, como sempre, festejar connosco mais um aniversário de mais um dos nossos filhos. Sabíamos que desta vez não viria, como veio tantas outras, apenas para se sentar no canto do sofá, apenas para aí estar, sem abrir a boca, sem olhar para coisa nenhuma, bebendo dos nossos sons, absorvendo da nossa vida, porventura tentando reencontrar aí um pedaço da sua vida. Sabíamos que se reerguera, há alguns anos, já caminhava, já recomeçara, já conseguíamos ver nele o Jorge que nos acompanhava há mais de trinta anos, padrinho de um dos meus filhos, amigo de todos eles, íntimo de todos nós, já mobília da casa, desde sempre parte de todos nós. O Jorge não é como um irmão, é um irmão, que a vida foi dando, que a vida foi construindo, que a vida foi cimentando e consolidando e crescendo até não o distinguir dos meus irmãos, até não ser distinguido dos seus irmãos.

Fomos a correr para o hospital. Eu e o meu filho, seu afilhado, muitas vezes seu confidente. Ficamos lá até tarde, como ficaram outros, sedentos de notícias, num silêncio contido, à espera que um qualquer milagre nos pudesse mandar de volta para casa com a hipótese de nos reconciliarmos com o sono. Que não chegou. "Está nos cuidados intensivos. Lá permanecerá até conseguirmos avaliar a dimensão dos estragos que o atropelamento provocou." Regressamos a casa, em silêncio, desalentados, sem grande esperança, dolorosamente refugiados nas memórias que teimam em invadir-nos nestas alturas.  Em silêncio. Cada um com a sua dor.    


20151026




... e, de repente, acordas.

Fui visitar a minha avó. E, como tem acontecido a longo deste último ano, a viagem de regresso a casa gira em torno dela, da rápida aceleração do seu processo de envelhecimento, da passagem tão difícil do cérebro à boca que torna as suas palavras tão entarameladas, do seu olhar que ora está vivo como antes, ora, de repente, se embacia, da sua consciência da progressiva perda de consciência, do fatídico "estou mortainha por morrer"... Se os seus 94 anos tinham já repercussão no seu corpo, a sua cabeça, até há pouco tempo, permanecia tão lúcida como antes. Dizia mal das mesmas pessoas, mandava as suas piadas - invariavelmente entrecortadas com as caralhadas que eram a sua imagem de marca - perguntava por mim e pelos meus sabendo que perguntava por mim e pelos meus conseguindo identificar quem eram os meus. Agora, quando finalmente sabe o meu nome, confunde-me com o meu pai, ou com um dos meus filhos, alternando sucessivamente as suas conversas comigo como se estivesse a falar com qualquer um dos outros.

Em nada a ternura que sinto por ela se diminui. Apesar de não termos tido uma história de vida bonita juntos, a determinada altura, quando me apercebi que não a teria junto de mim por muito tempo - e quando já apenas dependeria de mim estreitarmos laços porque ela já não conseguia sair de casa - comecei a ir visitá-la, não numa tentativa de recuperar tempo, mas de agradecer o ainda tempo. E aprender.

Tenho lidado muito com velhos - não gosto de "idosos" e muito menos de "séniores", que me parecem eufemismos para disfarçar a nossa obsessão pelo novo - que me têm colocado a vida em perspetiva. São uma lição, por isso, para mim e para os meus filhos. Nem sempre positiva, confesso. A imagem romântica e confiante que eu tinha em relação ao futuro vai-se desvanecendo à medida que vou tendo que lidar com parkinsons e alzheimers e demências e falência do corpo e da mente, arrastando consigo, ladeira abaixo, a falência do espírito.

Estou habituado, desde sempre, ao confronto comigo mesmo, ao contínuo perscrutar do que se vai passando cá por dentro, tentando discernir, a cada momento, o melhor caminho. Mas este é um outro tipo de confronto: o da finitude de todos nós, dos que amamos, dos que acompanhamos ao longo da nossa vida, de nós próprios. No definhar dos outros assistimos ao nosso próprio definhar, à medida que a sua memória se vai apagando, vamos sendo cada vez menos memória, nos outros... dos outros... de nós. Não são apenas eles que não são o que eram, somos também nós que não somos o que sempre pensávamos que éramos. E isso pode ser duro. Quando pensamos a sério, isso é duro. Porque nos coloca em perspetiva.

A tentação de irmos respondendo ao seu progressivo desligamento com o nosso próprio desligamento é enorme, ainda para mais quando temos a pressão do quotidiano a berrar-nos ao ouvido a falta de tempo e de disponibilidade, mental e física, para lidarmos com o lado b da vida. Lidar com velhos é, no entanto, uma experiência profundamente transformadora.

Resta-nos saber conduzir o sentido dessa transformação.

Não é fácil.

20151024




Sinto sempre um respeito e responsabilidade profundos por aqueles que são capazes de fazer aquela que é, para mim, a mais difícil das partilhas: a dos momentos difíceis.

Aconteceu num destes dias. Cruzáramo-nos várias vezes nos corredores da vida, com cordialidade nos cumprimentos e no olhar, apercebendo-nos do bom acolhimento mútuo. Mas nunca conversáramos, a sério, nunca tínhamos feito nada juntos, nunca tivéramos sequer oportunidade de trocar mais que o mecanizado e mecanizante "tudo bem?" da praxe.

Mas aconteceu num destes dias. Calhou ter-se proporcionado um momento para conversarmos e, passada aquela barreira que nos permite confirmar ou não a intuição sentida, partilhou. As suas dores, as suas dificuldades, a sua solidão, porventura o seu desespero em conseguir lidar com a situação, a sua profunda solidão, mais uma vez, numa manifesta incapacidade de gerir - sem julgar poder contar com mais ninguém! - o céu que teima em desabar sobre a sua cabeça.

Impressiona-me sempre a dor escondida. E impressiona-me sempre por vários motivos. Invariavelmente, o primeiro é instintivamente auto-punitivo: não percebo como pude não me ter apercebido antes, como pude não ter visto, como pude ter andado tão distraído. É instintivo, e reduz fortemente assim que permito que a cabeça funcione: não posso respeitar a distância que nos é - ainda que tacitamente - pedida e, ao mesmo tempo, invadir o que não querem ver invadido. "Não podes dar o que não querem receber." Ponto. O segundo motivo é mais racional. Mas mais duro. Impressiona-me a capacidade que algumas pessoas têm de continuar apesar de..., de persistir, de combater, de andar de cabeça erguida e ainda - espante-se! - sorrir, tentando conciliar o turbilhão interior com a aparente calmaria exterior, refugiando-se cada vez mais, escondendo-se cada vez mais, isolando-se cada vez mais. E impressiona-me sempre, sempre a solidão. Que nunca escolhe idades ou géneros, que não escolhe contas bancárias ou aspectos físicos, que muitas vezes não escolhe sequer acontecimentos específicos, mas que entra, subrepticiamente, e subrepticiamente se instala sem pedir licença, e se deixa ficar por lá, minando, minando, no silêncio, até que alguém ceda.

Aconteceu num destes dias. Cedeu. Foi comigo - improvavelmente comigo - mas cedeu. E eu estava lá, a escutar atentamente, cuidadosamente calado, porque, como concordamos mais tarde, há dores que não podem nunca ser menorizadas ou suavizadas. Apenas partilhadas.

Aconteceu num dia destes.

20151022


Esta noite foi passada na companhia da minha velha amiga insónia.

Muitas vezes não é assim tão amiga: deixa que eu me enrede nos meus próprios pensamentos como peixe na rede, sem me conseguir soltar de mim próprio, sem avançar noutro sentido que não seja o círculo perfeito, voltando uma e outra vez ao mesmo lugar, sem progredir coisa nenhuma.

Não foi isso que aconteceu esta noite. Desta vez fartamo-nos de conversar. Das coisas da alma, principalmente. Disse-me que eu estava enganado havia muito tempo. Que a alma não é uma só, presa ao corpo, amarrada à vontade, rendida aos nossos desejos mas tem vida própria. Que prender e amarrar e render fazem parte de um outro vocabulário, que é estranho à linguagem da alma. Que refere a um outro mundo: o das coisas, das quais o corpo faz parte. E disse-me ainda - para me tentar fazer perceber - que a alma é um pouco como Deus que, sendo um, não é apenas um, e não sendo apenas um, não deixa no entanto de ser um. E que, sendo um, habita em muitos lugares, preenche muitos lugares e se preenche em todos os lugares, sem se sentir dividido mas multiplicado, complementado por todos os lugares que habita, em si tão diferentes, mas dentro de si tão únicos... tão unos! E disse-me ainda que é por isso que a linguagem de Deus é a linguagem da alma, que apenas a tornamos corpo, apenas a coisificamos, porque estamos sempre à procura de aprender a escutar, e a ver, e a sentir, e a valorizar o que escutamos e o que vemos e o que sentimos. Depois olhou-me atentamente e disse-me, lentamente, para que eu entendesse bem - ela sabe bem, até pelas horas tardias em que me visita, que eu com sono sou ainda mais lerdinho - que não havia motivo para preocupação. Que sossegasse e deixasse a minha alma sossegar. E que confiasse. Porque a minha alma, bem melhor que eu, reconhece o amor, reconhece-se no amor, até porque habita aí nesse lugar onde também habita Deus.

Estremunhado, olhei para a minha velha amiga insónia, agradeci, e disse que tinha que me levantar cedo. Ela sorriu, anuiu,e foi tratar da vidinha dela para outro lado. Com a minha alma, desconfio, porque dormi sossegado até de manhã.

20151021


Apenas duas coisas em mim provocam o silêncio involuntário: o peito vazio e o peito cheio.

Quando vazio, não tenho nada para dizer. Tudo é turbilhão de ideias e imagens e momentos e frases e gritaria em alvoroço, provocando o alvoroço, impedindo qualquer pensamento claro, obstruindo qualquer discernimento. Nada sai porque tudo acontece ao mesmo tempo, e o silêncio é ensurdecedor.

Quando cheio, não consigo dizer nada. Tudo é turbilhão de ideias e imagens e momentos e frases e gritaria em alvoroço, provocando o alvoroço, impedindo qualquer pensamento claro, obstruindo qualquer discernimento. Nada sai porque tudo acontece ao mesmo tempo, e o silêncio é ensurdecedor.

Apenas aparentemente o vazio e o cheio são a mesma coisa.

Quando o peito está vazio, o meu percurso é descendente. Tudo é colocado em causa, todas as decisões, todas as atitudes, todas as palavras, são passadas pelo crivo, frequentemente impiedoso, da minha racionalidade em busca de uma razão, de um motivo, de algo que possa alterar. É um silêncio solitário, de uma solidão provocada, absolutamente necessária para que possa, sozinho, descer aos confins de mim mesmo tentando encontrar aí uma saída. E nesses dias, como sabiamente diz a canção, eu não me recomendo.

O peito cheio é feito de presença, de companhia, de palavras que me deixam sem palavras, de imensidão, de futuro, de memórias de conversas de partilhas que sempre serão partilhas porque me impulsionam os sonhos e esta extraordinária sensação que o universo está em sintonia com a minha alma. O peito cheio é feito de olhares, concretos e definidos, de momentos que serão eternos porque se querem eternos, guardados bem fundo, na prateleira dos inolvidáveis, na pasta dos repetíveis desejados, bem ao lado dos sonhos realizados e a realizar. E nesses momentos, como sabiamente diz a canção, deixai-me ir, que o mundo vai sorrir ao ver-me passar.

Algures no meio, eu. Permanentemente embasbacado, permanentemente grato, permanentemente aturdido, à procura de saber transmitir o que acontece cá por dentro.

20151020


Nunca entendi bem o que leva as pessoas a chegarem à minha vida.
E a saírem.
Permanecendo... ou não.

Umas entram de rompante e provocam tumultos, remexendo, revirando, saindo depois com a mesma impetuosidade, indiferentes ao rasto que deixam atrás de si. E o que deixam é quase sempre uma marca de saudade dos futuros que nunca o chegaram a ser, de tudo o que poderia ter sido, das loucuras que poderia ter cometido mas que, por decisão própria, falta de coragem, falta de arrojo, excesso de comodidade, foram por mim preteridos em favor de outros caminhos escolhidos. Volta e meia cruzamo-nos novamente, normalmente num rede social, e ficamos mutuamente felizes por sabermos que a vida nos conduziu a lugares que, sendo diferentes, são os de cada um de nós.

Outras pessoas, no entanto, entram de mansinho. Por algumas delas espero bastante tempo. Intuo que há qualquer coisa, que a vida se encarregará de confirmar ou desmentir, e vou ficando atento, pelo canto do olho, aos seus sinais, ao seu percurso, às alturas em que nos cruzamos, esporádicas umas, mais assíduas outras, mas deixando que as suas impressões façam caminho. Algumas dessas esperas tornam-se demasiado longas, demasiado inconclusivas, não atam nem desatam, e às tantas apercebo-me que são passado, que também elas ficaram no que poderia ter sido. Mas há esperas que têm uma outra consistência, uma outra sede de possibilidade de futuro, cujos sinais persistem no tempo e podem durar anos inteiros a viver de pequenas respirações, de pequenos nadas, que volta e meia, um gesto aqui, uma palavra acolá, um olhar mais atento, impedem que a possibilidade de futuro dê lugar à memória do passado.

E, às tantas, acontece. Uma fragilidade mútua, uma coincidência no tempo, e no lugar, e na vontade, e nas circunstâncias, uma partilha sincera, e vemos confirmado tudo aquilo que subentendíamos há tanto tempo, tudo aquilo que pressentíramos, tudo aquilo que eventualmente sonháramos e é agora confirmado pela batida acelerada da pulsação, pelo sorriso franco que temos diante de nós, pela alegria mútua da alma, pela franca partilha das fragilidades.

A vida tem o seu ritmo próprio (Eclesiastes 3, 1-8). Nós é que somos ainda demasiado cheios de nós próprios para acreditarmos que a controlamos.


20151015



Todos os dias, antes de começar, olho para trás, na esperança que chegue.
Todos os dias, antes de acabar, olho par a frente, na esperança que chegue.
Todos os dias, ainda que nunca chegue, espero que amanhã seja o dia em que chega.

Eu gosto de esperar. Gosto que combinem, antecipadamente, de marcar o dia, e o local, e a hora. Gosto de acordar antes, de chegar antes, de viver antes o que calculo que irei viver a seguir. Gosto daquela sensação de aperto, de expectativa, de imaginar as conversas, o percurso interior que iremos fazer, o percurso exterior que iremos fazer, de antecipar as paisagens e os sons e as cores que irão colorir aquele momento que será apenas nosso. Gosto de confiar que chegue, que depois, pouco antes de chegar, rapidamente se transforma em duvidar que chegue, rapidamente dá lugar ao perscrutar do horizonte, numa tentativa de ver, primeiro a silhueta, depois o andar, a forma como caminha e se dirige a mim, depois, mais perto, o olhar, o sorriso - se o motivo da espera for bom - a rigidez do rosto - se o motivo não for bom - e de tentar ler, logo aí, enquanto não chega, o seu estado de espírito e logo aí, enquanto não chega, refazer percursos interiores, refazer percursos exteriores e diálogos e formas de começar a conversar, e mentalizações para o caso de as coisas não correrem bem.

Já apanhei autênticos banhos de desilusão, já antecipei conversas que nunca aconteceram, já tive percursos que foram bruscamente interrompidos, já enfrentei olhares que jurava amigáveis e se revelaram frios, e distantes, e surpreendentemente frios e distantes, e dolorosamente frios e distantes. Já pedi, interiormente, que me tirassem daquele filme, à medida que ia constatando que afinal eu estava só, sempre estivera só, sempre fora uma coisa só minha, cuidadosamente camuflada por mim próprio, laboriosamente construída por mim próprio, impiedosamente ignorada por quem esperava. Já tive vontade de desmarcar, à posteriori, de me esconder, à posteriori, de fazer de conta que tinha sido um engano, uma confusão, que afinal não era bem assim, sempre à posteriori, negando as mais profundas evidências interiores, em vão contrariando as maiores evidências exteriores.

Já me aconteceu de tudo, depois da espera. Inclusivamente o céu. E pela hipótese de céu, nem que seja pela ínfima hipótese de céu, valeu sempre a pena esperar.

Por isso, espero. Todos os dias. Na esperança que chegue.

20151014


O melhor de uma conversa, de um encontro, de uma pessoa, acontece quando permitimos que ela nos habite, nos mexa por dentro, nos faça companhia - muitas vezes quando menos o esperamos - nos remexa as entranhas e nos lance naquela inquietude onde nasce a sabedoria. 

Na conversa com os meus filhos, uma delas disse, às tantas, que não tinha a certeza que aquilo que sentia em Taizé ou quando rezava com os amigos ou quando estava no Fé e Luz com os deficientes ou em qualquer outra situação do género, era por ser católica ou se sentiria o mesmo independentemente de ter ou não ter fé, de sentir ou não a presença de Deus. Sorri. A importância que colocamos às etiquetas é verdadeiramente desmesurada. Não me parece nada importante para quem está com ela, para quem vive com ela, para quem experiencia estas coisas com ela, se ela é católica ou não, se é por Deus ou não. As etiquetas servem para uma coisa apenas: separar. Porque somos naturalmente limitados e não conseguimos abarcar todas as coisas, separamo-las por classes, ou funções, ou cores, ou religiões, ou o que quer que seja, apenas para que possamos lidar com elas com maior segurança, apenas para que as possamos utilizar melhor, apenas para que nos possamos defender melhor. Conscientemente ou não, agimos de determinada forma, preconcebida, em função das etiquetas que colocamos, fechando-nos e fechando-as à imensidão do que poderia acontecer se não tivéssemos colocado - ou deixado colocar - as nossas tão preciosas etiquetas.

Mas não foi isto, no entanto, o que fez caminho em mim. Foi outra coisa.

Não me parece que Deus faça incidir um raio de luz sobre a cabeça de cada um nem que o Espírito Santo e entretenha a distribuir línguas de fogo segundo a sua vontade. Acredito que Deus nos fala de muitas formas, mas nessas formas está sempre envolvido o outro. Há alturas em que Deus nos sussurra na alma e a alma transborda contagiando quem está à nossa volta. É quando deixamos que Deus atue em nós e somos luz e caminho, muitas vezes sem sequer nos apercebermos disso. E há alturas em que Deus nos fala pelo que nos envolve, seja a natureza, sejam as pessoas, seja uma situação nos remexe as entranhas - porque Deus é sempre uma coisa de entranhas! - seja uma inesquecível oração da luz em Taizé que nunca deixa de nos iluminar as noites escuras. É quando nos deixamos contagiar pelo transbordar de Deus no que nos rodeia. 

Não precisamos de ser católicos para sentirmos que Deus nos fala. Não precisamos sequer de ser cristãos. É mais fácil senti-lo sendo-o, porque O conhecemos, mas não é absolutamente necessário. Não podemos é retirar Deus da equação das nossas vidas. Se, quando nos sentimos em paz, quando nos sentimos em sintonia, quando nos sentimos parte de algo maior que nós - e sentimo-lo muitas vezes - procuramos apenas explicações lógicas para o que sentimos e não damos lugar ao que nos transcende, estamos a colocar-nos etiquetas, e aos melhores momentos das nossas vidas. 

E estamos a roubar-nos a nós próprios a imensidão que somos.

20151013


Hoje, o caminho de ida não chegou. Continuava a precisar do silêncio, de ter o mar diante dos olhos, do seu som a bater nas rochas, hoje suave, muito suave, precisava da sua companhia por mais algum tempo e não do barulho dos automóveis e da paisagem citadina que me costuma fazer companhia no caminho de volta. Hoje precisava de ver apenas a linha do horizonte que é definida pelo mar, e que me transmite sempre aquela sensação de infinito, de eterno, onde me posso perder com facilidade sem que ninguém me encontre. Hoje precisava de algum tempo mais, precisava de dar tempo ao que estava na minha cabeça, ao que gritava na minha cabeça, para que, lentamente, suavemente, como quem não quer a coisa, começasse a dar lugar ao serenar do coração, para que, lentamente, suavemente, começasse a ecoar o que me ia na alma. Hoje precisava mais do meu olhar que do olhar daqueles que se cruzam comigo, a passo de corrida uns, a passo de passeio outros, a passo todos, auscultadores nos ouvidos, olhos postos no chão, num visível esforço de se ultrapassarem todos Como eu, aliás, atento ao meu olhar, escutando a minha voz, tentando discernir algo que valesse a pena por entre a gritaria, tentando encontrar um qualquer fio condutor que hoje, e apenas hoje, me pudesse servir de rumo.

Hoje, o caminho de ida não chegou. Fiz o de volta, contrariamente ao habitual, vendo uma outra paisagem completamente diferente, trocando as voltas às minhas costas, presenteando um novo horizonte ao meu olhar, vendo outras pessoas, as que normalmente fazem daquele o caminho de volta e que permanecem longe do meu olhar quando faço de outro caminho o caminho de volta. Tive mais mar, mais vento, mais gaivotas, mais silêncio, mais paz. E tive mais tempo para me (re)encontrar.

Bom dia

20151012


Apesar de ter uma consciência muito apurada - sinto-me sempre culpado até prova em contrário - e de ter feito uma série considerável de asneiras ao longo da vida, voltar atrás nunca foi algo que desejasse muito. As decisões que tomo tomo-as sempre segundo as circunstâncias - as que me são externas e, fundamentalmente, as paranóicas - e sempre tive a noção que não adiantaria de muito voltar ao mesmo lugar porque, provavelmente, voltaria a cometer os mesmos erros.

Há, no entanto, uma série de episódios que uma mão cheia de dedos pode contar que preferiria que não tivessem acontecido. O que têm em comum é que neles magoei mais do que fui magoado. O que têm em comum é que não cheguei a pedir-lhes desculpa pelo que fui, pelo que fiz, ou pelo que disse. O que têm em comum é que a sua recordação nunca me deixou reconciliar-me comigo mesmo.

Durante anos imaginei uma outra conversa, uma outra forma de fazer, até uma outra forma de ser. Tomada a decisão, parti para a ação, alicerçado numa imaturidade que me acompanhou até algo tarde, na minha vida. Como sempre, tinha escolhido não confrontar, para não magoar. Como sempre, acabei por magoar muito mais que se tivesse sido o homenzinho que já deveria ser na altura. Durante anos esse episódio - e as suas consequências - acompanhou-me. Imaginava, sonhava, uma outra conversa, calma, serena, onde apresentava as minhas justificações e depois seguiríamos ambos, cada um para o seu lado, lambendo as feridas mas prosseguindo com as suas vidas, como tinha que acontecer. Como acabou por acontecer. Voltamos a estar juntos na semana passada, fruto do acaso. Desta vez a situação forçou-nos a algo mais que o distante "olá" que já tinha acontecido antes, e tivemos mesmo que trocar algumas palavras que fossem para além da simples circunstância. Não foi necessário mais. Não foi necessário o pedido de desculpas formal - que, no entanto, acredito que ainda possa vir a acontecer - que me sossegaria a alma, mas já ame permitiu ver que não há ressentimentos, que a vida prosseguiu, como tinha que acontecer.

Sou feito de muitas pessoas. Algumas delas ocuparam pouco espaço, cá por dentro. Outras, no entanto, são ainda interlocutores privilegiados das minhas conversas solitárias enquanto caminho. Essas, seja por bons ou maus motivos, nunca deixaram de fazer parte de mim. Chegaram, acamparam, e por aqui continuam. Algumas delas até à altura em que possa dizer mais um "olá" circunstancial, que me assegure que a vida prosseguiu. Como tem que acontecer.

20151011


Ontem tivemos uma daquelas longas conversas acerca da fé. Quando a começamos estávamos ainda a jantar e quando a terminamos olhei com espanto para o relógio e vi que passava da meia-noite. Os meus filhos sabem que eu adoro conversar com eles acerca da Igreja e das coisas da fé. Sabem que eu estudei e estudo para tentar saber um pouco mais, mas, mais importante que isso, sabem que têm toda a liberdade para colocarem todas as dúvidas que quiserem e de as manter até que a vida as consiga esclarecer. Não sou, nunca fui, nada proselitista talvez porque, como ainda ontem lhes disse, acredito muito pouco que alguém se converta à fé apenas por causa do que dizemos. Acredito sim, que Deus faz o seu caminho para chegar a todos nós e que, na melhor das hipóteses, nós deixamos que Deus actue em nós, aceitamos ser parte desse caminho, mas sempre através do que vamos conseguindo ser todos os momentos da nossa vida. Nada disto é novidade para eles, já foi dito muitas vezes, e por isso fico mesmo feliz quando eles me procuram para conversarmos, dando-me a oportunidade de os conhecer um pouco melhor e, de certa forma, se o desejarem, de crescermos um pouco mais.

Os meus filhos estão quase todos naquela fase da vida em que começam a assumir a responsabilidade pelas suas próprias decisões. Não que eu não queira saber o que se passa com eles, mas por uma questão de respeito. Acredito que o essencial do que lhes tínhamos a transmitir enquanto pais já foi feito, preocupo-me bastante em fazê-los sentir que cometer erros de percurso é normal e quando isso acontecer eles têm sempre para onde voltar sem que nada lhes seja atirado à cara, mas agora é chegado o tempo de serem eles próprios a fazerem o seu caminho. Sob o nosso olhar atento, como sempre, mas é o seu caminho.

Nos dias bons, chego a ter algum orgulho no percurso que fiz. Muita indefinição, muitas dúvidas, algumas asneiras, muita solidão, muito caminho nas pernas, muita procura, algumas chegadas... Ontem, quando me deitei depois daquela conversa, dei Graças. Porque, pelo menos por eles, ainda que mais não houvesse, viver já teria valido a pena.

20151008


Bem cedo deixei de acreditar que existiam alturas certas para estarmos com quem amamos. E passei a acreditar que o tempo, quando é inteiramente dedicado por nós, é muito relativo. Tenho escassos mas absolutamente deliciosos e até decisivos minutos com cada um dos meus filhos enquanto estamos a ir ou a vir para ou de qualquer lado. Não é necessária uma grande viagem, não precisamos de momentos especiais, grandes dias ou acontecimentos importantes. Basta estarmos só nós, quando nada mais interfere ou distrai a nossa atenção, e temos as mais deliciosas conversas, e muitas vezes as mais profundas revelações.

É frequente ouvir os meus amigos que são pais ou mães queixarem-se que ao fim do dia ou ao fim de semana são motoristas. Algumas das melhores partilhas com os meus filhos aconteceram justamente quando os estava a levar para o futebol ou para a música, ou vínhamos da equitação, ou agora do andebol. O facto de estarmos apenas os dois no carro fazia-os sentirem-se únicos, possuidores da minha total disponibilidade naquela altura, o que, numa casa com pelo menos sete pessoas, é um privilégio. E depois, enquanto estou à espera deles, babo-me completamente ao assistir aos seus desempenhos, envolvo-me na sua forma de estar nas actividades e, não raras vezes, descubro neles uma outra forma de ser pessoa, que me era impedida pelo meu olhar paterno.

Em Hollywood existe a máxima "não há papeis pequenos; há actores pequenos." Aplico-a muitas vezes na minha vida, no meu contacto com as pessoas, na forma como vivo os aparentemente pequenos acontecimentos que ao fim do dia se revelam muitas vezes muito importantes. Porque a vida acontece todos os dias, a toda a hora, e não apenas nos momentos especiais. E às vezes não a conseguimos ver. E como é muito importante educarmos o olhar! E sairmos do centro da nossa atenção.

20151007




Há um motivo para temer sempre um olhar de desilusão dirigido a mim: já vi vários. Dolorosos. Todos eles.

Quando me interesso o suficiente por alguém - e é-me sempre muito fácil interessar-me por alguém - não costumo ter grande dificuldade em saber lê-lo. E quando essa dificuldade existe, rapidamente constitui um desafio que exige ainda uma maior entrega e atenção da minha parte. E, se estivermos ambos em contacto o tempo suficiente - e se a pessoa em causa for interessante - dou ao tempo o tempo necessário para aprender a lê-la. Antecipar os seus olhares, conseguir perceber quando está bem ou mal, e guardar ainda assim a distância necessária para ser chamado sem me impor, é vivido por mim quase como uma missão e, tarde ou cedo, a vida acaba por promover o encontro mútuo, quase sempre mutuamente enriquecedor.

Há quem chame a isso inteligência emocional. Seja! Até concedo que poderá ter tudo de emocional, mas não terá grande coisa de inteligência. Porque o olhar que incide sobre os outros transforma-se em completa cegueira quando incide sobre mim próprio. Não é nada raro andar completamente enganado acerca do que penso ser a minha realidade, completamente iludido, completamente no mundo da lua, sem qualquer sintonia com o que efetivamente se passa. Todos à minha volta vêem que é alhos e espantam-se quando eu vivo como se fossem bugalhos. Mas com o seu ar de espanto permanente posso eu bem. O pior mesmo é quando a inteligência finalmente carbura e eu descubro a verdade. Que, quase sempre, não queria ver e por isso a fantasiava tão cuidadosamente. Que, quase sempre, acerta na mouche e exige medidas duras, que evitava tão cuidadosamente.

Já vivi o suficiente e já tive que aprender o suficiente para perceber que há feridas que nunca passam, que permanecem, apesar dos esforços, apesar dos curativos, apesar de toda a vontade do mundo em alcançar a cura. Mas que devem ser enfrentadas, para que, finalmente, possa entrar alguma luz.  

20151003


Nunca fui muito de ter os pés na terra. Creio agora, olhando para trás, que em determinada altura era porque não podia. A minha terra era demasiado dura para que eu me permitisse manter-me em terra firme, que se não me agarrasse ao ilusório, ao sonho, ao que poderia ser, jamais teria saído do buraco onde me encontrava. Noutras alturas, porém, não quis ter os pés na terra. Não por causa do que me envolvia mas por causa do que sentia, da minha falta de orgulho em ser eu, e fugir da terra era a única maneira que encontrava de conseguir sobreviver a mim próprio. E por vezes ainda acho que nunca de lá saí.

Manter os pés na terra é um luxo. De quem sabe o terreno que pisa, de quem olha momentaneamente para o caminho percorrido e gosta do que vê, de quem consegue lidar, em paz, com o rasto deixado pelas suas pegadas. Não é o meu caso. Pelo menos não tem sido, ultimamente. E sempre que sinto que não é o meu caso eu questiono-me se alguma vez o foi. Se, nas vezes que eu pensei que era o meu caso, não estava justamente com os pés fora da terra, não estava a colorir a realidade, não estava num estado de euforia tal que me impedia de ver o que realmente era e projetava o que desejava que fosse.

Ainda penso, algumas vezes, talvez por defesa, que os pés na terra são demasiado sobrevalorizados. Outras vezes penso, por pura estupidez, que os pés na terra têm um problema de compatibilidade com a fé, como se a fé pudesse ser algo etéreo e desligada da vida e ter os pés na terra não fosse condição necessária para se poder ter uma vida de fé. A forma como vivo a fé chama-me forçosamente à terra. Chama-me a ser realista, a ver as pessoas com olhos de ver, mas a adotar uma visão larga, sem me render ao momento, procurando enquadrar toda a sua história, toda a nossa história comum, feita sempre de caminhos partilhados, conversas partilhadas, confissões mútuas de alegrias e tristezas. E ver as pessoas assim, ler as pessoas assim, é, na melhor das hipóteses, entendida como ter os pés meios fora da terra, para muita gente.

Creio que todos somos mais brandos com os fantasmas alheios que com os nossos próprios fantasmas. Que lhes damos mais largura, mais abertura, que os toleramos melhor, os conseguimos ler melhor, até pela maior distância, encarando-os com a naturalidade de quem sabe que as pessoas se amam apesar dos seus fantasmas. E creio que todos somos demasiado severos com os nossos próprios fantasmas, que nos são demasiado visíveis, demasiado presentes, por vezes até demasiado castradores. E todos conhecemos pessoas que conhecem os nossos fantasmas pelo nome, são mais íntimos deles que nós próprios, e até têm a autoridade de os colocar no seu lugar. E nos dizem, com a doçura proveniente de uma sabedoria profunda, que temos que por os pés na terra.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...